Acórdão nº 654/16.6T8ABT.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 07-11-2019
Judgment Date | 07 November 2019 |
Case Outcome | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA |
Procedure Type | REVISTA |
Acordao Number | 654/16.6T8ABT.E1.S1 |
Court | Supremo Tribunal de Justiça |
I – Relatório
1. AA (A.) intentou, em 30/11/2016, ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, S.A. (R.), alegando, em resumo, o seguinte:
. O A., jogador de futebol …, …, desde os seis anos de idade, na época de 2013/2014, encontrava-se vinculado, por contrato, à Associação Desportiva de …;
. Em 06/04/2014, o A. interveio, como jogador sénior da União Desportiva de …, num encontro de futebol com o Grupo Desportivo de …, no âmbito do Campeonato Distrital de Futebol Sénior da 1.ª Divisão Distrital da Associação de Futebol de …, no decurso do qual, numa disputa de bola, sofreu lesões graves no membro inferior esquerdo;
. O A. foi tratado pela R., que acabou por considerá-lo curado sem qualquer desvalorização;
. Porém, o A. continuou com marcha claudicante, a padecer dores e incapacitado para a prática desportiva, nomeadamente de futebol;
. Em virtude disso, o A. perdeu os rendimentos que auferia, a título do contrato desportivo e com a sua atividade profissional, no valor de € 9.600,00;
. Pelos danos morais já sofridos e pelos decorrentes de ter cessado a sua carreira de jogador de futebol, o A. deverá ser compensado no valor de € 30.000,00.
Concluiu pedindo que a R. fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 30.000,00, a título de compensação pelos danos não patrimoniais, bem como a indemnização que viesse a ser apurada em função do coeficiente de incapacidade física a arbitrar.
2. A R. BB contestou, invocando, além do mais, a sua ilegitimidade, alegando ter agido como entidade prestadora dos serviços de regularização do sinistro desportivo por conta e ordem da “CC - Companhia de Seguros, S.A..”.
3. Seguidamente, o A. requereu a intervenção principal passiva daquela seguradora, o que foi admitido pelo despacho de fls. 86/87, tendo a Interveniente deduzido contestação, em sede de defesa por impugnação e por exceção perentória, sustentando que:
. Celebrou com a Associação de Futebol de … um contrato de seguro de grupo, no ramo “Acidentes Pessoais”, com início em 01/07/2013 e termo em 30/06/2014, tendo por objeto o risco de acidente resultante da prática desportiva desenvolvida pelas pessoas seguras, desde que em representação ou sob o patrocínio da tomadora do seguro, com a cobertura, por pessoa e acidente, de invalidez permanente pelo capital de € 27.500,00 e de despesas de tratamento pelo capital de € 7.500,00, deduzida a franquia de € 100,00;
. O referido contrato de seguro não contempla a alegada perda de rendimentos, no valor de € 9.600,00, e exclui a indemnização por danos morais;
. Por outro lado, o A. teve alta clínica sem desvalorização a 12/05/2016, não existindo assim qualquer incapacidade permanente a considerar nos termos previstos no sobredito contrato.
Concluiu a Interveniente pela improcedência da ação e, consequentemente, pela sua absolvição do pedido.
4. Foi realizada audiência prévia no decurso da qual, fixado o valor da causa em € 39.600,00, foi proferido despacho saneador a julgar improcedentes as exceções de ilegitimidade suscitadas pela R. e pela Interveniente, seguindo-se os despachos de fixação do objeto do litígio e de enunciação dos temas da prova.
5. No decurso da audiência final, o A. desistiu do pedido quanto à R. BB, o que foi homologado pela decisão de fls. 379-380, tendo a ação prosseguido apenas contra a Interveniente “CC - Seguros”.
6. Finda a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 407-426, de 10/12/2018, a julgar a ação parcialmente procedente, condenando-se a Seguradora Interveniente a pagar ao A. a quantia total de € 27.500,00, sem prejuízo da dedução da franquia contratualmente estabelecida, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos por ele em consequência do acidente, absolvendo-se a mesma Interveniente do mais peticionado.
7. Inconformada, a Seguradora Interveniente recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, em sede de impugnação de facto e de direito, tendo sido proferido o acórdão de fls. 479-495, datado de 11/04/2019, no qual foi decidido alterar a decisão de facto e julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão da 1.ª instância e absolvendo-se a Interveniente do pedido em que vinha condenada.
8. Desta feita, veio o A. pedir revista para o que formulou as seguintes conclusões:
Quanto à alteração da matéria de facto:
1.ª - Tribunal “a quo”, sugestionado pelas alegações da apelante, modificou a matéria de facto indicada na alínea d) da sentença, eliminando a expressão “marcha claudicante”. De facto, no âmbito do relatório clínico e exame médico, não se indica que a marcha é claudicante.
2.ª - Suscitada que foi, em alegações, a contradição entre o que foi dado por provado e o que resulta do exame pericial, também em sede de contra-alegações, a este propósito específico foi suscitada a possibilidade e necessidade de audição da prova testemunhal, mormente dos médicos e especialistas que efetuaram no decurso do tratamento do A., a análise clínica e estiveram com o A., afim de proceder à avaliação médica.
