Acórdão n.º 583/2016

Data de publicação09 Dezembro 2016
SectionParte D - Tribunais e Ministério Público
ÓrgãoTribunal Constitucional

Acórdão n.º 583/2016

Processo n.º 170/2016

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - A Causa

1 - Amadeu dos Anjos Dias e mulher Maria José Batista da Silva Branco Dias (os ora Recorrentes) intentaram contra Júlio da Conceição Coelho e mulher, Maria do Rosário Fernandes Pereira Coelho, João Miguel Cosme Saiote e José João Cosme Saiote uma ação declarativa sob a forma de processo ordinário, a qual correu os seus termos nas (hoje extintas) Varas Mistas de Loures com o n.º 9065/12.1TCLRS. Nesta ação pretenderam os Autores exercer um direito de preferência, decorrente da posição de arrendatários habitacionais, formulando a tal respeito os seguintes pedidos: (a) a título principal, que lhes fosse reconhecido o direito de preferência como arrendatários numa venda, que teve lugar em 10/07/2012 e que os segundo e terceiro Réus efetuaram aos primeiros, de um prédio, referindo-se a preferência, neste caso, ao 1.º andar correspondente ao locado; e, (b) a título subsidiário, para a hipótese de não poder ser atendido o pedido principal por o prédio não se achar submetido ao regime de propriedade horizontal, nem ser possível a constituição desse regime por decisão judicial, que lhes fosse reconhecido, com a mesma base, o direito de preferência em relação à venda de todo o prédio. Para integral compreensão da situação, sublinha-se que a venda que desencadeou a preferência incidiu sobre a totalidade de um prédio urbano, composto de vários pisos e não constituído em propriedade horizontal, pretendendo os Autores, que são arrendatários apenas de um apartamento no 1.º andar, preferir quanto à sua parte (ao 1.º andar) e subsidiariamente quanto à totalidade do prédio objeto dessa venda.

Contestaram os Réus estas pretensões, defendendo não estarem integrados os pressupostos da preferência legal atribuída ao arrendatário habitacional.

1.1 - Findos os articulados, foi proferido despacho saneador (fls. 131/141) com conhecimento do mérito, julgando a ação totalmente improcedente. Em suma, considerou-se que o artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil (CC), na redação introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, restringe o exercício da preferência do arrendatário aos casos em que exista autonomização jurídica do local arrendado, não podendo esta, referida que está a um determinado local, ser transformada em mecanismo para a aquisição de todo o prédio. Consequentemente, o direito de preferência apenas tem a extensão do direito ao arrendamento. Assim, tratando-se de venda da totalidade do prédio, os Autores, como arrendatários de uma sua parte não autonomizada, não gozam do direito de preferência, em especial. Foi o que se concluiu no saneador-sentença e determinou a improcedência da ação.

1.2 - Inconformados com a decisão, os Autores dela interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, alegando, designadamente, o seguinte:

"[...]

III - O direito de preferência do locatário habitacional tem dignidade constitucional

5 - O direito de preferência do locatário habitacional foi instituído pela Lei n.º 63/77, de 25.08, para dar execução ao comando do artigo 65.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, como resulta do preâmbulo desta lei ordinária.

E foi instituído por ser um dos meios de o locatário habitacional aceder a habitação própria, finalidade esta que o Estado ficou obrigado, constitucionalmente, a prosseguir.

Ficou - e continua estando - obrigado a isso já que as sucessivas revisões constitucionais mantiveram aquele comando, ínsito, agora, na alínea c) do n.º 2 do dito artigo 65.º, onde se prescreve que incumbe ao Estado 'estimular... o acesso à habitação própria'.

[...]

CONCLUSÕES

[...]

7.ª - A ordem jurídica nacional criou os meios que permitem exercer o direito de preferência do locatário habitacional, alargando-o a todo o prédio, no caso de o locado não se achar legalmente autonomizado, como é Jurisprudência quase uniforme e como decorre do artigo 1029.º do C.P.C.

8.ª - Entender o nosso ordenamento jurídico, no plano da lei ordinária, como restringindo ou visando restringir esse direito, quando, nos termos da sentença apelada, o mesmo 'não se pode exercer', seria propósito ou interpretação gravemente ofensiva do nosso ordenamento constitucional, já que o imperativo constitucional, de acesso à habitação própria, que presidiu à criação da preferência na locação habitacional, se mantém em vigor, atualmente, na alínea c) do n.º 2 do artigo 65.º da CRP. (vide o n.º 3 do mesmo normativo constitucional).

[...]".

1.2.1 - Foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa (fls. 184/192), julgando improcedente a apelação, com base em fundamentação idêntica à da primeira instância quanto ao alcance do artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC.

1.3 - Persistentemente inconformados, os Autores interpuseram recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, alegando, inter alia, o que ora se transcreve:

"[...]

