Acórdão nº 416/20.6 BELRA-S1 de Tribunal Central Administrativo Sul, 04-11-2021

Judgment Date04 November 2021
Acordao Number416/20.6 BELRA-S1
Year2021
CourtTribunal Central Administrativo Sul
Acordam, em Conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:


I. RELATÓRIO
O Ministério Público (Recorrente) vem interpor recurso jurisdicional da decisão proferido pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Leiria em 07/10/2020, pela qual foi indeferida a arguição de nulidade da citação invocada pelo Recorrente na ação administrativa proposta por A… contra o Estado Português (Recorridos).

Nesta ação administrativa, a Recorrida A… veio peticionar a condenação do Estado Português a pagar-lhe uma indemnização na quantia de 30.000,00 Euros a título de responsabilidade civil decorrente de atraso e erros em sede de processo de inquérito.
Tendo a citação do Estado Português sido dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, veio o Recorrente Ministério Público, em 09/06/2020, arguir a nulidade por falta de citação, sustentando tal na pretensão de recusa de aplicação do disposto nos art.ºs 11.º, n.º 1 e 25.º, n.º 4 do CPTA ao caso posto em virtude da inconstitucionalidade material destas normas por violação do prescrito nos art.ºs 219.º, n.ºs 1 e 2, 3.º, n.º 3 e 204.º da Constituição da República Portuguesa.
Em 07/10/2020, foi proferida decisão respeitante à invocada nulidade por falta de citação do Ministério Público, decisão essa que indeferiu a arguida nulidade.
Inconformado com o assim julgado, o Recorrente apela a este Tribunal Central Administrativo, imputando erro de julgamento à decisão recorrida e, consequentemente, clamando, pela revogação da mesma e inerente procedência do pedido de declaração da nulidade da citação.

