Acórdão nº 511/10.0TBSEI-E.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 15-01-2013

Judgment Date15 January 2013
Acordao Number511/10.0TBSEI-E.C1
Year2013
CourtCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

O credor reclamante da insolvência de “C…, Lda.”, A… impugnou, no tocante ao seu crédito, a lista de credores reconhecidos pelo Administrador da insolvência, pedindo que se reconheça o seu direito de retenção sobre seis fracções autónomas de edifício e a qualificação daquele seu crédito, de €1.001.583,22, como privilegiado.

Fundamentou a impugnação no facto de o seu crédito, naquele valor, respeitante ao sinal em dobro do preço que pagou pela promessa de compra, à insolvente, daquelas fracções, ter sido reconhecido como comum, mas de esse crédito, por lhe terem sido entregues as respectivas chaves, gozar de direito de retenção.

O credor reclamante, D…, SA, respondeu que aquelas fracções se mantêm e sempre estiveram na posse da insolvente, que nunca entregou as chaves ao impugnante.

Seleccionada a matéria de facto, procedeu-se – com registo sonoro dos actos de prova levados a cabo oralmente – à audiência de discussão e julgamento no terminus da qual se decidiu, sem reclamação, o único facto seleccionado para a base instrutória.

A sentença final da causa – com fundamento em que o crédito do impugnante goza de direito de retenção - julgou a impugnação procedente e graduou o crédito do reclamante, pelo remanescente do produto do prédio urbano apreendido nos autos sito na Avenida … - FRACÇÕES F,G, H, J, L e K -, imediatamente a seguir ao crédito do Estado por IMI, mas imediatamente antes do crédito de D…, SA.

É esta sentença que o credor D…, SA impugna no recurso ordinário de apelação no qual pede se proceda à sua alteração, por forma a graduar a ora Apelante, preferencialmente face ao credor A...

A recorrente extraiu da sua alegação estas conclusões:

...

Na resposta, o recorrido concluiu, naturalmente, pela improcedência do recurso.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

2.1. Foi seleccionado para a base instrutória este único enunciado de facto:

Não obstante a não celebração da escritura, a insolvente entregou ao impugnante, A…, as chaves das fracções F), G), H), L), J) e k)?

2.2. O enunciado referido em 2.1. obteve do Tribunal da audiência, esta resposta: Provado.

2.3. O decisor de facto da 1ª instância adiantou, para justificar o julgamento referido em 2.2., esta motivação:

Na formação da sua convicção, o tribunal apreciou de forma livre, crítica e conjugada a prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como a prova documental constante dos autos, de harmonia com o princípio consagrado no artigo 655º do Código de Processo Civil.

Com efeito, a convicção em que se alicerçou a decisão sobre a matéria de facto, resultou do conjunto de prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente, dos depoimentos das testemunhas, conjugado com critérios das regras da experiência e da normalidade.

2.2. O Tribunal de que provém o recurso julgou provada, no seu conjunto, a factualidade seguinte:

...

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

O objecto do recurso é, antes de mais, delimitado pelo objecto da acção, pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao recorrente. Mas este pode também, no requerimento de interposição ou nas conclusões da sua alegação, limitar o âmbito, objectivo ou subjectivo, do recurso (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

A sentença impugnada é a que, além de julgar a impugnação deduzida pelo recorrente contra a lista de créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência, procedeu á verificação dos créditos e à sua graduação, i.e., a sua hierarquização entre si.

A recorrente não discute no recurso – como não discutiu na resposta à impugnação deduzida pelo recorrido contra a apontada lista – a declaração do crédito daquele como verificado. A única coisa que a recorrente controverte na apelação é a graduação daquele crédito, i.e., a sua hierarquização.

Segundo a sentença recorrida, o crédito do apelado, porque, no seu ver, goza de direito de retenção, prevalece sobre o da recorrente, garantido por hipoteca; de harmonia com a alegação da recorrente, o seu crédito deve prevalecer sobre o do recorrido, por esta razão simples: o crédito do recorrido não goza daquela garantia real.

Numa palavra: a recorrente limitou objectivamente o âmbito do recurso à questão da graduação do seu crédito no confronto com o do apelado.

Todavia, a exacta delimitação do âmbito objectivo do recurso reclama esclarecimentos suplementares.

