Acórdão nº 556/12.0PBSTB.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 30-09-2014
Data de Julgamento | 30 Setembro 2014 |
Número Acordão | 556/12.0PBSTB.E1 |
Ano | 2014 |
Órgão | Tribunal da Relação de Évora |
Acordam na secção criminal:
1. No Processo comum singular n.º 1556/12.0PBSTB do 2.º juízo criminal do Tribunal Judicial de Setúbal foi proferida sentença em que se decidiu condenar o arguido A. como autor de um crime de ameaça agravada dos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de €5 (cinco euros), o que perfaz o montante de €600 (seiscentos euros).
Inconformado com o decidido, recorreu o Ministério Público, concluindo:
“1. O arguido encontrava-se acusado da prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 4, do Código Penal.
2. Na sentença recorrida, o Mmo. juiz “a quo” conheceu de factos diversos dos descritos na acusação (maxime, quanto aos factos relativos aos elementos subjectivos dos tipos do crime de injúria e de ameaça, exarados nos pontos 6, 9, 10 e 11 do elenco da matéria de facto provada), sem que tenha dado cumprimento, como se impunha, ao preceituado no art.º 359.º, do Cód. Proc. Penal.
3. Pese embora tenha considerado que a conduta do arguido preencheu antes o tipo objectivo do crime de injúria, entendeu que, porque se trata de um crime de natureza particular e não tendo a ofendida deduzido acusação particular contra o arguido, em conformidade com os artigos 48.º e 50.º, do Código de Processo Penal, o Ministério Público “carece de legitimidade para a prossecução da acção penal”.
4.Tal solução meramente formalista (e, portanto, contrária à lei) parte do pressuposto – totalmente erróneo – de que é imputável à vítima o facto de não se ter constituído assistente nem deduzido acusação particular ainda que, face ao crime por cuja autoria o arguido foi acusado, não era necessário que o fizesse.
5. E sempre redundaria numa decisão surpresa que não salvaguardaria a posição da vítima, que não pode “adivinhar” que os mesmos factos objectivos recebam uma determinada qualificação jurídica em sede de acusação e outra em sede de sentença e que nunca foi notificada para os mencionados efeitos.
6. Quando, ao invés, se exigiria que o Mmo. juiz cumprisse o preceituado no citado art.º 359.º, e, após, das duas uma: ou o Ministério Público e o arguido estavam de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos e o tribunal conhecia de mérito sobre esse crime; ou não estavam de acordo e a comunicação da alteração ao Ministério Público valeria como denúncia para que procedesse pelos novos factos e, na altura própria, desse cumprimento ao estatuído no art.º 285.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal.
7. Verifica-se, pois, no caso concreto, a nulidade prevista no art.º 120.º, n.º 2, al. d), sendo, consequentemente, nula a sentença, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. b), todos do Cód. Proc. Penal.
8. Declarada a nulidade que ora se invoca, deverá ser anulada a sentença recorrida, ordenando-se, em obediência ao estatuído no n.º 2 do art.º 122.º, do Cód. Proc. Penal, a reabertura da audiência para, com o mesmo tribunal e nos termos do mencionado art.º 359.º, se proceder à comunicação ao arguido da alteração substancial dos factos referida supra, seguindo-se os ulteriores termos do processo.
9. Por outro lado, o Mmo. juiz “a quo” não se pronunciou, no segmento decisório da sentença ora posta em crise quanto ao crime de violência doméstica, como estava obrigado, violando, desse modo, o disposto no al. b) do n.º 3 do art.º 374.º, do Cód. Proc. Penal.
10. Face a tal omissão, a decisão recorrida é nula, nos termos do disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Penal.
11. Em consequência, deverá ser declarada tal nulidade, ordenando-se que se complete a parte dispositiva da sentença, a fim de nela consignar a absolvição do arguido do crime pelo qual vinha acusado.”
O arguido não respondeu ao recurso.
Neste Tribunal, o Sr. Procuradora-geral Adjunto pronunciou-se no sentido da procedência.
Cumprido o art. 417º, nº2, o arguido nada disse.
Foram apostos os vistos e teve lugar a Conferência.
2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados:
“1. O arguido é casado com B. há cerca de 17 anos, com quem tem um filho em comum, C., nascido em 24.12.1995.
