Acórdão nº 56/14.9T8VNF.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 24-10-2019
Data de Julgamento | 24 Outubro 2019 |
Case Outcome | NEGADA REVISTA |
Classe processual | REVISTA |
Número Acordão | 56/14.9T8VNF.G1.S1 |
Órgão | Supremo Tribunal de Justiça |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I – Relatório
1. AA intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra BB, pedindo que:
“a) seja declarado que é dono e legítimo proprietário do imóvel identificado no artigo 1º da petição inicial;
b) em consequência, a Ré seja condenada a entregar-lhe imediatamente o mesmo imóvel, inteiramente livre de pessoas e das suas coisas;
c) a Ré seja condenada a pagar-lhe uma indemnização decorrente da ocupação abusiva e não consentida que vem fazendo do imóvel, indemnização que deverá ter por base o valor locativo do imóvel no mercado livre de arrendamento, valor esse que entende não dever ser inferior a € 500/mês, devendo a indemnização ser calculada desde o início da ocupação abusiva e até à efetiva entrega da fração livre de pessoas e de coisas da Ré, liquidando o valor já em dívida desde o seu início, isto é, desde Maio de 2014, inclusive, em € 2.000, indemnização sobre cujo valor global devem acrescer juros de mora à taxa legal desde a citação até efetivo pagamento;
d) a Ré seja condenada ao pagamento de uma indemnização por danos causados pela ocupação e deterioração do imóvel, cujo valor apenas poderá ser liquidado em função do estado em que a coisa for entregue, a relegar para o respetivo procedimento de liquidação”.
Alega, em síntese, que adquiriu metade daquele imóvel por sucessão hereditária resultante do óbito de sua mãe, tendo adquirido a outra metade por escritura pública de compra e venda ao seu pai, o qual tem registado a seu favor.
Acontece que, com o seu consentimento viveu nesse imóvel, até ..., seu pai entretanto falecido, casado com a Ré, pelo que no dia do seu funeral solicitou a entrega do imóvel á ré, que não lho entregou até hoje.
Acrescenta que a Ré não paga qualquer valor pela ocupação do imóvel, o qual tem um valor locatício actual de €500 pelo menos, além de que dessa ocupação decorre o desgaste e deterioração do imóvel, cujo valor só poderá ser liquidado em função do seu estado à data da entrega.
2. A Ré contestou, dizendo que casou com o falecido pai do A em 10 de Maio de 1990, vivendo ambos como casal no referido imóvel.
Padecendo o falecido marido de algumas enfermidades, nomeadamente de cegueira progressiva, a ré tratou-o com desvelo, proporcionando-lhe cuidados esmerados, pelo que o mesmo, agradecido, contemplou-a em testamento, legando-lhe o usufruto vitalício de toda a sua herança e, caso o seu filho discordasse desse usufruto, ou não o cumprisse, deixava-lhe a quota disponível de todos os seus bens.
Deduziu ainda reconvenção pedindo:
“a) que seja declarado nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda em apreço nos autos, por virtude de o mesmo revestir as características de contrato simulado;
b) cumulativamente, que o Réu seja condenado a reconhecer que tal contrato é simulado e, em consequência, nulo e de nenhum efeito jurídico;
c) seja ordenado o cancelamento na Conservatória do Registo Predial de …, no prédio descrito com o nº ...-..., do registo correspondente à Ap. 77 de 2005.09.21 – compra, bem como o cancelamento da Ap. 78 de 2005.09.21-usufruto e ainda o cancelamento de quaisquer registos que venham a aparecer posteriores à entrada da ação, ficando do prédio, metade registado em nome do seu titular CC, passando a fazer parte do acervo da sua herança
d) cumulativamente, que o Réu seja condenado a reconhecer que metade do prédio nº ... pertence à herança por óbito de CC, fica sujeito aos regimes legais impostos pelo apanágio do cônjuge sobrevivo e pelo direito de habitação da casa de morada de família e direito de uso do recheio;
e) o Réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 500 pelas benfeitorias articuladas”.
Alega para o efeito que só tomou conhecimento da existência da escritura de venda da raiz da casa de morada de família após o falecimento do marido, sendo certo que não houve intenção deste de vender nem do Autor de comprar o imóvel, e que o declarante vendedor não recebeu a quantia de € 10.000 nem o comprador pagou qualquer montante, só acordando neste negócio para a prejudicar, a fim de a ver afastada da legítima, tanto que também se dirigiram ao banco onde o marido levantou todo o dinheiro de ambos e o confiou à guarda do Autor.
Mais alega que após a morte do marido teve de proceder a extensas limpezas, despendendo a quantia de € 150 para conservação das partes interiores da habitação, e teve de adquirir tintas e contratou pessoal para proceder à pintura, no que despendeu € 250.00.
