Acórdão nº 5404/11.0TBVFX.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 08-09-2021
Data de Julgamento | 08 Setembro 2021 |
Case Outcome | NEGADA A REVISTA. |
Classe processual | REVISTA |
Número Acordão | 5404/11.0TBVFX.L1.S1 |
Órgão | Supremo Tribunal de Justiça |
Processo n.º 5404/11.0TBVFX.L1.S1
Revista
Tribunal recorrido: Tribunal da Relação …..
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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):
I - RELATÓRIO
DICERLIT - DISTRIBUIDORA DE PRODUTOS ALIMENTARES DO LITORAL, LDA demandou, em autos de ação declarativa com processo na forma ordinária, SCC - SOCIEDADE CENTRAL DE CERVEJAS E BEBIDAS, S.A., pretendendo a condenação desta no pagamento da quantia de €13.343.655,06 e juros de mora (montante que veio depois a ser objeto de alteração) por danos patrimoniais e não patrimoniais que alegou terem-lhe sido causados pela Ré em decorrência da resolução ilícita que esta fez operar do contrato que fora estabelecido entre as partes.
Contestou a Ré, por exceção e por impugnação, concluindo pela improcedência da ação.
Mais deduziu reconvenção, pedindo a condenação da Autora no pagamento da quantia de €1.228.943,40 (acrescendo juros de mora), alegando que tal quantia lhe é devida nos termos da relação contratual entre ambas estabelecida.
Seguindo o processo seus devidos trâmites, veio, a final, a ser proferida sentença (Juízo Central Cível …) que julgou a ação improcedente. A reconvenção foi julgada parcialmente procedente, sendo a Autora condenada a pagar à Ré a quantia de €623.395,92, acrescida de juros de mora.
A sentença foi notificada às partes por ato eletrónico certificado em 29 de outubro de 2019.
Inconformada com o assim decidido, apelou a Autora, pretendendo que fosse dada procedência aos pedidos que formulara.
O recurso foi apresentado no dia 16 de dezembro de 2019.
Após ocorrências processuais que para aqui não relevam, na Relação ….. veio a ser proferido acórdão onde se decidiu não admitir a apelação, por se mostrar extemporânea.
Inconformada, com o assim decidido, interpõe a Autora revista.
Da respetiva alegação extrai as seguintes conclusões:
A) Como é doutrinal e jurisprudencialmente pacífico e assente, a verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640º, n.ºs 1 e 2 do CPC deve ser norteada pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
B) Seguindo a orientação reiterada deste Supremo Tribunal, de que a verificação do cumprimento do ónus de alegação do artigo 640º do CPC tem de ser realizada com respeito pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente dimensão formal – considera-se que, no caso dos autos, a Recorrente respeitou as exigências do ónus de impugnação da matéria de facto, previstas no mencionado artigo 640º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
C) Recebido o recurso, tais princípios devem ser devidamente ponderados, sob pena de uma interpretação essencialmente formal daquele preceito, que ilegitimamente impediria o recorrente de obter um segundo grau de jurisdição no âmbito do julgamento a matéria de facto.
D) Até porque, diferente interpretação do artigo 640º do CPC, como a ínsita no acórdão recorrido, é inconstitucional, pois viola o direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º da CRP, bem como o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18º, n.º 2, segunda parte da CRP.
E) Ao contrário do considerado pelo Tribunal a quo, das alegações da Recorrente extrai-se, ainda que implicitamente, os factos que considera incorretamente julgados, através da indicação dos meios probatórios concretos, documentais e constantes das gravações (transcrição do depoimento das testemunhas), que impunham uma decisão diferente.
F) A Recorrente indicou e transcreveu os trechos dos depoimentos gravados que, no seu entender, impõem a alteração do sentido decisório da sentença proferida, tal constando das alegações e, implicitamente, das conclusões, sendo tal suficiente para a Recorrida e o Tribunal depreenderem o que se impugna.
G) Entende a Recorrente que o ónus de impugnação em sede de matéria de facto foi, na sua globalidade, cumprido, sendo que a entender-se o contrário, como aconteceu no caso do acórdão recorrido de fls. dos autos, sempre haveria lugar a despacho de aperfeiçoamento, tal como dispõe o artigo 652º, n.º 1, alínea a) do CPC.
H) O convite ao aperfeiçoamento sempre se mostraria como a decisão mais equilibrada e ajuizada, em nome do princípio da prevalência da substância sobre a forma que norteia o CPC, e dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade supra mencionados, pelo que mal andou o Tribunal a quo ao não determinar o aperfeiçoamento do recurso.
I) Não se pode olvidar que o acréscimo de prazo de 10 dias previsto no artigo 638º, n.º 7 do CPC visa permitir o cumprimento do ónus de alegação consagrado no artigo 640º, n.º 2, alínea a) do CPC, para o qual, evidentemente, é indispensável a audição da prova gravada, (cfr. LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, 2004, págs. 594 e 595, e AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, 2000, pág. 138).
