Acórdão Nº 578/14 de Tribunal Constitucional, 28-08-2014

Número Acordão578/14
Número do processo837/14
Data28 Agosto 2014
Classe processualPreventivo

ACÓRDÃO Nº 578/2014

Processo n.º 837/14

Plenário

Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. O Representante da República para a Região Autónoma da Madeira (RAM) requereu, ao abrigo do n.º 2, do artigo 278.º, da Constituição da República Portuguesa, e dos artigos 51.º, n.º 1 e 57.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade com a Constituição da norma constante do artigo 9.º, n.º 1, in fine, do Decreto que lhe foi enviado para assinatura como Decreto Legislativo Regional, que pretende adaptar à Região Autónoma da Madeira o regime jurídico constante do Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho (com as alterações promovidas pelo Decreto-Lei n.º 91/2013, de 10 de julho).

2. O requerente fundamenta o seu pedido, em síntese, na seguinte ordem de considerações:

Considera o requerente que a parte final do artigo 9.º, n.º 1, do Decreto em apreço (doravante apenas “Decreto”), ao determinar que os encarregados de educação que pretendam que os seus educandos não frequentem atividades educativas de natureza moral e religiosa tenham que manifestar essa vontade negativa, em lugar de expressamente afirmarem que o pretendem, suscita questões de constitucionalidade já apreciadas pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 423/87.

Neste aresto, em face de uma norma com idêntico teor – maxime, o artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 323/83, de 5 de julho, na parte em que aí se exigia daqueles que não desejassem receber o ensino da religião e moral católicas uma declaração expressa nesse sentido – concluiu o Tribunal pela inconstitucionalidade orgânica e material do preceito. O apuramento de um vício de competência ficou a dever-se ao facto de o regime em causa dizer respeito a direitos, liberdades e garantias, “matéria de reserva relativa da Assembleia da República, sobre a qual o Governo apenas pode legislar quando munido de uma lei de autorização legislativa”; já o vício material fundou-se na violação do artigo 41.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição.

No entender do requerente, mantêm-se, a propósito da norma em crise, as razões que levaram o Tribunal Constitucional a declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do acervo normativo mencionado supra. Não releva, portanto, a circunstância de naquela norma não se encontrar menção a “certa confissão religiosa”, porquanto “uma norma que exija daqueles que não desejam receber o ensino da religião e moral católica uma declaração expressa nesse sentido suscita os mesmos problemas, para este efeito, que uma norma que exija daqueles que não desejam receber o ensino de qualquer religião e moral uma declaração expressa nesse mesmo sentido”.

Conclui o requerente, portanto, que o artigo 9.º, n.º 1, in fine, do Decreto, é orgânica e materialmente inconstitucional, por violação, respetivamente, do disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea b) e 227.º, n.º 1, alínea a)[por lapso, ter-se-á indicado alínea b)], da Constituição, e dos artigos 41.º, n.ºs 1 e 3 e 43.º, n.ºs 2 e 3, do mesmo diploma, numa leitura destes últimos conforme ao disposto no artigo 26.º, n.º 3, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH).

3. O autor da norma, tendo sido notificado para, querendo, responder, veio oferecer o merecimento dos autos.

4. Discutido o memorando, cumpre formular a decisão de acordo com a orientação definida.

II. Fundamentação

A. Delimitação do objeto do pedido

5. A norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada tem a seguinte redação (os itálicos são nossos):

«(...)

Artigo 9.º

Formação pessoal e social dos alunos

1 – As escolas, no âmbito da sua autonomia e de acordo com o seu projeto educativo, devem desenvolver atividades que contribuam para a formação pessoal e social dos alunos, designadamente nas áreas da educação para a segurança e prevenção de riscos, convivialidade, educação para a saúde, educação financeira, educação para os media, educação para o consumo, educação para o empreendedorismo e educação moral e religiosa, direitos humanos, cidadania e inclusão, educação ambiental e desenvolvimento sustentável, de oferta obrigatória para as escolas da rede pública e de frequência obrigatória para alunos, salvo declaração expressa em contrário do encarregado de educação.

(...)»

6. A delimitação do objeto do pedido não se reveste, neste contexto, de dificuldade acrescida, visto que o segmento normativo impugnado resulta claramente do pedido efetuado pelo requerente. Pretende-se, com efeito, que o Tribunal aprecie a constitucionalidade da norma constante do artigo 9.º, n.º 1, do Decreto que visa adaptar à Região Autónoma da Madeira o regime constante do Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho (com as alterações promovidas pelo Decreto-Lei n.º 91/2013, de 10 de julho), na parte em que dele decorre que os encarregados de educação que não queiram que os seus educandos frequentem atividades de educação moral e religiosa tenham de manifestar essa vontade negativa.

