ACÓRDÃO Nº 577/2019
Processo n.º 99/19
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A., S.A., recorrente nos presentes autos em que é recorrida a Autoridade Tributária e Aduaneira, interpôs recurso para uniformização de jurisprudência para o Supremo Tribunal Administrativo de uma decisão arbitral proferida no Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), invocando oposição com decisões arbitrais proferidas no mesmo Centro sobre idêntica questão de direito. O recurso não foi admitido.
Inconformada, a ora recorrente reclamou para a conferência. Por acórdão de 28 de novembro de 2018, o Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo indeferiu a reclamação e confirmou o despacho reclamado, considerando que, nos termos do artigo 25.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na sua redação originária, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é apenas suscetível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo.
2. É deste acórdão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, seguidamente abreviada como “LTC”), tendo em vista a fiscalização da constitucionalidade do artigo 25.º, n.º 2, do RJAT, na sua redação originária, quando interpretado no sentido de não ser admissível o recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, para uniformização de jurisprudência, quando as decisões em oposição, relativamente à mesma questão fundamental de direito, são ambas de tribunais arbitrais em matéria tributária (“TAMT”).
3. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal Constitucional, foram as partes notificadas para alegar.
Apenas a recorrente apresentou alegações, que concluiu nos seguintes termos:
«A - O presente recurso tem por objeto o Acórdão proferido pela conferência do STA, que decidiu não admitir o recurso por oposição de Acórdãos entre decisões dos TAMT, interposto pela Recorrente, argumentando que tal recurso extravasa o âmbito da via recursiva da oposição por Acórdãos tal como esta se encontra prevista no artigo 25.º n.º 2 do RJAT, não sendo de interpretar de forma atualizadora e extensiva o referido preceito legal, de modo a que este abranja também a oposição entre Acórdãos proferidos pelos TAMT, como defendido pela Recorrente.
B - A interpretação literal do artigo 25.º do RJAT sufragada pelo STA e reiterada pela conferência desse Tribunal afigura-se ferida de um conjunto de inconstitucionalidades materiais decorrentes da violação do Princípio da Igualdade (artigo 13.º da CRP), do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º CRP) e, ainda, dos Princípios da justiça, segurança jurídica e proteção da confiança (artigo 2.º da CRP).
C - Impõe-se uma interpretação conforme à CRP do artigo 25.º n.º 2 do RJAT, da qual resulta ser admissível o acesso à via recursiva consubstanciada no recurso por oposição de acórdãos quanto tal oposição se verifique entre Acórdãos proferidos pelos TAMT.
D - A interpretação literal do referido artigo 25.º do RJAT sufragada pelo STA é violadora do Princípio da Igualdade, constante do artigo 13.º da CRP, uma vez que desconsideram as marcadas semelhanças entre os TAMT e os TCA, as quais não podem ser descuradas aquando da comparação das vias recursivas por oposição de Acórdãos.
E - Não é de admitir, atentas as referidas semelhanças, que o legislador preveja a recorribilidade das decisões dos TAMT quando estas se revelem em oposição a decisões dos TCA e do STA, ao mesmo tempo que a nega quando as referidas decisões estejam em marcada oposição com decisões proferidas por outros TAMT.
F - A omissão da possibilidade de interposição de recurso por oposição de acórdãos proferidos pelos TAMT deveu-se tão-só ao facto de o legislador não ter equacionado, aquando do desenho do RJAT (altura em que inexistia qualquer experiência em matéria de arbitragem tributária), que a oposição entre decisões dos TAMT poderia sobrevir surgindo assim uma necessidade de harmonização de Acórdãos.
G - A interpretação literal do artigo 25.º do RJAT sufragada pelo STA e confirmada pela conferência desse Tribunal é violadora do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º, n.º 1 da CRP.
H - A prossecução, pela arbitragem tributária, de uma maior celeridade da resolução de litígios de natureza fiscal em comparação com a jurisdição comum, não pode implicar restrições ou diminuições das garantias de defesa do contribuinte que não sejam toleradas pelo Princípio da Proporcionalidade.
