ACÓRDÃO Nº 679/94
Processo nº 285/93
1ª Secção
Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.1.- O Promotor de Justiça junto do Tribunal Militar Territorial de Elvas deduziu, em 28 de Abril de 1993, libelo contra o soldado da Guarda Fiscal A., nos autos identificado, imputando-lhe a prática, como autor material, de um crime de homicídio culposo, previsto e punido pelo artigo 207º, nº 1, alínea a), do Código de Justiça Militar (CJM), e da contravenção ao disposto no artigo 11º do Código da Estrada, esta a punir disciplinarmente, de acordo com o artigo 208º do CJM.
O Juiz Auditor respectivo, por despacho de 3 de Maio de 1993, considerou inconstitucional a norma da alínea a) do nº 1 daquele artigo 207º, enquanto aí se define como crime essencialmente militar o crime de homicídio negligente, por violar o artigo 215º, nº 1, da Constituição da República (CR) e, consequentemente, recusou a sua aplicação, declarou a incompetência material da jurisdição militar e, em concreto, do citado Tribunal, e ordenou a remessa dos autos à jurisdição comum, no caso à Delegação da Procuradoria da República da comarca de Tavira.
Do assim decidido recorreu o Promotor de Justiça para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea a), da CR e 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro - recurso, aliás, de interposição obrigatória considerando o preceituado nos artigos 72º , nº 1, alínea a), e nº 3, deste último diploma legal e 254º do CJM.
1.2.- Constam do libelo os seguintes factos que interessa reproduzir:
"1º- No dia ---- de -------- de 1991, cerca das --- horas e 5 minutos, o arguido conduzia a viatura militar de matrícula -----------, em serviço para que fora superiormente nomeado, pela Estrada Nacional nº ----, no sentido -------------, cuja faixa de rodagem tem 7,20 metros de largura, o pavimento em asfalto, em bom estado de conservação e seco.
2º- Em sentido oposto, pela metade direita da faixa de rodagem, considerando o seu sentido de marcha, circulava o motociclo de matrícula ---------------, pilotado por B., de nacionalidade ---------, com os demais elementos de identificação constantes dos autos.
3º- Ao Km 1---,--, o arguido iniciou a manobra de direcção para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, a fim de seguir pela estrada de ---------------, sem previamente se ter assegurado de que da sua realização não resultaria perigo ou embaraço para o restante tráfego pelo que - cortando a linha de trânsito àquele motociclo que, entretanto, acabara de descrever uma curva - provocou o embate entre a parte lateral direita da viatura militar e o motociclo pilotado pelo referido B. que, em vão, na tentativa de evitar o embate, saiu da faixa de rodagem desviando o motociclo para a berma do lado direito, considerando o sentido de marcha deste.
4º- Daí que o embate entre ambos os veículos tivesse ocorrido a cerca de 40 cms da linha delimitadora da faixa de rodagem (marca M 19).
5º- Projectado, na sequência do embate, o B. caiu a cerca de 2 metros daquele.
6º- Do acidente resultou - além dos ferimentos nos ocupantes da viatura militar e estragos nesta e no motociclo - ter o B. sofrido as lesões descritas no relatório de autópsia, junto aos autos, que lhe determinaram, como consequência necessária e directa, a morte".
2.1.- Tomando por base a descrita matéria fáctica, o Juiz Auditor não aplicou a norma do artigo 207º, nº 1, alínea a), do CJM, por razões de inconstitucionalidade assim expressas:
"Não obstante ser o conceito constitucional matriz da jurisdição militar, a categoria dos crimes essencialmente militares não é definida pelo texto constitucional (artigo 215º da Constituição da República Portuguesa).
Isso, no entanto, como salientam os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, não significa que o legislador possa organizar arbitrariamente a constelação dos crimes essencialmente militares, 'devendo o critério definidor estar de acordo com a função do instituto, que é a de proteger por meios próprios (a justiça e os tribunais militares) a organização militar' [Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 3ª edição, 1993, pág. 816].
A não ser assim - a entender-se que o conceito de crime essencialmente militar poderia resultar da simples opção do legislador ordinário -, chegaríamos ao absurdo de admitir a inclusão de todos os crimes constantes do Código Penal no Código de Justiça Militar, consagrando na prática o foro pessoal, abolido pela Constituição.
A jurisprudência (pelo menos a posterior a 1986) do Tribunal Constitucional [cfr. Acórdão nº 347/86, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Março de 1987] acentua precisamente este aspecto: só na defesa dos valores conaturais à instituição militar se compreende a criação dos tipos penais militares específicos.
Impressivamente diz-se - e citamos o sumário do Acórdão nº 449/89 do Tribunal Constitucional - serem crimes essencialmente militares 'não apenas aqueles que não têm qualquer correspondência com os crimes comuns, mas também aqueles que, sendo fundamentalmente idênticos aos crimes comuns por representarem um dano ou perigo de dano para os interesses comuns da comunidade, constituem, a mais do que isso, violações de algum dever militar, ofensa à segurança ou à disciplina das Forças Armadas ou aos interesses militares da defesa nacional' [cfr. o Boletim do Ministério da Justiça, nº 388, pág. 183. O texto está publicado na íntegra no Diário da República, II Série, de 26 de Janeiro de 1990].
Daí que o legislador não possa definir como tais 'crimes comuns cujo único elemento de conexão com a instituição militar seja a qualidade de militar do seu agente ou qualquer outro elemento acessório como, por exemplo, o lugar da sua prática, pois que isso seria consagrar o foro pessoal'.
Cada vez mais, vamos adquirindo a convicção que o legislador ordinário, na elaboração do Código de Justiça Militar (Decreto-Lei nº 141/87, de 9 de Abril), nem sempre respeitou os parâmetros dentro dos quais lhe era constitucionalmente lícito mover-se. Tinha, muito provavelmente, razão o Prof. Cavaleiro Ferreira quando, bem próximo da publicação do Código de Justiça Militar, dizia que o legislador tinha inconstitucionalmente alargado o universo dos crimes militares a comportamentos que nada tinham a ver com a ofensa de deveres militares ou da disciplina militar [cfr. Direito Penal Português, I, Lisboa, 1982, págs. 227/233; Lições de Direito Penal, I, Lisboa, 1985, pág. 34].
Exemplo disso é precisamente o comportamento criminal em causa neste processo, não deixando, até, de ser curioso recordar que, na Assembleia Constituinte, aquando da discussão da norma respeitante aos tribunais militares, uma intervenção de um deputado (C., do Partido Socialista) excluiu expressamente da jurisdição castrense o julgamento dos crimes consubstanciados em acidentes de viação em serviço" [cfr. Diário da Assembleia Constituinte, nº 98, de 19 de Dezembro de 1975, págs. 3183 e segs.].
E, a terminar as suas considerações:
"A negligência na condução automóvel é, sem dúvida, uma realidade de grande gravidade nos dias que correm. Essa gravidade, no entanto, nada tem a ver com os valores especificamente militares ou com quaisquer interesses respeitantes à defesa nacional.
Fora a qualidade pessoal do agente, os únicos elementos de conexão com instituição militar são de natureza meramente circunstancial ('acto ou local de serviço' - artigo 207º, nº 1, do Código de Justiça Militar), e, não podem, por isso, fundar validamente um crime...