Acórdão nº 4654/19.6T8CBR-A.C1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 07-06-2022

Data de Julgamento07 Junho 2022
Case OutcomeNEGADA A REVISTA.
Classe processualREVISTA (COMÉRCIO)
Número Acordão4654/19.6T8CBR-A.C1.S1
ÓrgãoSupremo Tribunal de Justiça



Processo nº4654/19.6T8CBR-A.C1.S1

Recorrente: “Litoral Domésticos – Comércio de Electrodomésticos Ldª”

Recorrida: AA

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. Por apenso ao processo no qual foi declarada a insolvência da devedora “Troféu Genuíno, Electrodomésticos, Unipessoal, Ld.ª” a credora “Litoral Domésticos Comércio de Electrodomésticos Ld.ª” requereu a qualificação da insolvência como culposa, com afetação da sócia gerente AA, por entender que se encontravam preenchidas as hipóteses previstas nas alíneas a), b), d), e), g) e i) do nºº 2 e da alínea a) do nºº 3 do art. 186.º do CIRE.

Alegou a credora, em síntese, que aquela sócia gerente: ocultou ou fez desaparecer, em proveito pessoal, parte considerável do património da insolvente (pelo menos 34.000,00); celebrou negócio ruinoso e em seu proveito pessoal quando vendeu um veículo a metade do preço de mercado num momento em que a sociedade já estava em situação de insolvência; exerceu, a coberto da personalidade coletiva da Insolvente, uma atividade em proveito pessoal em prejuízo da empresa e dos credores (ou certos credores), sendo certo que a sociedade estava, há muito, em situação de insolvência; prosseguiu, no seu interesse pessoal, uma exploração deficitária, não obstante saber ou dever saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência - que, alias, se verificou desde a constituição da insolvente - trabalhando à custa dos fornecedores a quem só pagava quando recebia depois de receber dos clientes finais (sempre fora do prazo de vencimento das dívidas) sem que dispusesse de fundos próprios para pagar atempadamente aos fornecedores; incumpriu, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração com o tribunal e com o senhor administrador, não apresentando os documentos a que estava obrigada no seu articulado de oposição e não prestando as devidas informações solicitadas pelo senhor administrador judicial; incumpriu de forma flagrante o dever de requerer a declaração de insolvência, uma vez que a sociedade estava em situação de insolvência desde a sua constituição, com especial impacto em 2018 quando entrou em situação de incumprimento relativamente à generalidade dos seus credores (não só fornecedores, mas também trabalhadores); ao atuar desse modo - de forma dolosa ou, pelo menos, gravemente culposa - a referida sócia gerente criou ou agravou a situação de insolvência, nunca tendo revelado capacidade para gerir convenientemente a empresa.

2. AA apresentou oposição, defendendo, em síntese, não ter adotado qualquer conduta culposa que tivesse agravado a situação económica da sociedade.

Alegou que a sociedade insolvente teve uma quebra nos seus negócios, em virtude da conjuntura que se viveu nos últimos anos de grave crise económica, associada à falta de saúde da opoente; que não apresentou a sociedade à insolvência por saber que conseguia liquidar todos os débitos com o produto da venda, que pretendia efetuar, do imóvel onde estava instalado o estabelecimento e que era seu bem próprio, situação que comunicou aos credores, tendo mantido os pagamentos devidos à Segurança Social e à Autoridade Tributária e à Caixa de Crédito Agrícola, onde contraíra um empréstimo; que nunca subtraiu quaisquer bens da Insolvente; que o veículo referido pela Requerente foi vendido pelo preço justo que se destinou a efetuar diversos pagamentos e que apenas não liquidou o passivo devido à conduta da Requerente que tudo fez para inviabilizar a venda do referido imóvel. Concluiu pedindo que a insolvência fosse declarada fortuita.

3. O Administrador da Insolvência apresentou parecer sustentando a qualificação da insolvência como culposa, dizendo, em síntese, que a sócia gerente da Insolvente não se apresentou à insolvência quando a situação o aconselharia; prosseguiu uma exploração deficitária e optou pela liquidação, beneficiando alguns credores.

4. O Ministério Público sustentou que a insolvência fosse qualificada como culposa - nos termos dos artigos 185.º, 186.º, nººs 1 e 2, alíneas a), b), d), e), g) e i), e nºº 3, al. a), do CIRE - com afetação da sócia gerente AA.

5. A Requerente pediu o desentranhamento de um documento que a requerida havia junto com a oposição, alegando que estaria coberto por sigilo profissional. Depois do exercício do contraditório, veio a ser proferido despacho sobre essa matéria, com o seguinte teor:

“(...) afigura-se prematuro conhecer, desde já, se a junção do documento em referência constitui - ou não - violação do dever de sigilo profissional, uma vez que o que poderá relevar é a eventual consideração ou valoração do mesmo na apreciação probatória a fazer pelo Tribunal. Com efeito, pode o mesmo nem sequer vir a ser valorado pelo Tribunal, não havendo, nesse caso, qualquer necessidade de apreciar tal questão. Se, todavia, o mesmo vier a revelar-se relevante para a decisão da causa, deverá o Tribunal apreciar a questão”.