Tendo em conta a finalidade da impugnação, os recursos ordinários podem ser configurados como um meio de apreciação e de julgamento da acção por um tribunal superior ou como meio de controlo da decisão recorrida.

No primeiro caso, o objecto do recurso coincide com o objecto da instância recorrida, dado que o tribunal superior é chamado a apreciar e a julgar de novo a acção: o recurso pertence então à categoria do recurso de reexame; no segundo caso, o objecto do recurso é a decisão recorrida, dado que o tribunal ad quem só pode controlar se, em função dos elementos apurados na instância recorrida, essa decisão foi correctamente decidida, ou seja, se é conforme com esses elementos: nesta hipótese, o recurso integra-se no modelo de recurso de reponderação[1].

No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento.

Como o pedido e a causa de pedir só podem ser alterados ou ampliados na 2ª instância se houver acordo das partes – eventualidade mais que rara – bem pode assentar-se nisto: que os recursos interpostos para a Relação visam normalmente apreciar o pedido formulado na 1ª instância com a matéria de facto nela alegada.

Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que não hajam sido formulados.

Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas[2].

Excluída está, portanto, a possibilidade de alegação de factos novos - ius novarum nova – na instância de recurso.

Em qualquer das situações, salvaguarda-se, naturalmente, a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, da matéria de conhecimento oficioso[3].

Ao tribunal ad quem é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida.

Estas questões – como, v.g., o abuso do direito, os pressupostos processuais, gerais ou especiais, ou a litigância de má fé, oficiosamente cognoscíveis – constituem um objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente, embora, quando isso suceda, de modo a assegurar a previsibilidade da decisão e evitar as chamadas decisões-surpresa, o tribunal ad quem deva dar uma efectiva possibilidade às partes de se pronunciarem sobre elas (artº 3 nº 3 do CPC).

Face ao modelo do recurso de reponderação que o direito português consagra, o âmbito do recurso encontra-se objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal ad quem que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi apresentada e decidida na 1ª instância.

A função do recurso ordinário é, no nosso direito, a reapreciação da decisão recorrida e não um novo julgamento da causa.

O modelo do nosso sistema de recursos é, portanto, o da reponderação e não o de reexame[4].

A questão concreta controversa em torno da qual gravita o litígio é de saber se o crédito do apelado está ou não garantido por direito de retenção.

Para sustentar a resposta negativa, a apelante alega, como fundamento da impugnação, que a compra das fracções não se destinava à habitação do credor A…, mas sim à sua posterior venda a terceiros ou arrendamento, que aquele não actuou como consumidor e não é consumidor.

Simplesmente uma leitura, ainda que meramente oblíqua quer da matéria de facto julgada provada pelo Tribunal de que provém o recurso – que neste ponto não é objecto de impugnação - quer das alegações produzidas pelas partes na instância recorrida, torna patente, de um aspecto, que aqueles factos não foram julgados, e de outro – o que é mais – que nem sequer foram alegados naquela instância.

A única coisa que a este propósito se julgou provado foi que o recorrido reside no Brasil e não habita as fracções. Mas deste facto não decorre, como corolário que não possa ser recusado, que o apelado destinava aquelas fracções à venda ou a arrendamento.

Como melhor se procurará detalhar, um dos pressupostos do direito de retenção é a existência de um nexo causal entre o crédito e a coisa: é o que decorre da declaração da lei de que o crédito deve resultar de despesas por causa da coisa ou de danos por ela causados (artº 754 do Código Civil).

Contudo, essa conexão pode também ser estabelecida pelo facto de a detenção resultar de uma relação legal ou contratual à qual a lei reconheça, como garantia, aquele direito.

Está nestas condições, precisamente, a retenção reconhecida ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real para quem a coisa objecto mediato definitivo prometido tenha sido traditada, no tocante ao crédito resultante do não cumprimento dele pelo outro promitente (artº 755 nº 1 f) do Código Civil).

Sem paralelo noutros ordenamentos, o direito de retenção assinalado foi introduzido na nossa ordem jurídica na década de 80 com o fito declarado de proteger o promitente adquirente de prédios urbanos ou de fracções autónomas destes do não cumprimento, por promitentes pouco escrupulosos, da promessa correspondente (artº...

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