Acórdão Nº 545/23 de Tribunal Constitucional, 26-09-2023

Número Acordão545/23
Número do processo312/22
Data26 Setembro 2023
Classe processualRecurso

ACÓRDÃO Nº 545/2023

Processo n.º 312/2022

1.ª Secção

Relatora: Conselheira Maria Benedita Urbano

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – RELATÓRIO

1. A., aqui recorrente e como consta do acórdão recorrido, “recorreu para o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), do Acórdão do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), que o condenou com a suspensão de 1 (um) jogo e numa sanção de multa no valor de 153,00€ pela prática de infração disciplinar p. p pelo artigo 164º, nº 7, do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (doravante RDLPFP). Por acórdão do TAD, proferido em 16 de março de 2021, com um voto de vencido, foi decidido julgar o recurso parcialmente procedente. A FPF apelou para o TCA Sul e este, por acórdão datado de 07 de outubro de 2021 concedeu provimento ao recurso da FPF, revogou o julgado no Tribunal Arbitral de Desporto e, negou provimento ao pedido de ampliação requerido em sede de contra-alegações por A.”, após o que o recorrente recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo (STA), formulando, a final desse recurso, as seguintes conclusões:

“A. O presente recurso de revista incide sobre o acórdão do TCA Sul de 7 de Outubro de 2021, o qual (i) revogou a decisão do TAD que havia anulado as decisões disciplinares aplicadas pelo Conselho de Disciplina da Recorrida ao Recorrente em processo sumário e (ii) negou provimento ao pedido de ampliação do objeto do recurso apresentado pelo Recorrente relativo à violação dos seus direitos de audiência e defesa.

B. O fundamento do acórdão recorrido para revogar a decisão do TAD assenta no entendimento de que esse Tribunal careceria de competência para apreciar a questão relativa à verificação da infração pela qual o Recorrente foi sancionado, por supostamente estar em causa uma «questão emergente da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva» (artigo 4º, nº 6, da Lei do TAD); já a decisão de negar provimento ao pedido de ampliação do objeto do recurso radica na assunção de que não houve preterição dos direitos de audiência e defesa do Recorrente porquanto este ter espontaneamente apresentado pronúncia em momento anterior ao da prolação da decisão disciplinar e, além disso, ter impugnado administrativamente essa mesma decisão disciplinar sem ter invocado o vício decorrente da violação daqueles seus direitos.

C. Em momento algum o Recorrente suscitou a discussão de qualquer questão que se pudesse sustentar estar excluída da jurisdição do TAD, logo subtraída a qualquer controlo jurisdicional, tendo, isso sim, sustentado que a Recorrida, na prossecução do interesse público inerente ao exercício dos poderes disciplinares que legalmente lhe foram atribuídos com a obtenção do estatuto de utilidade pública desportiva, violou os seus direitos de defesa e audiência e não valorou devidamente os elementos instrutórios presentes nos autos (a admissão de erro levada a cabo pelo próprio árbitro após o jogo).

D. Ao Recorrente não foi concedida a oportunidade de ser efetivamente ouvido e apresentar defesa antes de ser sancionado, quer porque as exigências ligadas à previsão desse momento não se satisfazem com uma visão meramente formal e simplista das garantias constitucionais dos administrados, quer porque a sua preterição não poderá ser sanada por via da impugnação administrativa do ato praticado.

E. É precisamente a necessidade de uma resposta superior a estas duas questões – acerca da competência do TAD e sobre a violação dos direitos de defesa do Recorrente – que justifica a admissão da presente revista.

F. A questão subjacente ao entendimento sufragado pelo TCAS sobre a incompetência do TAD, por apresentar contornos fluídos, implicar um juízo exegético complexo, ser suscetível de se repetir em inúmeras situações futuras e impactar sobremaneira na comunidade, reveste-se de importância jurídica e social fundamental, carecendo igualmente da intervenção do Supremo Tribunal Administrativo para corrigir um erro jurídico grave cometido pelo Tribunal a quo e, assim, assegurar uma melhor aplicação do Direito.

G. A questão de saber se foram ou não violados os direitos de audiência e defesa do Recorrente apresenta, pelas mesmas razões, importância jurídica e social fundamental, a que acresce a circunstância de o sentido decisório contido no acórdão do TCAS afrontar a jurisprudência firme do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo sobre a inconstitucionalidade do processo sumário regulado no RDLPFP, por violação do artigo 32º, nº 10, da Constituição da República Portuguesa, demonstrativa da essencialidade da admissão do recurso de revista para melhor aplicação do Direito.

