ACÓRDÃO Nº 586/2024
Processo n.º 507/2024
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que são recorrentes A. e B., sendo recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), dos acórdãos daquele Tribunal, de 19 de março de 2024 e 23 de abril de 2024.
2. Pela Decisão Sumária n.º 367/2024, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento dos objetos dos recursos interpostos. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:
«4. Apreciemos, em primeiro lugar, o recurso interposto pela arguida A..
Segundo o requerimento de interposição, são duas as normas cuja constitucionalidade a recorrente pretende controverter:
i.Artigo 50.º do Código Penal, «na interpretação resultante da sentença», por violação do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, «no que toca à não suspensão da execução da pena» e
ii.Artigo 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no sentido «de que o Tribunal, na fase de julgamento, não tem de ordenar a inquirição de testemunhas quando o arguido teve a possibilidade de o fazer na fase da contestação».
5. Como resulta do relatório que antecede, nos presentes autos foram proferidos dois arestos pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Um datado de 19 de março de 2024, pelo qual se julgou o recurso interposto pelos arguidos da sentença condenatória do Tribunal de 1.ª instância; um segundo, proferido em 23 de abril de 2024, que apreciou as nulidades imputadas ao anterior, desatendendo-as.
No requerimento de interposição de recurso, a recorrente não identifica claramente o acórdão de que pretende recorrer. Ora, importa determinar qual a decisão recorrida, o que releva, desde logo, para a aferição dos requisitos e pressupostos da sua admissibilidade.
Em face do teor das normas cuja constitucionalidade a recorrente pretende controverter – uma reportada à determinação da pena, a outra às condições de admissão de meios de prova para a audiência de julgamento –, apenas o acórdão de 19 de março de 2024 pode estar em causa como decisão recorrida. Com efeito, a terem sido aplicadas como rationes decidendi, tais normas só o poderão ter sido nesse aresto, que julgou o mérito da causa, não já no aresto de 23 de abril de 2024, que verificou a possível existência de vícios que afetassem a precedente decisão, para o que apenas aplicou as normas que os prevêem, designadamente a norma do artigo 379.º, aplicável ex vi do disposto no artigo 425.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Penal.
6. Vejamos, em primeiro lugar, a norma atinente ao artigo 50.º do Código Penal.
Não obstante a norma em causa não se encontrar adequadamente enunciada no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade – a recorrente alude à forma como o artigo 50.º do Código Penal terá sido interpretado na sentença, mas não enuncia o seu conteúdo –, não se justifica lançar mão do convite ao aperfeiçoamento do requerimento previsto no artigo 75.º-A, n.º 6, da LTC, na medida em que se verifica a falta de um pressuposto do próprio recurso de constitucionalidade, por natureza insanável. O convite previsto no n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC «só é possível se a omissão for sanável, ou seja, se consistir numa falta do próprio requerimento, não tendo cabimento para o suprimento de falta de pressupostos de admissibilidade do recurso que seja insanável» (Acórdão n.º 99/2000).
De facto, na motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, a recorrente não suscitou a inconstitucionalidade de nenhuma norma reportada ao artigo 50.º do Código Penal, tendo somente apresentado argumentos visando mostrar que, no caso concreto, estavam reunidas as condições para que a pena de prisão viesse a ser suspensa na sua execução.
Não tendo a recorrente observado o ónus de suscitação prévia e processualmente adequada de uma questão de inconstitucionalidade, não se pode tomar conhecimento do objeto do recurso, nesta parte.
7. Também no que concerne à norma reportada ao artigo 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, se verifica a inobservância do ónus previsto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC.
