Acórdão nº 55/01.OTBEPS-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 27-05-2009
Data de Julgamento | 27 Maio 2009 |
Case Outcome | PROVIDO O RECURSO |
Classe processual | RECURSO PENAL |
Número Acordão | 55/01.OTBEPS-A.S1 |
Órgão | Supremo Tribunal de Justiça |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
AA, com os sinais dos autos, interpôs recurso extraordinário de revisão da sentença que o condenou como autor material de um crime de violação de segredo de justiça, previsto e punível pelo artigo 371º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de € 25 - (1).
No requerimento apresentado formulou as seguintes conclusões (2)
1. O presente recurso visa a revisão, nos termos dos artigos 449º a 456º, do CPP, do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 24 de Janeiro de 2005, no processo n.º 1686/04-2, que confirmou a condenação do ora recorrente AA pela prática de crime de violação de segredo de justiça do artigo 371º, n.º 1, do Código Penal, e a sua substituição por outra que absolva o ora recorrente.
2. O recurso de revisão inscreve-se nas garantias constitucionais de defesa, no princípio da revisão consagrado no n.º 6 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa: “os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão de sentença e à indemnização pelos danos sofridos”.
3. São fundamento e condição de admissibilidade da revisão, na versão dada pela alteração legislativa contemplada na Lei n.º 48/07, de 29 de Agosto, entre outros, “uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação” – artigo 449º, n.º 1, alínea g), do CPP.
4. No acórdão de 24 de Abril de 2008, proferido na Queixa n.º 17107/05, o Tribunal Europeu dos Direitos do Humanos (TEDH), concluiu que a condenação do requerente no processo n.º 1686/04-2 constitui uma ingerência desproporcionada no seu direito à sua liberdade de expressão, que não corresponde a qualquer “necessidade social premente”, pelo que no caso concreto foi violado o artigo 10º, da C.E.D.H, assim tendo condenado o Estado Português.
5. A decisão do TEDH constitui fundamento legal de revisão de sentença condenatória nos termos do artigo 449º, n.º 1, alínea g), do CPP, pelo que deverá, assim, ser revogada a decisão condenatória e substituída por outra que absolva o recorrente, devendo a mesma ser comunicada aos Serviços do Registo Criminal para ser eliminada do cadastro do recorrente a condenação em causa.
O requerente, após notificação, juntou aos autos cópia autenticada da decisão proferida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tendo sido ordenada a sua tradução.
Em seguida, o Exm.º Juiz prestou informação sobre o mérito do recurso, na qual, sucintamente, se pronuncia no sentido do seu provimento.
Neste Supremo Tribunal a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no qual entende, em síntese, dever ser autorizada a revisão requerida, sob a alegação de que a decisão prolatada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que concluiu não corresponder a condenação do requerente a uma necessidade social imperiosa, constituindo uma incongruência desproporcionada no seu direito à liberdade de expressão, em violação do artigo 10º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, por isso condenando o Estado Português a pagar ao requerente a importância de € 1.750,00 por danos materiais, e € 7.500,00 a título de custas e despesas, é vinculativa e inconciliável com as decisões objecto do pedido de revisão, suscitando sérias dúvidas quanto à justiça da condenação, o que constitui fundamento de revisão de sentença nos termos da alínea g) do n.º 1 do artigo 449º do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, cumpre agora decidir.
***
O recorrente AA sustenta o seu pedido de revisão da sentença que o condenou como autor material do crime de violação do segredo de justiça no fundamento previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 449º do Código de Processo Penal (3), invocando a prolação de sentença pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, cujo teor é o seguinte:
«No caso AA vs. Portugal,
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (23. Secção), reunindo
-em formação constituída por:
BB, Presidente,
CC,
DD,
EE,
FF,
GG,
HH, juízes,
e por II, escrivã de secção,
Depois de ter deliberado em conferência a 27 de Março de 2008,
Profere a presente acórdão, adoptado nesta data:
PROCESSO
1. Na origem do caso está a queixa (n.º 17107/05) apresentada contra
a República Portuguesa por um cidadão deste Estado, AA («o requerente»), a 4 de Maio de 2005, nos termos do artigo 34.° da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais («a Convenção»).
2. O requerente é representado pelo Dr. JJ, advogado em Lisboa. O Governo Português («o Governo») é representado pelo seu funcionário, Dr. LL, Procurador-Geral Adjunto.
3. O requerente alega, em particular, que a condenação que lhe foi imposta por violação do segredo de justiça viola o artigo10. ° da Convenção.
4. Em 24 de Novembro de 2006, o Tribunal decidiu comunicar a queixa ao Governo. Valendo-se do disposto no artigo 29. °, n.º 3, decidiu que a admissibilidade e o mérito do caso seriam examinados em simultâneo.