Quanto ao mérito do recurso:

H. O acórdão proferido em primeira instância pelo TAD não revogou qualquer decisão técnica tomada pelo árbitro e não alterou o desfecho do jogo; o TAD anulou sanções de multa e suspensão aplicadas em processo sumário pelo Conselho de Disciplina da Recorrida, e para o fazer não resolveu senão questões estritamente jurídicas.

I. A questão, técnica, de saber se o jogador cometeu falta que justificasse a admoestação com cartão amarelo é um dado de facto absolutamente incontroverso desde o momento em que, no âmbito da impugnação administrativa, o árbitro do encontro se manifestou no sentido de reconhecer que a exibição do cartão não foi adequada, e, portanto, nunca esteve sequer em discussão nestes autos, em que nem foi produzida prova para além do mero teor do procedimento administrativo.

J. As questões, jurídicas, colocadas às instâncias foram as de saber, por um lado, partindo desse dado de facto adquirido, se existiu erro na apreciação dos elementos instrutórios e na aplicação do RDLPFP; e, por outro, se foram respeitadas as garantias de defesa do arguido em processo sancionatório.

K. Em discussão nos presentes autos estão, portanto, e apenas, princípios procedimentais e substantivos basilares e incontornáveis em qualquer procedimento administrativo sancionatório, como aquele que redundou nas decisões impugnadas, as quais aplicaram ao Recorrente sanções de multa (lesando o seu direito de propriedade) e de suspensão (limitando o seu direito a exercer a sua profissão), sem sequer garantir a sua audição prévia (violando o seu direito de audiência e defesa).

L. A sanção de suspensão, ao impedir o Recorrente de exercer a sua profissão, justamente privando-o de participar na competição mais relevante que se encontra a disputar, configura uma óbvia lesão deste direito, liberdade e garantia; e o mesmo (ou mais) se diga da sanção de multa, a qual, sobre ser injustificadamente imposta, não encontra sequer qualquer justificação teórica no plano desportivo – não serve qualquer objetivo que legitimamente pudesse motivar a sua subtração à esfera dos tribunais e nem remotamente se relaciona com a prática da competição desportiva.

M. Também a outra dimensão da invalidade da sanção oportunamente suscitada nos autos se mantém no plano da normatividade jurídica, e não técnica, não apenas por via da afetação de direitos fundamentais, da qual resulta necessariamente um imperativo de acesso à tutela jurisdicional, mas porque, em rigor, o que está em causa é, verdadeiramente, um erro sobre os pressupostos de facto, na medida em que o árbitro da partida reconheceu explicitamente não ter analisado o lance em toda a sua extensão no campo e ter cometido um erro resultante dessa análise deficitária ao admoestar o Recorrente com o cartão amarelo, e ainda uma violação do princípio do inquisitório e um erro grosseiro ou manifesto de apreciação dos elementos instrutórios carreados para o procedimento, entre os quais se encontra essa explícita admissão e reapreciação do referido árbitro. Em qualquer das vertentes enunciadas, não se pede ao Tribunal que reavalie o juízo do árbitro, mas sim, e apenas, que constate que os atos impugnados desconsideraram elementos de facto relevantíssimos resultantes da instrução e incorreram, em consequência, em erro grosseiro ou manifesto de apreciação ao aplicar as sanções de multa e suspensão ao Recorrente.

N. Uma coisa é a análise técnica feita pelo árbitro, outra é a valoração jurídico-disciplinar desse dado de facto empreendida pelo Conselho de Disciplina. Esta segunda já não é uma análise técnica que se deva considerar subtraída ao controlo jurisdicional, mas sim, verdadeiramente, uma operação técnico-jurídica que resulta na aplicação de uma sanção através de um ato administrativo. Não é, pois, a decisão do árbitro em campo que sanciona o jogador, nem é essa decisão que constitui o objeto dos presentes autos.

O. A atribuição da competência para a aplicação da sanção a um órgão disciplinar com poderes materialmente administrativos, confirma que tal decisão está subordinada ao respeito por normas e garantias de natureza eminentemente jurídica em homenagem às quais o órgão em causa pode, naturalmente, decidir...

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