Acórdão nº 518/20.9BELSB-S1 de Tribunal Central Administrativo Sul, 07-07-2021

Judgment Date07 July 2021
Acordao Number518/20.9BELSB-S1
Year2021
CourtTribunal Central Administrativo Sul
Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

O Ministério Público vem, nos termos do artigo 219° nº 1, da CRP e dos artigos 2º e 4º, nº 1, alíneas a) e j) do Estatuto do Ministério Público, interpor recurso do despacho datado de 9-11-2020, que indeferiu o pedido por ele formulado junto do TAC de Lisboa para este Tribunal se abster de aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade material, as normas que constam do segmento final do nº 1 do artigo 11º e do artigo 25º, ambos do CPTA, na redação da Lei n° 118/2019, de 17 de Setembro e que indeferiu ainda o pedido de declaração de nulidade por falta de citação do réu Estado (artigos 188º nº 1 alínea a) e 187º alínea a) do CPC), com a consequente anulação de todo o processado posterior à petição inicial.
Apresentou as seguintes conclusões com as suas alegações de recurso:
1 – Em 9-03-2020, foi expedida carta registada para citação do Centro de Competências Jurídicas do Estado, na qualidade de legal representante do Estado, para, no prazo de 30 dias, querendo, contestar a presente ação.
2 - O Ministério Público, agindo em nome próprio, em defesa da legalidade, apresentou, em 12-03-2020, requerimento nos presentes autos pelo qual solicitou ao tribunal:
a) A recusa da aplicação, neste processo, das normas constantes do segmento final do nº 1, do artigo 11º e do nº 4, do artigo 25º do CPTA, na redação da Lei nº 11/2019, de 17-09, por inconstitucionalidade material emergente da violação do parâmetro constante da primeira proposição do nº 1, do artigo 219º, da CRP e do nº 2 desta mesma disposição;
b) A declaração de nulidade da falta de citação do réu Estado (artigos 188º, nº 1, alínea a) e 187º, alínea a) e b), do CPC, subsidiariamente aplicáveis), com a consequente anulação de todo o processado posterior à petição inicial e a citação do Ministério Público em representação do Estado Português.
3 - O despacho recorrido, datado de 9-11-2020, indeferiu este requerimento, tendo questionado a falta de legitimidade/interesse em agir do Ministério Público para invocar a nulidade da falta de citação e considerou ter sido o réu Estado, efetivamente citado, através do ofício remetido ao Centro de Competências Jurídicas do Estado.
4 - A CRP consagra o Ministério Público como um órgão integrado nos tribunais, com autonomia e estatuto próprio - Título V, capítulo IV da CRP -, ao qual compete, nos termos do artigo 219ºnº 1, além do mais, defender a legalidade democrática.
5 - A defesa da legalidade, enquanto atribuição do Ministério Público, é corroborada no artigo 4º nº 1, a) do seu Estatuto, aprovado pela Lei 68/2019, de 27-08, que na alínea j) do mesmo artigo consagra, ainda, que deverá velar para que a função jurisdicional seja exercida em conformidade com a Constituição e as leis.
6 – Assim, em virtude dessa competência própria, que não é de representação, e para o seu cabal exercício, a lei determina que o Ministério Público deve ser notificado de todas as decisões finais proferidas por todos os tribunais - cfr. artigo 4º nº 3do EMP.
7 – No âmbito da jurisdição administrativa, a defesa da legalidade democrática como competência do Ministério Público, resulta expressamente do artigo 51º do ETAF, sendo para execução desta que o artigo 141º nº 1 do CPTA confere ao Ministério Público legitimidade para recorrer de todas as decisões proferidas com violação de disposições ou princípios constitucionais ou legais.
8 - O Ministério Público, ao pugnar pela legalidade e pela interpretação e aplicação das normas em conformidade com a CRP, não está a "defender interesses próprios e estatutários”, mas sim a defender a legalidade democrática e a interpretação das normas em conformidade com a Constituição, ou seja, está a defender interesses comuns a toda a comunidade e que são a base de um Estado de Direito democrático.
9 – Tendo por referência o contexto normativo supra aludido, o Ministério Público tem legitimidade para, em nome próprio, agindo em defesa da legalidade, através do requerimento que apresentou, arguir incidentalmente a inconstitucionalidade das normas do CPTA, peticionando a sua desaplicação no caso concreto com esse fundamento, e a nulidade da citação do réu.
10 – Acresce que, tem também legitimidade para apresentar tal requerimento na qualidade de representante judiciário, ao contrário do que parece resultar do despacho recorrido, uma vez que o Estado, enquanto réu, tem interesse na regularidade da sua própria citação, conferindo-lhe o artigo 197º nº 1 do CPC legitimidade para arguir a sua nulidade, arguição essa feita pelo seu representante judiciário, o Ministério Público.
11 – Conforme decorre do requerimento que apresentou, o Ministério Público agiu em nome próprio, ou seja, no uso das suas competências próprias de defesa da legalidade, e enquanto representante do réu Estado, pelo que tem legitimidade para arguir incidentalmente a inconstitucionalidade das normas e requerer a sua desaplicação no processo, bem como a nulidade da citação, nos termos em que o fez.