3.ª - Só no confronto da alegação por referência a documento e a alegação por referência aos depoimentos dos próprios médicos que efetuaram a análise médica se pode concluir se existe lapso, como se acredita, no próprio exame (perícia) médico, junto aos autos, ou não, tendo, após, reflexos na possibilidade e no sentido da alteração da matéria de facto;
4.ª - A alteração da matéria dada na alínea S) dos factos provados, não pode apenas atender, em exclusividade ao que resulta do dito exame pericial sem que, por evidência, confirme de forma evidente tudo o que se provou (por documentos e prova testemunhal) por respeito ao documento, referido nos autos, mormente a sua apreciação em sede de julgamento, que mereça a “revisão” da matéria de facto. Tal não foi feito pela Relação, pondo em causa, o que ora se suscita a alteração da matéria de facto, indicada como alínea S).
5.ª - É que, como é amplamente sabido e conhecido e até mesmo verificado, notoriamente e por evidência, nas diversas sessões de audiências do Tribunal da 1.ª Instância o A. apresenta, na realidade, marcha claudicante. A presença do próprio A. como sinistrado e a forma como se desloca, quer no Tribunal, quer na sua vida quotidiana, revela-se de uma forma evidente que não tem uma marcha normal. Trata-se pois de um erro notório que o Tribunal da Relação confirmou e que, quem assistiu ao julgamento, quem lida (e vê) com o A., sabe, e não pode necessariamente desconhecer que o A. efetivamente claudica.
6.ª - O Tribunal da Relação deu, erradamente, confirmando, apenas o resultado de um exame médico, por evidente lapso, não ouvindo – seguramente - as declarações (por prova testemunhal) de médicos, nem assistiu de facto à forma como “anda” o A. … reconhecendo, seguramente, que não é uma marcha normal, mas antes claudicante.
7.ª - Daí que, conhecendo a limitação dos poderes do STJ, também não se desconhece, no âmbito do n.º 3 do artigo 674.º do CPC, que este Tribunal pode efetivamente ter uma margem de intervenção que lhe permite a modificação, neste ponto em concreto da matéria de facto, porque, desde logo, se trata de um erro notório e patente verificado em concreto pela Relação e porque a alteração da matéria de facto, baseada em documento não pode olvidar, e deixar de ser comparável com declarações de médicos, por especialistas, que assistiram de forma direta à avaliação do Autor, ora sinistrado.
8.ª - Deve manter-se, pois, a matéria de facto apurada em 1.ª Instância, mormente a indicada na alínea S).
Quanto à questão de direito
9.ª - A questão em causa nos autos resume-se a saber e conhecer se, no âmbito do seguro desportivo - que o Tribunal da Relação não deixa de admitir como contrato aplicável aos autos nem tal foi posto em causa pela recorrente R. –, os danos não patrimoniais são, “in casu”, merecedores da tutela de direito;
10.ª - Entende o A. que, em conformidade com a sentença da 1.ª Instância, os danos não patrimoniais no âmbito do contrato de seguro desportivo ou em resultado de qualquer acidente desportivo estão cobertos pelo contrato de seguro, na melhor das interpretações, sendo efetivamente indemnizáveis;
11.ª - Como refere Menezes Cordeiro, o seguro de pessoas “é um desenvolvimento recente, tecido a partir do seguro de vida”, estando em causa “valores humanos de natureza não patrimonial”, especificidade que molda o conteúdo do contrato, assim se distinguindo do seguro de danos – neste último, joga-se, diversamente, “uma prestação, isto é, uma aportação patrimonial destinada a suprimir um dano”.
12.ª - E acrescenta o mesmo Autor, agora quanto aos danos morais, que, se a evolução do direito dos seguros leva a admitir já os danos morais no quadro do seguro de danos (este tradicionalmente ligado a direitos patrimoniais), com franca possibilidade de inclusão nos seguros de responsabilidade civil nos seguros de pessoas, a cobertura de tais danos é claramente de admitir, já que “aí, por definição, não há exigência de patrimonialidade”, sendo o respetivo risco segurável por comportar “um interesse digno de proteção legal”.
13.ª - Não podem os danos não patrimoniais ser ”irradiados” do contrato de seguro, porque, como por vezes é referido, não estarem textualmente indicados.
14.ª - Conforme reafirmado por jurisprudência abundante, o contrato de seguro refletido nos autos é, antes de mais, um contrato de grupo e o facto dos danos morais não terem sido individualizados, (dificilmente o seriam) nesse mesmo contrato, não poderá só por si dizer-se que se encontram excluídos. A exclusão pressupõe uma norma concreta ou uma condição particular expressamente transcrita. No seguro de grupo – sujeito ao Regime das Cláusulas Contratuais Gerais – o texto, em si do contrato, não é ajustado e negociável com o próprio praticante ou por quem contrata o...
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