A invocada inconstitucionalidade traduz-se na violação do princípio de acesso à habitação própria consagrado no art. 65.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e na violação do princípio da igualdade, consagrado no art. 13.º do mesmo diploma fundamental.

[...]

[A]rguiu-se de inconstitucional [...] a interpretação restritiva que a primeira instância fez do disposto no art. 1091.º, alínea a) do CC, ao sustentar e decidir que o direito de preferência do locatário habitacional só existe se o local arrendado tiver autonomização jurídica.

[...]

CONCLUSÕES

[...]

14.ª

A tese das instâncias cria uma divisão dicotómica nos arrendatários: os que podem e os que não podem exercer o direito de preferência (os que têm e os que não têm esse direito, para a segunda instância).

15.ª

A tese das instâncias cria inquilinos de primeira e inquilinos de segunda, sendo de presumir que os de segunda serão mais numerosos nos grandes centros urbanos, onde ainda há prevalência de prédios não submetidos ao regime de propriedade horizontal.

[...]

17.ª

Mas a tese das instâncias vai mais fundo: além de violar o princípio constitucional, ínsito no art. 65.º da CRP., de acesso à habitação própria, relativamente a muitos milhares de inquilinos, viola o princípio da igualdade perante a lei, ínsito no art. 13.º da lei fundamental.

18.ª

Para as instâncias, todos os arrendatários serão iguais perante a lei, mas, como se viu, uns serão mais iguais que outros: os arrendatários de frações autónomas.

[...]

20.ª

Na conclusão 8.ª do recurso de apelação arguiu-se de inconstitucional a interpretação restritiva que a primeira instância fez - e aplicou - do disposto no art. 1091.º do C.C.

[...]

22.ª

Se o art. 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC é inconstitucional se aplicado restritivamente, como o fez a primeira instância, por mais forte razão o é a interpretatio abrogans, do mesmo normativo, feita pela segunda instância.

[...]" (sublinhados acrescentados).

1.3.1 - No Supremo Tribunal de Justiça, admitida a revista excecional, foi proferido Acórdão negando a pretensão dos Autores. Aí se fixou o seguinte entendimento quanto ao direito de preferência do arrendatário habitacional:

"[...]

[O] sentido a extrair do disposto no artigo 1091.º, n.º 1, do CC - coincidente com o extraído pelas instâncias - é o seguinte:

1. o direito de preferência do arrendatário está limitado ao local arrendado, objeto do contrato de arrendamento, se se tratar de bem jurídico autónomo;

2. caso o prédio vendido não tenha sido constituído em propriedade horizontal, o arrendatário de parte dele, sem autonomia jurídica, não tem direito de preferência sobre ele ou sobre a totalidade do prédio, em caso de venda ou dação em cumprimento deste último.

[...]" (sublinhado acrescentado).

Especificamente sobre a questão de constitucionalidade, referiu-se o seguinte:

"[...]

Os recorrentes entendem que a interpretação do artigo 1091.º do CC no sentido firmado pelas instâncias, e agora por este Tribunal, viola o disposto nos artigos 13.º e 65.º da CRP.

[...]

Comece-se por referir que não se alcança - nem os recorrentes explicam - em que medida a interpretação do disposto no artigo 1090.º do Código Civil, na dimensão normativa de que os arrendatários de parte alíquota do prédio não têm direito de preferência na sua venda, briga com o comando constitucional afirmado no art. 65.º da CRP.

Nele, apenas se afirma o direito dos cidadãos à habitação e não à habitação própria, como dito pelos recorrentes na mira de justificarem, por detrás desse direito, a consagração do direito de propriedade sobre a habitação.

O que o preceito afirma é o direito à habitação, que no caso dos autores está assegurado por via do contrato de arrendamento, e não também, o direito de propriedade ou à habitação própria, com o que poderia contender o não reconhecimento do direito de preferência.

Também dele não consta, na densificação desse direito, qualquer dever de o Estado implementar política conducente à obtenção de habitação própria no âmbito dos contratos de arrendamento, o que poderia sugerir, entre outras soluções, a eleição do direito de preferência do arrendatário na compra do imóvel arrendado como sua concretização primacial.

Portanto, por aqui, não ocorre qualquer inconstitucionalidade material.

E, também não se crê que ela existe por putativa afronta ao artigo 13.º da CRP.

O significado da redação de tal princípio está, por um lado, na proibição das desigualdades (sentido primário negativo), que consiste na vedação de privilégios e de discriminações, e, por outro lado, na imposição de tratamento igual de situações iguais (ou tratamento semelhante de situações semelhantes) e de tratamento desigual de situações desiguais (sentido positivo) - Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, p. 121.

[...]

O princípio constitucional da igualdade caracteriza-se, pois, como proibição do arbítrio, permitindo apenas que se possam estabelecer diferenciações de tratamento, razoável, racional e objetivamente fundadas, sem as quais se incorrerá nesse arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objetivamente...

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