Dois pontos carecem, ainda assim, de relevo suplementar.

Em primeiro lugar, é notório que, talqualmente delimitado, o pedido incide sobre a exigência de uma declaração expressa em sentido contrário à frequência, pelos alunos, de “atividades de educação moral e religiosa”, independentemente, portanto, de tais atividades se reportarem ao ensino da Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC) ou ao ensino de outro tipo de educação moral e religiosa, como abertamente admite o artigo 24.º, da Lei n.º 16/2001, de 22 de junho, na sua atual redação (Lei da Liberdade Religiosa).

No entanto, como expressamente se adita, o ensino religioso nas escolas públicas passa sobretudo pela disciplina de EMRC, até pela densidade do substrato normativo que abertamente se reporta a essa disciplina, onde se destaca o artigo 19.º, da Concordata celebrada entre o Estado Português e a Santa Sé, assinada em 18 de maio de 2004 na Cidade do Vaticano, ratificada e aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 74/2004, de 16 de novembro, o artigo 50.º, n.º 3, da Lei n.º 46/86, de 14 de outubro, na sua atual versão (Lei de Bases do Sistema Educativo), e o Decreto-Lei n.º 70/2013, de 23 de maio, que estabelece o regime jurídico da frequência e da organização da disciplina de EMRC.

Depois, é preciso notar que o pedido não abrange outras questões também já analisadas pela jurisdição constitucional, nos Acórdãos n.ºs 423/87 e 174/93, e que se prendem com a compatibilidade com os princípios constitucionais da separação entre o Estado e as igrejas (cfr. o artigo 41.º, n.º 4, da Constituição) e da não confessionalidade do ensino público (cfr. o artigo 43.º, n.º 3, da Constituição) de alguns aspetos do regime jurídico da frequência de EMRC. Referimo-nos, por exemplo, ao facto de a disciplina de EMRC integrar o currículo nacional e ser de oferta obrigatória por parte dos estabelecimentos de ensino (cfr. o artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 70/2013, de 23 de maio) ou de os docentes da disciplina serem contratados e pagos pelo Estado (cfr. o artigo 8.º, do Decreto-Lei n.º 70/2013, de 23 de maio).

B. Enquadramento da questão de constitucionalidade

7. No quadro da vigência da Constituição de 1933, a Religião Católica emergia inequivocamente como a “religião da Nação Portuguesa” (cfr. o artigo 45.º, n.º 1, da Constituição de 1933, na redação conferida pela Lei n.º 2048, de 11 de junho de 1951), ou pelo menos, desde a revisão constitucional de 1971, como a “religião tradicional da Nação Portuguesa” (cfr. o artigo 46.º, da Constituição de 1933, na redação conferida pela Lei n.º 3/71, de 16 de agosto). Assim se explica o disposto na Base VII, da Lei n.º 4/71, de 1 de agosto, sobre liberdade religiosa, onde, no n.º 1, se lia que “o ensino ministrado pelo Estado será orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do país”, proposição mais tarde reafirmada pela Lei n.º 5/73, de 25 de julho, sobre as bases do sistema educativo (cfr. a alínea a), do n.º 2, da Base III). A “para-confessionalidade” do ensino público, reveladora de um estádio de “imbricação” entre o Estado e a Igreja Católica, era igualmente requerida pelo artigo XXI da Concordata celebrada entre o Estado Português e a Santa Sé, de 7 de maio de 1940, (mais tarde confirmada pelo artigo II, do Protocolo Adicional de 15 de fevereiro de 1975).

A entrada em vigor da Constituição de 1976 conferiu renovado rumo às relações entre o Estado e as igrejas, deixando a lei fundamental de integrar qualquer referência distintiva à Igreja Católica, circunstância que provocou a desatualização de diversas normas constantes da Concordata de 1940, entre elas o já supramencionado artigo XXI, 1.ª parte (cfr., neste sentido, Jorge Miranda, «Liberdade Religiosa, Igrejas e Estado em Portugal», Nação e Defesa, ano XI, n.º 39, 1986, pp. 133). O Decreto-Lei n.º 323/83, de 5 de julho, ambicionou, conforme consta dos respetivos considerandos preambulares, “proceder à regulamentação do preceito concordatário no que respeita à lecionação da disciplina de Religião e Moral Católicas”, preceituando, no seu artigo 2.º, n.º 1, que “ministrar-se-á o ensino da Religião Moral Católicas (...) aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, não declararem...

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