2. O casal e o seu filho residiam na …nesta cidade de Setúbal, onde ainda reside o arguido.
3. No decurso dos últimos anos de casamento o arguido costumava acusar B. de ter amantes.
4. No dia 17.10.2012, cerca das 17h30m, no interior da referida residência, o arguido dirigiu-se a B., que se encontrava na sala de estar acompanhada de D., trazendo numa das mãos um canivete fechado.
5. Exibindo-lhe o referido objecto, o arguido disse a B. que a mataria a ela e ao amante.
6. Na mesma ocasião, dirigindo-se a B. e a D., apelidou-as de “putas” e “vacas”.
7. Nesta data, B. abandonou a sua residência.
8. No dia 13.11.2012, cerca das 18h, o arguido encontrou B. no estabelecimento denominado “Bico de Perdiz”, sito na Rua…, em Setúbal.
9. Ao actuar como descrito nos pontos 4 e 5, o arguido quis e conseguiu dirigir a B. expressões que sabia adequadas a fazê-la temer pela sua vida.
10. Ao actuar como descrito no ponto 6, o arguido quis e conseguiu dirigir a B. expressões que sabia atentatórias da sua honra e consideração.
11. O arguido agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, conhecedor da ilicitude das condutas descritas.
12. O arguido não tem antecedentes criminais.
13. Trabalha como manobrador no Porto de Setúbal, auferindo um vencimento mensal de €620. Paga um empréstimo mensal no montante de €325. O filho de 18 anos de idade, estudante, vive consigo. Estudou até à 4.ª classe do ensino primário.
Foram consignados os seguintes factos como não provados:
“14. No decurso dos últimos anos de casamento o arguido costumava apelidar B. de “vaca”, “porcalhona” e “chula”.
15. Dizia-lhe que a punha na rua, que a casa era dele e que ele é que pagava tudo.
16. Para além do episódio descrito no ponto 5, dizia-lhe também que a matava.
17. Em data não apurada, no ano de 2011, no interior da residência, o arguido desferiu vários murros no corpo de B., atingindo-a nos braços.
18. Em consequência directa desta actuação a B. sofreu dores físicas e vários hematomas nos dois braços mas não careceu de receber tratamento hospitalar.
19. Na data referida no ponto 4, B. abandonou a residência por estar assustada e temer pela sua vida, bem como por ter sido humilhada em frente de D..
20. Na ocasião referida no ponto 8, o arguido chamou “puta”, “vaca” e “mula”, a B..
21. Para além do descrito nos factos provados, em inúmeras ocasiões e sobretudo ao longo dos dois últimos anos, dirigiu-lhe expressões que sabia atentatórias da sua honra e consideração, visando por esta via humilhá-la e impor-lhe obediência às suas vontades.
22. Com o mesmo fito, ofendeu o seu corpo e a sua saúde.
23. Actuou num estabelecimento comercial, em frente de terceiras pessoas, humilhando-a e denegrindo a sua imagem em público.”
3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são a legitimidade do Ministério Público e as nulidades de sentença previstas no art.º 379º, n.º 1, alínea a) e alínea b) do Código de Processo Penal.
É ainda invocado o art. 120.º, n.º 2, al. d) como pretensamente gerador de uma das nulidades de sentença apontadas, mas o vício ali previsto nada tem a ver com a situação dos autos: inexiste insuficiência de inquérito ou da instrução e não foram posteriormente omitidas diligências essenciais para a descoberta da verdade. Não é de nenhumas destas vicissitudes processuais que se trata aqui.
Também na ausência de impugnação de factos provados e não provados, e não se detectando vício da sentença de que cumpra conhecer oficiosamente, a matéria de facto descrita na sentença é de considerar estabilizada.
(a) Da ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal
Parte dos factos imputados na acusação vieram a ser considerados como não provados, o que conduziu a um diferente enquadramento jurídico-penal dos factos provados sobrantes.
Assim, o tipo de crime de violência doméstica (do art.º 152.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 4) imputado na acusação deu lugar aos crimes de ameaça agravada (do artigo 153.º, n.º 1 alínea a)) e de injúria (do art. 188.º, n.º 1, todos do Código Penal).
Relativamente a este último, considerou-se, a dado...
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