ACÓRDÃO Nº 545/2014
Processo n.º 52/2014
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. A., magistrada do Ministério Público, intentou perante o Supremo Tribunal Administrativo ação administrativa especial destinada a obter a condenação do Conselho Superior do Ministério Público a dispensá-la da realização dos turnos de serviço urgente que coincidissem com os dias de sábado, invocando ser membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia e encontrar-se obrigada, por motivos religiosos, a guardar o sábado como dia de descanso, adoração e ministério e abster-se de todo o trabalho secular.
Alegou que a norma do artigo 14.º, n.º 1, alínea a), da Lei da Liberdade Religiosa, instituída pela Lei n.º 16/2001, de 22 de Junho, quando interpretada no sentido de que a suspensão do trabalho no dia descanso semanal prescrito pela confissão que professa se verifica apenas em relação a trabalhadores em regime de horário flexível é inconstitucional por violação da liberdade de religião e da liberdade de escolha de profissão respectivamente consagradas nos artigos 41.º e 47.º, n.º 1, da Constituição.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 6 de Dezembro de 2012, julgou improcedente a ação, argumentando, em síntese, que os magistrados do Ministério Público estão sujeitos aos horários de funcionamento dos serviços judiciários e não beneficiam do regime de flexibilidade de horário de que depende, nos termos do artigo 14.º, n.º 1, alínea a), da Lei da Liberdade Religiosa, a dispensa de trabalho por motivo religioso, e não se encontra sequer alegado que a interessada não pudesse harmonizar a prestação do trabalho durante os sábados com o cumprimento dos deveres religiosos, concluindo que a limitação da prática religiosa, nas circunstâncias do caso, não implica uma restrição intolerável ao exercício do direito do culto. Ademais, o acórdão considerou que a realização de serviço de turno em dias de sábado não representa uma violação da liberdade de escolha de profissão na medida em que essa é uma condicionante do exercício da própria actividade profissional, que a autora não poderia desconhecer no momento em que ingressou na magistratura, e que é justificada por outros valores ou interesses constitucionalmente relevantes.
Desse acórdão, a autora interpôs recurso jurisdicional para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, suscitando de novo a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 14.º, n.º 1, alínea a), da Lei da Liberdade Religiosa quando entendida no sentido de que só os cidadãos que laborem em regime de flexibilidade de horário podem obter autorização para suspenderem o trabalho, por motivos religiosos, no dia de descanso semanal estabelecido pela respectiva confissão religiosa, considerando que uma tal interpretação colide não só com o disposto no artigo 41.º da Constituição, mas também com o princípio da igualdade, no ponto em que permite que só certos trabalhadores possam exercer a liberdade de culto.
Por acórdão de 12 de Novembro de 2013, o Pleno negou provimento ao recurso, mantendo o entendimento segundo o qual os magistrados do Ministério Público, mesmo quando em serviço de turno, não têm um horário flexível e que a prestação desse serviço corresponde a um dever funcional que, sendo livremente aceite por quem ingressa na função, é em si incompatível com o exercício da liberdade de culto. Nesse sentido, considera-se que a liberdade de religião não pode desvincular o crente das relações jurídicas que tenha estabelecido com terceiros, constituindo a norma do artigo 14.º, n.º 1, da Lei da Liberdade Religiosa uma mera exceção a essa regra geral que, como tal, tem um carácter ampliativo e não implica qualquer restrição de direitos. Sendo que, além do mais, a dispensa do trabalho em relação a trabalhadores com horário flexível não envolve a violação do princípio da igualdade, no ponto em que se trata da atribuição de uma vantagem a quem se encontra numa situação diferenciada que justifica, por si, a desigualdade de soluções.
Desta decisão, a recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, a fim de ver apreciada a inconstitucionalidade material do artigo 14.º, n.º 1, alínea a), da Lei da Liberdade Religiosa: «i) quando aplicada com a interpretação de que a possibilidade de dispensa de trabalho por motivos religiosos apenas se verifica quanto aos trabalhadores em regime de horário flexível por tal interpretação padecer de inconstitucionalidade material por violar os artigos 41.º, n.º 1, 18.º, números 1, 2 e 3, 13.º, números 1 e 2 da CRP; ii) quando aplicada com a interpretação de que a escolha da profissão exercida pela Recorrente implica a aceitação e cumprimento de todos os deveres inerentes a esse ofício, fazendo equivaler ao significado de deveres a impossibilidade de exercício de direitos, liberdades e garantias, sem que se verifiquem os seus pressupostos constitucionais de restrição por tal interpretação padecer de inconstitucionalidade material por ofensa ao direito às liberdades de religião e de escolha de profissão, consagradas nos nºs. 1 dos artigos 41.º e 47.º da CRP».
Por despacho do relator, determinou-se que o recurso prosseguisse para alegações, sendo as partes notificadas para se pronunciarem sobre a possibilidade de não conhecimento da questão supra identificada sob a alínea ii). Recorrente e recorrida pronunciaram-se sobre tal questão prévia, defendendo a primeira que o recurso está em condições processuais de prosseguir para apreciação do mérito do recurso, também no que lhe diz respeito, pois que a questão de inconstitucionalidade em causa versa interpretação normativa sufragada pelo Tribunal recorrido como ratio decidendi, como decorre da argumentação a tal propósito expendida na decisão recorrida. Em sentido contrário se pronunciou o recorrido, invocando que a decisão sob recuso se não fundamenta juridicamente no critério sindicado.
A recorrente, nas alegações que apresentou, concluiu do seguinte modo:
A) O presente recurso tem, na sua base, a deliberação do Pleno do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) de 08.04.2011, por via da qual foi indeferido o pedido da Recorrente de suspensão do seu trabalho nos dias de turno coincidentes com os dias de Sábado, por ser Adventista do Sétimo Dia e reservar o referido dia da semana como Dia Santo, pedindo, ainda, autorização para compensar integralmente tais períodos laborais em dias de turno que não coincidissem com o dia de Sábado, quer fossem de serviço urgente ou em períodos de férias judiciais que não coincidissem com as suas férias pessoais, deliberação essa que depois foi confirmada, quer pela Secção do Contencioso Administrativo, quer pelo Pleno do STA.
B) Acontece que a Recorrente não se conforma com o referido entendimento, mantendo a sua convicção de que o artigo 14.º, n.º 1, alínea a) da Lei de Liberdade Religiosa (LLR) é materialmente inconstitucional, por violação do princípio da liberdade religiosa e de culto, do princípio da igualdade e da liberdade de escolha de profissão, constitucionalmente consagrados nos artigos 41.º, n.º 1, 13.º, n.os 1 e 2, e 47.º, n.º 1 da CRP.
C) Na verdade, através do artigo 41.º da CRP, o legislador constituinte integrou na lista dos direitos, liberdades e garantias pessoais fundamentais a liberdade de consciência, de religião e de culto, concebendo esta liberdade como única e inviolável.
D) No que especificamente concerne à liberdade de religião, esta tem, em primeiro lugar, uma vertente individual, que consiste na liberdade de cada um ter ou não ter religião, professar a religião que tiver escolhido e mudar de religião quando assim o entender, e tem, também, uma vertente coletiva e institucional, que se prende com a partilha entre os fiéis, num exercício conjunto da fé, através dos ritos e rituais próprios (de cada uma) das religiões, e que culmina com a criação de organizações religiosas que acabam, muitas vezes, por se enraizar na comunidade social.
E) Conforme nos ensinam os Professores Gomes Canotilho e Jónatas Machado «(…) do...