ACÓRDÃO Nº 500/2009
Processo 99/09
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos em que é recorrente Ministério Público e recorrida A., Lda., foi interposto recurso, com carácter obrigatório, ao abrigo do n.º 3 do artigo 280º, da CRP, e do artigo 70º, n.º 1, alínea a) da LTC, da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, em 5 de Setembro de 2009 (fls. 70 a 76), que desaplicou a norma constante do n.º 1 do artigo 4º do Código do Imposto de Valor Acrescentado [de ora em diante, identificado por CIVA], por “faltar à norma o «elevado grau de determinação conceitual» exigível, assim afrontando o disposto no Art.º 103/2 CRP (…)” (fls. 74).
2. Notificado para tal pela Relatora, o recorrente produziu as seguintes alegações:
«1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da decisão, proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, nos autos de impugnação em que figura como uma impugnante A. Loja do Ceramista, na parte em que se recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação da norma constante do artigo 4º, nº 1, do CIVA.
Na óptica da decisão recorrida, tal norma - de carácter “residual” e grande amplitude – violaria o princípio da legalidade tributária, já que dela decorreria um desenho “elástico” quanto à incidência de tal imposto, transferindo para a administração tributária o poder de decidir quais as situações de facto que se lhe subsumem – e levando, no caso dos autos, à inclusão de um negócio jurídico de cessão da posição contratual, detido em contrato de locação financeira, tido por subsumível no amplo conceito de “prestação de serviços a título oneroso”, delineado pela norma desaplicada.
O princípio de legalidade tributária não impede que o legislador fiscal possa utilizar conceitos indeterminados ou cláusulas gerais na definição dos pressupostos da obrigação tributária, incluindo a definição do âmbito da incidência fiscal.
A questão de admissibilidade e do âmbito do uso pela lei fiscal de cláusulas gerais ou de conceitos indeterminados foi aprofundadamente analisada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 252/05, que procede a um levantamento exaustivo de anterior jurisprudência sobre tal tema, concluindo que não pode inferir-se automaticamente do princípio da legalidade e da tipicidade que esteja vedada a utilização de conceitos indeterminados no âmbito da “fattispecie” normativa que releva para delimitar a incidência tributária – impondo-se distinguir os casos de inadmissível outorga à Administração Fiscal de verdadeiros poderes discricionários, judicialmente insindicáveis, “daqueloutros onde, perante um conceito indeterminado, a actuação administrativa é completamente vinculada e, por isso, sindicável pelo tribunal em toda a sua extensão (…), “sendo que, no domínio tributário – mesmo no que toca especificamente à definição dos elementos essenciais dos impostos nos aspectos relacionados com a sua incidência – o princípio da legalidade não impede que a prescrição legislativa que contenha conceitos indeterminados através dos quais se “remeta (…) a administração para a consideração de circunstâncias de índole técnica (…) (possa) significar a preterição da instancia jurisdicional decidente, (ou) a condenação do contribuinte a uma mera decisão administrativa (…)”.
“Na verdade, não pode deixar de reconhecer-se que tais “conceitos indeterminados” são passíveis de uma interpretação concretizadora que opere a sua determinação conceitual (…) [não colocando] nas mãos da Administração Fiscal o monopólio da sua densificação (…) como autênticas “cláusulas de discricionariedade”, porquanto, “se nem todos os conceitos legais têm o mesmo grau de indeterminação, a verdade é que todos são interpretáveis e, embora a determinação do sentido jurídico-normativo da norma interpretada seja marcada por uma ineliminável subjectividade, tal não significa, contudo, que a mobilização de normas legais onde estejam inseridos conceitos indeterminados não possa ser pertinentemente sindicada pelos tribunais fiscais”.
No caso dos autos, o problema detectado prende-se – mais do que com a indeterminação conceitual – com a amplitude – tida por desproporcionada e excessiva – da previsão normativa constante do artigo 4º, nº 1, do CIVA: na verdade, tal norma inclui no âmbito de incidência do IVA todas as operações efectuadas a título oneroso - perspectivadas como “prestação de serviços” – mesmo que não integrem transmissões onerosas de bens, prestações onerosas de serviços ou actos de transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.
Tudo se passa, em rigor, como se tal norma submetesse à incidência do IVA todas as transmissões ou atribuições patrimoniais, feitas a título oneroso, independentemente da estrutura jurídica do negócio em que as mesmas se corporizam.
Não se pode dizer que tal ampla previsão normativa implique a criação de uma “zona obscura” ou de fronteira, de difícil apreensão, determinabilidade e controlo, nomeadamente jurisdicional: é que a norma, com tal interpretação e configuração, é clara e tem um conteúdo determinável, embora efectivamente muito amplo, sendo questões diferentes e autónomas a indeterminação e a amplitude da “fattispecie” das normas que regem sobre a incidência tributária.
Na verdade, estatuir que todos os actos que se consubstanciam numa transferência ou aquisição patrimonial, feita a título oneroso, estão sujeitos a IVA não traduz qualquer indeterminabilidade dos elementos que integram esta previsão normativa – implicando apenas que o legislador fiscal optou por estabelecer uma cláusula de grande amplitude, mas de sentido perfeitamente apreensível pelos destinatários da norma e controlável pelos tribunais.
É certo que a qualificação de tais actos de atribuição patrimonial, a título oneroso, como “prestações de serviços” pode – do ponto de vista estritamente jurídico - configuram-se como efectivamente discutível, nomeadamente por os mesmos nada terem que ver com o conceito jus-civilístico de “prestação de serviços”, decorrente do artigo 1154º do Código Civil (sendo evidente que o negócio de cessão de posição contratual nada tem que ver com a figura do contrato de prestação de serviço,...