OS FACTOS
I. AS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO
5. O requerente nasceu em 1962 e reside em Lisboa. À data dos factos era jornalista do quotidiano de grande tiragem O P....
6. Nas edições do Público de 26, 27 e 28 de Janeiro de 1995, o requerente assinou, com mais dois jornalistas do mesmo jornal, vários artigos visando uma personalidade política, N.D., então vice-presidente do Grupo Parlamentar do Partido Social Democrata (PSD) à época no poder.
N.D. era suspeito de ter implementado, através de uma sociedade X. na qual era, de acordo com esses artigos, o principal accionista, um sistema de facturas falsas a fim de não pagar à Fazenda Pública determinadas quantias normalmente devidas em sede de IVA e de obter, por outro lado, subvenções no âmbito do PEDIP, um programa de modernização da indústria portuguesa financiado pelas Comunidades Europeias. Por último, N.D. teria beneficiado de um tratamento de favor aquando da compra do terreno onde fora construída a sua vivenda.
7. Após a publicação desses artigos, o Gabinete do Procurador-Geral da República anunciou a instauração de um inquérito contra N.D. Este, por outro lado, renunciou a todos os cargos que exercia no PSD.
8. Na edição de 4 de Novembro de 1998,o Público anunciou na 1a página «N.D. acusado de burla e fraude fiscal». Este título remetia para um artigo, assinado pelo requerente, no qual este indicava que o Ministério Público junto do Tribunal de Esposende tinha deduzido acusação contra N.D.
9. Na edição do Público de 5 de Novembro de 1998, o requerente assinou, com outro jornalista, um novo artigo voltando a tratar mais em detalhe os factos imputados a N.D. O artigo continha nomeadamente partes integrantes da acusação do Ministério Público e precisava que a notificação já tinha sido dirigida ao arguido.
10. Em data não especificada, o Ministério Público de Esposende instaurou um inquérito contra o requerente e dois outros jornalistas. Na sequência, foi deduzida acusação contra o requerente por violação de segredo de justiça (noção próxima da correntemente designada pela expressão francesa «secret de l'instruction»).
11. Por sentença de 25 de Maio de 2004, o Tribunal de Esposende condenou o requerente pela infracção em causa, na pena de 25 dias de multa, no montante total de 1.750 euros, e no pagamento das custas. O Tribunal absolveu os dois outros jornalistas por não terem tido participação relevante na preparação dos artigos em causa nem agido com dolo. O Tribunal sublinhou que só o artigo publicado no dia 5 de Novembro de 1998 suscitava problema, na medida em que o requerente nele descrevia, por vezes reproduzindo, o conteúdo da acusação. Para o Tribunal, embora não tivesse sido possível estabelecer as circunstâncias exactas em que o requerente tivera acesso ao acto processual em causa, resultava necessariamente da prova à disposição do Tribunal que ele tinha tido acesso à acusação num momento em que o processo ainda se encontrava em segredo de justiça. Contudo, o Tribunal reconhecia que a publicação do artigo não tinha prejudicado o inquérito, o que justificava a "leveza da sanção.
12. O requerente interpôs recurso da sentença, alegando designadamente violação do artigo 10.° da Convenção.
13. Por Acórdão de 24 de Janeiro de 2005, o Tribunal da Relação de Guimarães julgou improcedente o recurso. Tratando-se em particular do artigo 10. ° da Convenção, bem como das disposições equivalentes da Constituição Portuguesa, o Tribunal da Relação sublinhou que a ingerência na liberdade de comunicar informações do arguido não era desproporcionada: não estando o teor da acusação submetido a segredo de justiça senão por certo período, o requerente podia ter esperado pelo início da fase pública do processo. Para o Tribunal da Relação, mesmo a dimensão pública da pessoa acusada não justificava a violação do segredo de justiça. O Tribunal da Relação concluiu, por isso, pela não violação desta disposição da Convenção.
11.O DIREITO E A PRÁTICA PERTINENTES
A. O direito e a prática internos
14. Preliminarmente, convém relembrar que no direito processual português, o termo «instrução» designa especificamente a fase contraditória que ocorre após o inquérito, nalguns casos.
Nos termos do artigo 86. ° do Código de Processo Penal, aplicável ao tempo dos factos, o processo não é público senão a partir da «decisão instrutória ou, se a instrução não tiver lugar, do momento em que já não pode ser requerida» (artigo 86.°, nº 1). Até lá, aplica-se o segredo de justiça, ao qual ficam submetidos todos os participantes processuais, bem como todas as pessoas que, a qualquer título, tenham estado em contacto com os documentos dos autos (artigo 86. °, n.º 4).
15. Este sistema foi substancialmente alterado pela Lei no 48/2007, de 29 de Agosto, entrada em vigor em 15 de Setembro seguinte, que...
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