É a própria recorrente que informa ter suscitado a inconstitucionalidade de tal norma somente no requerimento por via do qual arguiu a nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19 de março de 2024. Porém, tal suscitação é necessariamente posterior à decisão recorrida, pelo que não é idónea ao preenchimento do pressuposto do recurso contemplado no artigo 72.º, n.º 2, da LTC. Este preceito exige que a suscitação seja efetuada perante o tribunal recorrido e previamente à decisão de que se pretende vir a recorrer para o Tribunal Constitucional, em termos processualmente adequados a constituir aquele num dever de pronúncia sobre a questão de constitucionalidade.
Assim, e porque, pelas razões aduzidas, tal norma não foi aplicada pelo Tribunal recorrido como ratio decidendi no acórdão de 23 de abril de 2024, também nesta parte se justifica decisão de não conhecimento do objeto do recurso, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
8. Apreciemos agora o recurso interposto pelo arguido B..
Também o recorrente identifica ambos os acórdãos proferidos, em recurso, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, como as decisões de que pretende recorrer.
À luz do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade apresentado, o respectivo objeto é o seguinte:
i.Inconstitucionalidade das normas dos artigos 131.º, n.º 1 e 133.º, ambos do Código de Processo Penal, com fundamento em «dualidade de critérios, violador do princípio do contraditório, porquanto o Tribunal ignorou completamente os depoimentos das testemunhas por si apresentadas, com a alegação de uma ser sua prima, duas suas vizinhas e outra sua conhecida, quando é certo que tais circunstâncias não podiam impedir a relevância dos respetivos depoimentos», por violação dos artigos 20.º, n.º 4 e 32.º, n.os 1 e 2, da Constituição;
ii.Inconstitucionalidade do artigo 50.º do Código Penal, «ao não interpretar aquele artigo 50.º do Código Penal com a exigência de no caso concreto ser devida a suspensão da execução da pena, mostrando-se a prisão efetiva manifestamente desproporcionada e/ou excessiva», por violação do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição;
iii.Inconstitucionalidade decorrente de «não obstante ter o douto Acórdão assumido que a primeira instância errou ao considerar como ilícito o período anterior a 12 de maio de 2021 quando a criminalização da chamada droga sintética só se verificou a partir da referida data, substituiu-se à primeira instância, considerando que tal importante circunstância não altera a pena aplicada, o que, de modo algum se compreende, decisão de todo inesperada (decisão surpresa) e, sendo certo que não havendo lugar a outro grau de recurso ordinário, configura-se que a interpretação feita pelo Tribunal da Relação que poderia decidir tal questão, subtraindo à defesa o duplo grau de jurisdição», por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição e
iv.Inconstitucionalidade da «interpretação adotada no douto Acórdão de 19 de março de 2024 no sentido de que pode ser declarada a favor do Estado uma quantia apreendida num processo sem que conste da factualidade dada como provada a sua proveniência ilícita», por violação dos artigos 20.º, n.º 4, 32.º, n.º 1 e 205.º, n.º 1, da Constituição.
9. Segundo o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º, da Constituição, e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, «identificando-se assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objecto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objecto de tal recurso» (v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98).
Consideremos o enunciado i.
O recorrente alega que o Tribunal recorrido, ao não ter conferido credibilidade a determinadas testemunhas por si arroladas, em virtude das relações de parentesco ou proximidade que mantinham consigo, violou o princípio do contraditório e perfilhou uma dualidade inconstitucional de critérios, na medida em que as tratou como não podendo prestar depoimento.
Na verdade, o recorrente questiona somente a conformidade jurídica da apreciação da prova feita pelo Tribunal recorrido, designadamente quanto à valia que conferiu aos depoimentos das aludidas testemunhas. Tal forma de colocar a questão demonstra que o recorrente pretende sindicar a própria decisão judicial em causa, imputando-lhe – e não a alguma normalegal pela mesma aplicada, designadamente alguma norma extraível dos artigos 131.º, n.º 1 e 133.º do Código de Processo Penal – a violação do parâmetro constitucional que identifica.
10. Vejamos agora a formulação descrita em ii.
Como se vê, o recorrente contesta uma dada interpretação...