J) Com o alargamento do prazo de recurso em dez dias, o legislador pretendeu proporcionar tempo ao recorrente para analisar, ouvir e transcrever a prova testemunhal gravada.
K) No caso dos autos, considerando as muitas transcrições que a Recorrente fez dos depoimentos, o uso daquele acréscimo de prazo de 10 dias mostra-se totalmente justificado, sendo evidente que o mesmo foi, de facto, usado e necessário, e não utilizado como “manobra” visando o acréscimo de prazo.
L) A Recorrente não teve qualquer “aproveitamento” de prazo para um fim que não tenha utilizado – o da análise e utilização da prova gravada.
M) Entende a Recorrente que só com uma análise global será possível levar a cabo uma correta, completa, cabal, justa e ponderada apreciação da matéria de facto impugnada, e por isso a transcrição extensa dos depoimentos, pelo que, mal andou o acórdão recorrido proferido nos autos ao concluir pela intempestividade do recurso.
N) O Tribunal a quo deveria de ter como processualmente adquirido que a Recorrente utilizou a prorrogação do prazo de dez dias para ouvir, analisar e transcrever o depoimento das testemunhas, resultando cristalino que não fez uma utilização abusiva desse prazo.
O) Independentemente da perfeição/imperfeição da impugnação da matéria de facto, do acórdão recorrido resulta que o Tribunal a quo analisou a impugnação apresentada, considerou que a mesma não cumpria os requisitos processuais e, posteriormente, conclui, erradamente, que o recurso é extemporâneo, decidindo no sentido da sua rejeição.
P) Ao abster-se de conhecer o recurso da Recorrente, maxime a impugnação sobre a matéria de facto, com base na circunstância de não ter sido especificado os factos impugnados, estando tal implícito nas alegações e conclusões, o Tribunal recorrido errou na interpretação e aplicação da lei.
Q) Justifica-se, consequentemente, que o recurso interposto pela Recorrente seja conhecido e apreciado, por legal e tempestivo; ou, caso assim não se entenda, sempre deveria a Recorrente ser convidada a suprir eventuais insuficiências do recurso, designadamente quanto aos ónus previstos no artigo 640º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
R) O Tribunal a quo violou, entre outros, os artigos 638º, n.º 7, 640º, n.ºs 1 e 2, 652º, n.º 1, alínea a), todos do CPC, 18º, n.º 2, segunda parte, e 20º da CRP.
Termina dizendo que “deve ser dado provimento ao presente recurso interposto pela Recorrente e, em consequência, o acórdão recorrido ser revogado e substituído por decisão que ordene:
a) A apreciação do recurso interposto pela Recorrente, sob pena de violação do disposto, entre outros, nos artigos 638º, n.º 7, 640º, n.ºs 1 e 2, 652º, n.º 1, alínea a), todos do CPC, 18º, n.º 2, segunda parte, e 20º da CRP.
Ou, caso assim não se entenda,
b) O convite da Recorrente para suprir eventuais insuficiências do recurso, designadamente quanto aos ónus previstos no artigo 640º, n.ºs 1 e 2 do CPC, prosseguindo os autos os seus ulteriores termos.”
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A parte contrária contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.
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II - ÂMBITO DO RECURSO
Importa ter presentes as seguintes coordenadas:
- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;
- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.
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São questões a conhecer:
- Se o recurso é ou não tempestivo;
- Se devia ou não ter havido convite ao aperfeiçoamento das conclusões;
- Se a interpretação do art. 640.º do CPCivil no sentido de não dever haver lugar a esse convite viola a Constituição da República Portuguesa.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
O acórdão recorrido decidiu que o recurso era extemporâneo, uma vez que fora apresentado para além do prazo de 30 dias estabelecido na lei (prazo que se completara em 4 de dezembro de 2019), e sendo que a Apelante, embora tendo transcrito os depoimentos das testemunhas, não deduzira qualquer objeção à matéria de facto, razão pela qual não era caso do acréscimo dos 10 dias a que se refere o n.º 7 do art. 638.º do CPCivil.
O acórdão recorrido mais decidiu que não existia legalmente, quanto ao recurso da matéria de facto, despacho de aperfeiçoamento, razão pela qual não deu procedência à pretensão que a Apelante havia entretanto (na reclamação que suscitara para a conferência) apresentado nesse sentido.
Como resulta das conclusões acima transcritas, a Recorrente pretende no presente recurso invalidar o assim decidido.
Mas não se lhe pode reconhecer razão.
Vejamos:
a) Quanto à questão da (in)tempestividade da apelação
Dos n.ºs 1 e 7 do art. 638.º do CPCivil resulta que se o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada, o recorrente dispõe do prazo de 40 dias (30 + 10) para interpor o recurso.
No caso vertente, questão é saber se se pode dizer que da apelação...
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