Acórdão nº 4964/14.9T8SNT.L1.S3 de Supremo Tribunal de Justiça, 18-09-2018
Data de Julgamento | 18 Setembro 2018 |
Case Outcome | NEGADA A REVISTA |
Classe processual | REVISTA |
Número Acordão | 4964/14.9T8SNT.L1.S3 |
Órgão | Supremo Tribunal de Justiça |
Acordam na 1ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório
1. AA instaurou ação declarativa comum contra BB, Lda., pedindo a condenação desta a cessar a atividade de lavandaria, fixando-se uma sanção pecuniária compulsória de valor não inferior a cem euros por dia em que esta exerça ali a dita atividade.
Alega, em síntese, que a ré instalou no rés-do-chão de um edifício habitacional, constituído em propriedade horizontal, um estabelecimento comercial de lavandaria; porém, nessa fração não é permitido o exercício de atividade industrial; essa atividade produz ruído que atinge com muita intensidade a fração imediatamente acima desse rés-do-chão, onde habita, que impossibilita o seu sossego e tranquilidade e lhe causa sofrimento diário e agravamento do seu estado de saúde.
2. Citada, a Ré veio contestar (por exceção), alegando que procedeu já às obras de insonorização necessárias para debelar a propagação do ruído da sua atividade, e que a Autora adquiriu a sua fração sabendo da existência, no prédio, da atividade comercial da Ré, pelo que se conformou com a sua existência, sendo que a presente ação configura um abuso de direito na parte em que pretende que a Ré seja condenada a cessar a sua atividade comercial.
Conclui pela improcedência da ação.
3. Realizou-se a audiência prévia, tendo-se proferido despacho saneador tabelar; foi fixado o objeto do litígio e os temas de prova.
4. Realizou-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu a Ré dos pedidos contra si formulados.
5. Inconformada com esta decisão, a Autora interpôs recurso de apelação.
6. O Tribunal da Relação de Lisboa veio a julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
7. Inconformada com tal decisão, a Autora/Apelante interpôs recurso de “revista excecional”.
8. A Formação de Juízes a que alude o nº3 do artigo 672º do Código de Processo Civil não admitiu o recurso de revista excecional, por não se verificar, no caso presente, o pressuposto da dupla conformidade.
9. O recurso de revista foi recebido, tendo sido proferida a seguinte decisão: “concede-se, parcialmente, a revista, revogando-se o acórdão recorrido, determinando-se que o Tribunal da Relação de Lisboa proceda à reapreciação da matéria de facto impugnada pela Recorrente”.
10. O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu novo Acórdão, decidindo julgar parcialmente procedente o recurso de apelação, “ordenando-se que a Ré não deverá iniciar a utilização de máquinas e de equipamentos que produzam sons (v.g., rádio) antes das 9 horas da manhã, cessando tal utilização pelas 19 horas”.
11. Inconformada com tal decisão, a Autora/Apelante interpôs recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:
1ª. O acórdão de que agora se recorre, em substituição do vencido, acaba por ser uma falácia porque, no seu modus faciendi, violador dos direitos legais da Recorrente, lhe impõe 10 horas diárias de agravamento da sua saúde e a obriga a continuar a refugiar-se fora do seu lar por períodos interpolados.
2ª. A aceitação pela Ré de que "Na fração onde funciona a lavandaria não é permitido o exercício de actitividades industriais" e reconhecendo ela a sua ilicitude porque diz que causou incómodo à Autora, tal asserção é matéria de facto e não de direito.
3ª. Ocorre no caso a Nulidade do artº 615°, n° 1, al c). in fine, do CPC porque os fundamentos de direito estão em oposição com a decisão porquanto, reapreciando de mérito (págs. 15, 16 e 17) se diz que a Autora goza do direito ao repouso e ao sono e fazem-se e ressaltam-se citações justificativas desse direito e por fim, em decisão violadora do art° 335°. n° 2, do Código Civil agravam-se seus males com uma decisão que impõe à Autora 10 horas diárias de suplício ruidoso e ilegal.
4ª. Ocorre também a nulidade do art° 615°. n° 1, al d). in fine, do CPC porque o acórdão se alonga para onde não devia pois que, embora reconhecendo que a Ré não cumpre a lei do ruído, esvazia a estatuição do art° 335°. n° 2, do Código Civil no sentido de considerar o direito da Ré, que ela não invocou, da mesma espécie ou igual ao direito à saúde e, contra as decisões favoráveis que cita, recusa-se a trilhar o mesmo caminho e interpreta o n° 2 do artº 335° do Código Civil no sentido de considerar o direito fundamental à saúde a ceder ao direito ao exercício de uma atividade industrial molestadora da saúde, em frontal violação do n° 1 do art° 25° da Constituição.
5ª. Mais se verifica a existência da nulidade do art° 615°, nº 1. al d), primeira parte, do CPC porque o acórdão não conheceu da questão alegada no art° 23° da p. i. que é:
A instalação de uma indústria em fração não destinada a esse fim carecia do acordo da A., sendo esse acordo insuprível mesmo judicialmente (Ac. da Relação de Lisboa de 12-06-1984:3 151 e BMJ, 345 - 446 e 03-04-2014).