As alegações do recurso que apresenta culminam com as seguintes conclusões:
III- CONCLUSÕES:
1- Na presente Ação Administrativa, fundada em responsabilidade civil extracontratual do Estado, com base em atraso na decisão em prazo razoável, intentada contra o Estado, a citação foi dirigida unicamente para o Centro de Competências Jurídicas do Estado, a coberto disposto no artigo 25º, nº 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), tendo o MP apenas sido notificado da pendência da Ação para os efeitos do disposto no artigo 85º, nº 1 do CPTA.
2- A Lei nº 118/2019, de 17 de Setembro, que entrou em vigor em 16.11.2019, introduziu, no CPTA, a nova norma acima referida, que estabelece que quando seja demandado o Estado já não é citado o Ministério Público, em representação deste, como até agora sempre esteve consa-grado, mas sim o Centro de Competências Jurídicas do Estado, designado por JurisAPP, que é um serviço central da administração direta do Estado, integrado na Presidência do Conselho de Minis-tros;
3- Sob a sua aparência puramente procedimental e regulamentar — o que bastaria para a considerar deslocada num diploma sobre processo administrativo —, trata-se de uma norma revo-lucionária, sobretudo quando conjugada com o disposto na parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, na redação igualmente conferida pela mesma Lei nº 118/2019;
4- Com efeito, onde na anterior redação desta norma se previa ―(…) sem prejuízo da re-presentação do Estado Pelo Ministério Público passou, com a referida alteração, a prever-se ―(…) sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público, o que transfor-mou numa exceção o que era uma regra, pois o possível tanto é o que pode ser como o que pode não ser vez alguma, sendo que não se vislumbra qualquer possibilidade de o Ministério Público ser eliminado, ao menos potencialmente, da representação do Estado no domínio do contencioso ad-ministrativo sem que daí resulte uma flagrante ofensa da primeira proposição do nº 1 do artigo 219º da CRP;
5- Pelo que, esse conjunto normativo esvazia o essencial da função do Ministério Público nos tribunais administrativos, enquanto representante do Estado-Administração, mostrando-se desconforme ao parâmetro normativo consagrado na primeira proposição do nº 1 do artigo 219º da CRP;
6- A norma do artigo 219º, nº 1 da CRP configura um imperativo constitucional, a observar pelo legislador ordinário, que contém a regra da atribuição de competência ao Ministério Público para representar o Estado;
7- Em 1 de Janeiro de 2020 entrou em vigor o novo Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 68/2019, de 27 de Agosto — i.e, menos de um mês antes da publicação da Lei nº 118/2019, de 17 de Setembro, que contém as normas cuja inconstitucionalidade se invoca, que continuou a confiar a representação do Estado ao Ministério Público (artigo 4º, nº 1, al. b)) e a prever a existência de ―um departamento central de contencioso do Estado e interesses coletivos e difusos da Procuradoria-Geral da República, o qual passará a intervir também em matéria tributária e não apenas na cível e administrativa (artigo 61º, nº 1 e 2);
8- A Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro, que procedeu à 12ª alteração no ETAF/2002, — i.e., menos de uma semana antes da edição da Lei nº 118/2019, a que pertencem as normas aqui questionadas —, não introduziu qualquer alteração ao disposto no artigo 51º;
9- A representação do Estado em juízo foi sempre confiada, a nível constitucional e da lei ordinária, ao Ministério Público (com a única exceção da hipótese residual contemplada na parte final do nº 1 do artigo 24º do vigente CPC), estando essa representação, nas áreas cível, administrativa e até tributária, inequivocamente prevista em diplomas recentíssimos e de uma evidente centralidade na conformação dos nossos sistemas jurídico e judiciário;
10- A norma do nº 1 do artigo 219º da CRP, que confia ao Ministério Público a representação judiciária do Estado-Administração (central), possui natureza auto-exequível, incondicionada, sem necessidade de densificação pela legislação ordinária, configurando-se como uma intencional e estrutural opção constitucional, em consonância com a tradição jurídica do país;
11- Tanto o legislador constituinte originário como o derivado ponderaram os atributos do Ministério Público como magistratura dotada de ―autonomia (artigo 219º, nº 2 da CRP), com a sua atuação sempre vinculada a ―critérios de legalidade e objetividade (artigo 3º, nº 2 do EMP) e, em razão desses atributos, confiaram-lhe a tarefa representativa do Estado em juízo, justamente a título de representação e não como advogado, patrono ou mandatário judicial; sendo a representação do Estado nos tribunais por parte do Ministério Público é configurável como um verdadeiro princípio judiciário constitucional, com alcance material;
12- Porém, em flagrante contradição sistémica e teleológica, a parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, na redação conferida pelo artigo 6º da Lei nº 118/2019, vem reduzir a representação do Estado por parte do Ministério Público a uma pura eventualidade;
13- A nova redação limita-se a acrescentar o substantivo ―possibilidade, mas desse modo transforma a regra da ―representação do Estado pelo Ministério Público em exceção, o conjunto de alterações legislativas no âmbito da jurisdição administrativa que ocorreram em 2019, de que faz parte aquele preceito, não tenha introduzido, paralelamente, o referido substantivo no artigo 51º do ETAF.
14- Do confronto da fórmula usada no CPTA (parte final do nº 1 do artigo 11º ―sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público) com a acolhida no CPC (artigo 24º, nº 1: ―O Estado é representado pelo Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio…), resulta segura a conclusão de que, no âmbito do primeiro diploma, a representação do Estado por parte do Ministério Público tem caráter eventual e subsidiário, ao passo que no segundo constitui a regra, só passível de afastamento por lei concreta;
15- A nova redação do artigo 11º, nº 1, in fine, do CPTA torna meramente eventual e subsidiária a intervenção do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo, pelo que, mesmo numa apreciação isolada, dificilmente a norma se compatibilizaria com o princípio judiciário constitucional da representação do Estado nos tribunais através do Ministério Público, imposta pelo primeiro segmento do nº 1 do artigo 219º da CRP;
16- A desarmonia dessa norma com a Lex Fundamentalis torna-se ainda mais clara quando se proceda à sua interpretação conjugadamente com a do nº 4 do artigo 25º, também aditado pela referida Lei nº 118/20, que estabelece que quando seja demandado o Estado a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado;
17- No que se reporta ao Estado, a norma destrói a mais elementar lógica de constituição da instância processual administrativa, visto que, por um lado, o réu Estado Administração é unicamente citado numa entidade que não possui poderes legais para a sua representação em juízo e, por outro, não é citado através do órgão que possui tais poderes, por força de disposição constitucional (e também legal);
18- Por outro lado, nos termos do artigo 223º, nº 1 do CPC, subsidiariamente aplicável ao contencioso administrativo, a citação das pessoas coletivas — como é o caso indiscutível do Esta-do-Administração — realiza-se ―na pessoa dos seus legais representantes;
19- O único representante do Estado em juízo, pelo menos enquanto o Estado não manifestar a vontade de pretender ser patrocinado de outro modo (pressuposta, por necessidade de raciocínio, a validade dessa declaração), o seu ―representante natural é o Ministério Público, em quem deve ser realizada a citação;
20- O mecanismo implementado pelo nº 4 do artigo 25º, conjugado com a parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, ambos na redação da Lei nº 118/2019, conduz em linha reta, de forma necessária, a uma presença subsidiária e minimalista do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo;
21- Acresce que a norma do nº 4 do art.º 25º CPTA, na redação da ...

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