6. Veio a ser proferida sentença que julgou improcedente o pedido de qualificação da insolvência como culposa, tendo qualificado a insolvência como fortuita.

No que respeita à questão do supra referido documento (junto pela requerida e impugnado pela requerente), decidiu-se o seguinte: “Consigna-se que, pelo facto de não ter sido valorado na apreciação probatória realizada, não se conhece da questão referente à eventual violação do dever de sigilo profissional a respeito da junção do documento que faz fls. 171 v.º, suscitada pela credora Litoral Domésticos”.

7. Inconformada com a sentença, a requerente interpôs recurso de apelação, mas o TRC não lhe deu razão, pois confirmou a decisão recorrida, embora com diferente fundamentação no que respeita à aplicação do art.186º, nº3, alínea a) do CIRE.

8. Discordando do acórdão do TRC, a apelante interpôs o presente recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

«A) A Recorrente não se conforma com o Acórdão recorrido por considerar que o mesmo Julgou erradamente os vícios graves que determinam a nulidade da sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, por um lado, e por considerar que o Tribunal da Relação decidiu mal em termos de interpretação e aplicação do direito em face dos factos provados.

B) Em concreto, a Recorrente considera que o Acórdão da Relação deverá ser revogado e substituído por outro que declare nula a sentença da Primeira Instância, o que deverá suceder por três razões:

a. Porque o Tribunal Primeira Instância não se pronunciou (i) sobre o desentranhamento do Doc. 3 do Requerimento de 29.05.2021 (refª ...24), pelo facto de poder estar coberto por sigilo profissional e (ii) nem sobre se deveria considerar como não escrito o disposto no art. 26.º da Oposição, que se refere à matéria do documento em causa;

b. Porque o Tribunal Primeira Instância não se pronunciou quanto aos factos e argumentos alegados nos arts. 86.º e 87.º do requerimento inicial (do presente apenso de insolvência culposa).

c. Porque a sentença proferida pelo Primeira Instância é manifestamente ambígua e obscura quanto a quem terá efetuado vários pagamentos ao Estado e a outros credores da Trofeu Genuíno Unip. Lda., bem como quanto ao destino dado pela Recorrida à quantia de, pelo menos, € 5.030,00 que o administrador de insolvência diz que foi parar à esfera pessoal da Recorrida.

C) Quanto à matéria de direito, a Recorrente entende que, em face da matéria que considerou provada, o Tribunal da Relação de Coimbra não fez uma adequada interpretação e aplicação do disposto nas als. a), b), d), e), g), e i) do nº 2 e na al. a) do nº 3 do art. 186.º do CIRE.

D) Quanto à interpretação do disposto no art. 186.º, nº 2 e 3 do CIRE o Tribunal da Relação considerou e bem que aí se estabelecerem presunções absolutas ou inilidíveis da existência de insolvência culposa.

E) Quanto ao disposto no art. 186.º, nº 3, al. a) do CIRE, o Tribunal da Relação de Coimbra considerou e bem que está em causa uma presunção ilidível de insolvência culposa.

F) Sobre o alcance de tais presunções, BB («A responsabilidade dos administradores na insolvência, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, Vol. II, 2006, p. 677 ss.) refere que o art. 186 nº 2 faz presumir iuris et de iure a causalidade da violação ilícita e culposa de determinados deveres em relação à insolvência.

Esta causalidade é fundamentante da responsabilidade (haftungsbegründend), pois diz respeito ao seu fundamento. O citado preceito dispensa o lesado da respectiva prova. Mutatis mutandis, o mesmo ocorre no nº 3.

G) Estamos perante presunções de causalidade pela criação ou agravamento da insolvência, o que visa facilitar a imputação de responsabilidade aos administradores afetados pela violação dos deveres que resultam do art. 186.º, nº 2 e 3 do CIRE.

H) Na aplicação do direito ao caso em apreço, o Tribunal da Relação de Coimbra não foi coerente com aquele entendimento e não respeitou o modo como devem operar as presunções absolutas e relativa de insolvência culposa.

I) Quanto à als. a), d) e e) do nº 2 do art. 186.º do CIRE, resulta dos pontos 3 a 28 que a sócia-gerente da sociedade declarada insolvente terá feito desaparecer parte considerável do património da devedora no ano de 2019, a seu favor e de terceiros.

a. De acordo com os elementos contabilísticos apresentados no requerimento inicial do incidente de qualificação e que resultam também do relatório do administrador de insolvência, nas contas de 2018 a insolvente tinha bens inventariados e avaliados em € 46.567,36

b. De acordo com o ponto 27 da matéria provada, em 02.12.2019 os bens pertencentes à empresa insolvente, eram compostos maioritariamente por equipamentos necessários ao exercício da atividade (€ 1.810) e por contas bancárias (€ 36,15), totalizavam um valor de 1.846,15€ (ver Inventário dos autos principais, apresentado em 02.12.2019).

c. De acordo...

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