I - A avaliação da maior ou menor celeridade do processo nos Tribunais Arbitrais tem de se efetuar por comparação à realidade dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a qual se afigura de tal modo morosa, que não será a rejeição do recurso de oposição entre Acórdãos dos TAMT que justificará uma menor celeridade da arbitragem tributária, não a tornando por isso legítima.
J - Os custos processuais associados à admissibilidade do recurso por oposição de Acórdãos dos TMT não são, de modo algum, suficientes para que se possa concluir que a mesma levará a que a velocidade do processo nos Tribunais Arbitrais se reduza em termos que a aproxime da velocidade do processo nos Tribunais Administrativos Fiscais.
K - Outros meios contenderiam em menor grau com as garantias de defesa do contribuinte como, a título de exemplo, a redução do número de prorrogações de prazo para decisão pelo Tribunal Arbitral, ou a diminuição do próprio prazo das mesmas, previsto no artigo 21.º do RJAT, pelo que a rejeição do recurso por oposição de Acórdãos do TAMT conflitua com o Princípio da Proporcionalidade.
L - O requisito da proporcionalidade stricto sensu falha ainda, pois a celeridade não pode ser o objetivo último de um regime processual, concebido este para conciliar a celeridade do processo de decisão com a tutela dos direitos dos cidadãos.
M - A interpretação literal que ora se põe em causa é violadora dos princípios da justiça, segurança jurídica e proteção da confiança, ínsitos no artigo 2.º da CRP.
N - A efetiva justiça só é atingida se observados os princípios da segurança e proteção da confiança.
O - Em matéria fiscal, a segurança jurídica assume uma dimensão essencial de estabilidade e previsibilidade: os sujeitos passivos e a própria AT têm de ter a certeza das consequências fiscais que determinado ato ou facto implicam, objetivo que apenas se atinge admitindo-se o recurso por oposição de Acórdãos quando a contradição se verifica face a decisões emanadas dos TAMT.
P - A necessidade de harmonização ainda é mais premente em situações como a presente em que a contradição entre decisões dos TAMT põe em causa o princípio da legalidade e da tipicidade fiscal previsto no artigo 103.º, n.º 2 da CRP, o que contribui para a incerteza quanto à incidência subjetiva e para o incumprimento do objetivo último do Direito Fiscal que é o de assegurar a tributação apenas em conformidade com a lei.
Q - Esta incerteza afeta não só o sentido da jurisprudência mas, concomitantemente, o sentido e interpretação da própria lei fiscal, o que não pode ser admitido.
R - O próprio Governo da República Portuguesa reconhece a omissão na qual o RJAT incorreu, pelo que se impõe, no Estado de Justiça consagrado na CRP, uma interpretação que reconheça o verdadeiro objetivo do legislador: promover a celeridade, ao mesmo tempo assegurando as garantias de defesa do contribuinte».
Cumpre apreciar e decidir
II. Fundamentação
4. O RJAT prevê um regime de recursos próprio, que, tendo em conta a natureza da arbitragem enquanto meio alternativo de utilização facultativa de resolução de litígios no domínio tributário, procede a um enquadramento normativo devidamente estruturado nos diferentes aspetos relevantes da arbitragem naquele domínio. Por atender às exigências específicas da arbitragem em matérias de direito público, trata-se de um regime de referência para a arbitragem do direito administrativo geral (neste sentido, v., por exemplo, a síntese de Mário Aroso de Almeida, “Breves apontamentos sobre a arbitragem de Direito Administrativo em Portugal” in Arbitragem em Direito Público, e-book, CAAD, 2019, pp. 57 e ss., acessível a partir da ligação https://fgvprojetos.fgv.br/publicacao/arbitragem-em-direito-publico). Daí não se segue, todavia, que as concretas soluções consagradas não sejam objeto de discussão e que, para o mesmo problema, se divisem diversas alternativas.
Um dos temas mais controversos respeita justamente à (i)recorribilidade das decisões arbitrais junto de tribunais da ordem dos tribunais administrativos e fiscais (cfr. idem, ibidem, p. 59; v. também Carla Castelo Trindade, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado, Almedina,...