6ª. Ré não formulou nenhum pedido contra Autora, por isso não podia o Tribunal tomar conhecimento de tal questão pelo que, fazendo-o, cometeu aqui também nulidade do art° 615°, n° 1, al d). in fine, do CPC que proíbe o juiz de apreciar ou conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento.
7ª. Se o conflito surgir entre "direitos, liberdades e garantias" sujeitos a reserva de lei restritiva e outros bens ou direitos, há ainda persistência dos primeiros" (Ac STJ de 13/03/1997).
8ª. Tendo ficado provado que o ruído está a agravar a saúde da Autora, impõe-se a procedência da ação.
9ª. Foram violados os do art° 615, n° 1. alíneas c) e de, do CPC e os artigos 70°. nºs 1 e 2 e 335°, n°2 do Código Civil pois que o verdadeiro sentido das normas é que o direito à saúde se sobrepõe ao direito a exercer uma atividade industrial agravadora da saúde.
E conclui, pedindo que a Ré seja condenada no pedido.
12. A Recorrida BB, Lda. não contra-alegou.
13. O Tribunal da Relação de Lisboa veio a pronunciar-se sobre as nulidades arguidas, pelo Acórdão de fls. 223/226, indeferindo “na totalidade a arguição das nulidades feitas pela autora”.
14. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II. Delimitação do objeto do recurso
Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pela Autora/ ora Recorrente decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:
- a nulidade do Acórdão: oposição entre os fundamentos e a decisão, excesso de pronúncia; omissão de pronúncia (alíneas c) e d) do nº1 do artigo 615º do Código de Processo Civil;
- a apreciação do mérito da causa (a violação do disposto nos artigos 70º e 335º, nº2, do Código Civil).
III. Fundamentação.
1. Factos dados como provados pelas instâncias
1.1. A ré instalou no rés-do-chão do prédio habitacional da Rua ..., uma lavandaria onde é utilizado equipamento de cariz industrial, designadamente máquinas rotativas de lavagem, centrifugação e secagem de roupa.
1.2. O prédio está constituído em propriedade horizontal.
1.3. Conforme a respetiva escritura de constituição de propriedade horizontal, o espaço onde se mostra instalada a lavandaria corresponde a loja, composta por uma divisão ampla, uma instalação sanitária com antecâmara e uma varanda à retaguarda, sem indicação do destino a que a mesma pode estar afeta.
1.4. Os ruídos produzidos pela laboração da lavandaria chegam à habitação imediatamente acima da mesma, correspondente ao primeiro andar direito.
1.5. A autora abandonou o seu emprego pelo ano de 2004.
1.6. A autora foi sujeita a cirurgia ortopédica e neurológica em fevereiro e junho de 2012 no Hospital de Sant’Ana e com indicação de repouso, tendo sido enviada para consulta de psiquiatria e de dor no Hospital Fernando da Fonseca.
1.7. A autora sofre de um quadro de dor lombar intensa, irradiada ao longo do membro inferior direito até ao calcanhar, acompanhada de contratura dos músculos eretores da coluna. Apresentava ainda gonialgia esquerda.
1.8. A autora tem indicação clínica para fazer fisioterapia.
1.9. A ré não labora aos domingos e encerra a sua atividade diariamente pelas 21h00m.
1.10. A ré, em maio de 2014, procedeu a obras de insonorização da loja, que reduziram o ruído proveniente da sua laboração para 6 dB (A) no interior da habitação em 1.4, supra.
1.11. Em 29.05.2014, a ré enviou a CC, na morada da referida habitação, onde foi rececionada, uma comunicação escrita onde fez notar que «conforme o determinado pela Câmara Municipal de Sintra venho informar V. Exa. que tenho que proceder a medições acústicas no seu apartamento. Nesse sentido, venho solicitar que conceda autorização para o fazer nos dias 5 e 6 de Junho de 2014 entre as 17h00m e as 19h00m. Se esta data não lhe for conveniente, proponho outra, ou seja, nos dias 17 e 18 de Junho à mesma hora. Quem irá realizar estes trabalhos é o Sr. Engenheiro DD da firma EE, Lda., devidamente credenciados e certificados para o efeito».
1.12. Porém, não foi dada permissão para tais medições.
No âmbito da reapreciação da matéria de facto, o Tribunal da Relação deu, ainda, como provados os seguintes factos:
1.13. Os ruídos referidos em 1.4. são incómodos e impossibilitam a Autora de descansar no período de funcionamento da lavandaria, quando a Autora se encontra no primeiro andar direito.
1.14. O referido em 1.13. contribui para o agravamento do estado de saúde da Autora.
1.15. A Autora sofre de síndrome depressiva desde 2002 com indicação terapêutica de descanso.
1.16. A Autora pernoita, toma as refeições, recebe a família e amigos na fração imediatamente acima da lavandaria mas fá-lo apenas em períodos interpolados (os quais não totalizam metade do ano) em virtude do referido em...
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