12 - Na sequência das alterações introduzidas pela Lei n° 118/2019, de 17 de setembro, o artigo 25º nº 4 do CPTA passou a prever que, nas ações em que o Estado é demandado, deixou de ser citado o Ministério Público em sua representação, como até então, para a citação passar a ser feita ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, designado por JurisAPP, que é um serviço central da administração direta do Estado, integrado na Presidência do Conselho de Ministros.
13 - Sob uma aparência puramente procedimental e regulamentar, este nº 4 aditado é uma norma inovadora e que vem colocar em crise o quadro jurídico-constitucional vigente, sobretudo quando conjugada com o disposto na parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, na redação conferida pela mesma Lei nº 118/2019, transformando a representação do Estado pelo Ministério Público numa exceção, quando anteriormente era a regra.
14 - A solução que resulta da conjugação destas duas normas – artigo 25º nº 4 e 11º nº 1 do CPTA -, na redação a ambas introduzida pela Lei n° 118/2019, esvazia o essencial da função do Ministério Público nos tribunais administrativos, enquanto representante do Estado- Administração, violando o disposto no artigo 219º nº 1 da CRP.
15 - O artigo 219º nº 1 da CRP, ao estabelecer o quadro constitucional do Ministério Público, consubstancia um imperativo, uma imposição de legislar, tendo por destinatário o legislador e por conteúdo o ditame da atribuição de competência ao Ministério Público para representar o Estado.
16 - E para atribuição dessa competência o legislador constitucional utilizou o conceito de “representação” e não os de “patrocínio judiciário”, “assistência por advogado”, “mandato” ou “patrocínio forense”, que utilizou em outras normas constitucionais (cfr. artigos 20º nº 2, 32º nº 3 e 208º da CRP).
17 - Esta função de representação do Estado pelo Ministério Público, estrutural ao modelo constitucional de Ministério Público em Portugal, está, desde há muito, refletida na legislação constitucional e ordinária, estando já consagrada na Constituição de 1933, tendo sido mantida na CRP de 1976 e permanecido inalterada ao longo das sete revisões constitucionais
já ocorridas.
18 - Esta função representativa também está consagrada na legislação ordinária, na qual, já no séc. XIX, o Código de Processo Civil de 1876 previa a representação do Estado pelo Ministério Público, a qual lhe continuou a ser atribuída pelos códigos de processo civil subsequentes (1939 e 1961, este último mesmo após a reforma de 1995/1996), mantendo- se consagrada no artigo 24º nº 1 do CPC vigente.
19 - Também os estatutos orgânicos do Ministério Público, incluindo o mais recente, aprovado pela Lei nº 68/2019, de 27 agosto e publicado menos de um mês antes da Lei nº 118/2019, que contém as normas cuja inconstitucionalidade se suscita, sempre confiaram a representação do Estado ao Ministério Público - cfr. artigos 4º nº 1 al. b), 61º nºs 1, 2 e 63° do EMP.
20 - No âmbito específico da jurisdição administrativa, o ETAF vigente, desde a sua redação original, aprovada pela Lei 13/2002, de 19-02, prevê que compete ao Ministério Público representar o Estado, na linha da solução já expressamente consagrada pelo 1º ETAF, aprovado pelo Dec. Lei nº 129/84, não tendo a sua última alteração, operada dias antes da publicação da Lei n° 118/2019, pela Lei nº 114/2019, de 12 de setembro, introduzido qualquer modificação ao disposto no artigo 51º.
21 - Assim, a representação do Estado em juízo foi sempre confiada, a nível constitucional e da lei ordinária, ao Ministério Público (com a única exceção da hipótese residual contemplada na parte final do nº 1 do artigo 24º do vigente CPC), estando essa representação, nas áreas cível, administrativa e até tributária, inequivocamente prevista em diplomas recentíssimos e de uma evidente centralidade na conformação dos nossos sistemas jurídico e judiciário.
22 - A norma do artigo 219º nº 1 da CRP, que confia ao Ministério Público a representação judiciária do Estado-Administração (central), possui natureza auto-exequível, incondicionada, sem necessidade de densificação pela legislação ordinária, configurando-se como uma intencional e estrutural opção constitucional, em consonância com a tradição jurídica do país.
23 - Tanto o legislador constituinte originário como o derivado ponderaram os atributos do Ministério Público como magistratura dotada de "autonomia" (CRP, artigo 219º, n° 2), com a sua atuação sempre vinculada a "critérios de legalidade e objetividade” (artigo 3º nº 2 do EMP) e, em razão desses atributos, confiaram-lhe a tarefa representativa do Estado em juízo, justamente a título de representação e não como advogado, patrono ou mandatário judicial.
24 - Sendo o Ministério Público, segundo o mandato constitucional, o...

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