O Autor replicou, argumentando que o progenitor cegou completamente, tornando-se totalmente dependente de terceiros para as tarefas do dia-a-dia e para se deslocar; que em 2001 o pai tomou conhecimento que a Ré mantinha uma relação extramatrimonial com um vizinho e, de forma mais ocasional, também relações de sexo com outros homens; que a Ré deixou de prestar ao seu pai qualquer cuidado ou atenção, pelo que passou a ser ele quem lhe prestava esses cuidados, sendo certo que o valor da reforma do progenitor era insuficiente para assegurar o pagamento das despesas mensais.
3. Tramitados regularmente os autos foi proferida a seguinte decisão:
“Em face do exposto, o Tribunal: I. Julgando a ação parcialmente provada e procedente:
a) declara o Autor AA proprietário do prédio urbano constituído por casa de habitação com quintal, com a área coberta de 48 m2 e com a área descoberta de 278 m2, sito no Lugar do ..., da freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...;
b) condena a Ré BB:
i) a entregar ao Autor, imediatamente, o prédio identificado em a) livre de pessoas e de coisas;
ii) a pagar ao Autor, a título de indemnização pela ocupação do prédio, o montante mensal que vier a ser apurado em incidente de liquidação, correspondente ao seu valor locativo desde Maio de 2014 até à efetiva entrega livre de pessoas e de coisas;
c) absolve a Ré do pedido formulado sob a alínea d).
II. Julgando a reconvenção parcialmente provada e procedente:
a) condena o Reconvindo AA a pagar à Reconvinte BB o montante que vier a ser apurado em incidente de liquidação relativamente à poda das duas árvores existentes no quintal do imóvel;
b) absolve o Reconvindo dos restantes pedidos formulados pela Reconvinte.
Custas da ação a cargo do Autor e da Ré na proporção de 9/10 e 1/10, respetivamente, e da reconvenção a cargo da Reconvinte e do Reconvindo na proporção de 9/10 e 1/10, respectivamente…”.
4. Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a ré interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães, que por acórdão datado de 29 de abril de 2019, decidiu o seguinte:
«Pelo exposto, Julga-se procedente a Apelação e em consequência:
Julga-se improcedente a acção (relativamente a metade do imóvel reivindicado nos autos pelo A);
Julga-se procedente a reconvenção e em consequência:
- Declara-se nulo o contrato de compra e venda em apreço nos autos;
5. Inconformado, recorre o Autor para este Supremo Tribunal, formulando, nas suas alegações de recurso, as seguintes conclusões:
«1. A decisão sobre a admissibilidade do uso de presunções judiciais pelo Tribunal da Relação depende do respeito, ou não, pelos pressupostos legalmente estabelecidos quanto ao exercício dos seus poderes: a utilização de presunções não pode ofender norma legal, ser ilógica, partir de factos não provados, alterar os factos provados que elege em factos-premissa de tais presunções, concluir por factos que contrariem as respostas afirmativas ou negativas decorrente da decisão inalterada proferida sobre a matéria de facto, ou que conduzam a factos não alegados.
2. A decisão recorrida julgou provados, por presunção judicial, os seguintes factos:
"O vendedor CC e o A (seu filho) não tiveram o intuito de realizar qualquer contrato de compra e venda que tivesse como objecto a (metade) da raiz do prédio identificado no nº 1 da petição inicial (.../... - ..., art.º ....° urbano - União das freguesias de ... e ...)”.
“O CC não vendeu nem quis vender ao A a metade da raiz do referido prédio, assim como o A não comprou, nem quis comprar ao seu pai CC a metade da raiz do mesmo prédio”.
“Tanto o CC como o AA acordaram em realizar tal contrato de compra e venda com o objectivo de desfalcarem todo o património do CC a fim de evitarem que, à sua morte, a R. apelante viesse a receber qualquer bem (património) em que se consubstanciasse a sua herança de cônjuge”.
3. Para concluir, à luz das regras da experiência e do normal acontecimento da vida, dos juízos correntes de probabilidade, dos princípios de lógica corrente e dos dados da intuição humana, que se provaram tais factos, a decisão recorrida “pegou” nos seguintes factos que disse provados:
«1. O A não pagou ao pai o preço da venda;
2. A ré só soube da escritura de compra e venda após a morte do marido;
3. Havia um testamento lavrado em 1996 que a instituía legatária do usufruto de toda a herança, incluindo a casa de habitação;
4. O falecido marido dizia aos familiares da ré que queria que ela ficasse na casa após o seu decesso»
4. O primeiro desses factos não constitui facto provado, não constando do elenco dos provados da sentença (que o Tribunal da Relação não modificou);
5. Foi na verdade pela Ré colocada ao tribunal, em primeira instância, a questão de facto de saber se o vendedor (o pai do aqui Recorrente) recebeu ou não recebeu o preço e se o comprador pagou ou não pagou o preço constante da escritura, factos que alegou nos artigos 45 e 46 da sua Contestação.
6. Apreciando essa questão...
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