Acórdão nº 399/21.5GCVNF.G2 de Tribunal da Relação de Guimarães, 20-02-2024
Data de Julgamento | 20 Fevereiro 2024 |
Ano | 2024 |
Número Acordão | 399/21.5GCVNF.G2 |
Órgão | Tribunal da Relação de Guimarães |
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I. - RELATÓRIO
1. - No âmbito do processo n.º 399/21...., do Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., em 06.10.2023, foi proferido despacho judicial com o seguinte teor [transcrição[1]]:
«Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto - Da não aplicação do perdão ao arguido condenados nos presentes autos
Nos presentes autos foi o arguido AA, nascido em ../../1980, condenado pela prática, em ../../2021, de um crime de furto qualificado, furto qualificado na forma tentada e burla informática, na pena única de 3 anos de prisão.
O perdão previsto na Lei 38-A/2023 aplica-se, de acordo com o seu art. 2º, n.º 1, “às sanções penais relativas aos ilícitos praticados (…), por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto”, o que manifestamente não é o caso do arguido, que tinha já mais de 30 anos aquando da prática dos factos.
Em conformidade, não tem lugar o perdão de penas previsto na referida Lei.
Notifique..»
2. - Não se conformando com tal decisão, dela veio AA interpor recurso, nos termos que constam do respetivo requerimento e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, tendo, no termo da motivação, formulado as seguintes conclusões e petitório:
«I. Vem o presente Recurso interposto do douto despacho datado de 06/10/2023, com o seguinte teor:
“O perdão previsto na Lei 38-A/2023 aplica-se, de acordo com o seu art. 2º, n.º 1, “às sanções penais relativas aos ilícitos praticados (…), por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto”, (…) Em conformidade, não tem lugar o perdão de penas previsto na referida lei”.
II. Nos termos do despacho extratado, entendeu o tribunal “a quo” não ser de aplicar o perdão de penas previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto ao Arguido, e uma vez que há data dos factos o mesmo tinha mais de 30 anos.
III. O Arguido não pode conformar-se com o despacho proferido porque, e desde logo, é o mesmo violador do Princípio da igualdade.
IV. Salvo o devido respeito, o Arguido não se conforma com o despacho de proferido e, em prima facie, por se tratar da violação do princípio da igualdade.
Principiando,
V. Por douto Acórdão proferido no âmbito dos presentes autos, em 15 de maio de 2023, decidiu este Tribunal da Relação confirmar o acórdão da 1.º instância, condenando o Arguido pela prática, em 03/10/2021, de um crime de furto qualificado, furto qualificado na forma tentada e burla informática, na pena única de 3 anos de prisão.
VI. Não obstante, o Despacho n.º 13/23BrgCoordenação, de 24 de Agosto estipula um conjunto de procedimentos a adotar com vista à aplicação da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto.
VII. Pelo douto despacho com referência ...37, decidiu o tribunal de 1.º instância pela não aplicação do perdão ao Arguido, previsto na referida lei.
VIII. Ora, o limiar despacho sempre se revela desigual e desconforme a lei.
IX. É, pois, necessário apurar o circunstancialismo concreto em causa nos presentes autos não se bastando o plano arbitral com a alusão à faixa etária.
X. Significa isto que, o fundamento de inaplicabilidade daquela lei sequer remete para o ilícito praticado. Pelo contrário, consubstancia um impedimento fundamentado apenas no limite etário do Arguido.
XI. Nesta senda, as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstrato e não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
XII. Analisando o caso em concreto, a lei n.º 38-A/2023 não reveste carácter geral e abstrato, pois que, ao definir o âmbito da exclusão do perdão a pessoas que tenham mais de 30 anos de idade à data da prática do facto, limita o âmbito da sua aplicação, não se aplicando a todos os Arguidos que tenham sido condenados pela prática do mesmo crime e se encontrem na mesma situação.
XIII. O Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Tribunal, n.º processo 257/90, estipula que “o princípio de igualdade dos cidadãos perante a lei, consignado no artigo 13 da Constituição da República Portuguesa, não impõe a uniformidade absoluta de regimes jurídicos para todos os cidadãos, consentindo a sua diversidade assente em diferença de situações”5.
XIV. Contudo, o princípio da igualdade, princípio estruturante no nosso Estado de Direito Democrático, possui uma dimensão liberal, que constitui uma ideia de “igual posição de todas as pessoas”, uma dimensão democrática que pressupõe a “proibição de discriminações” e uma dimensão social “que acentua a função social do princípio (…), impondo a eliminação das desigualdades fáticas” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP anotada, 4ª ed. revista, Coimbra Editora, Vol. I, pp. 336 e 337).
XV. Desta forma, estabelece que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da mesma forma e que situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tenham um tratamento diverso.
XVI. Com efeito, proíbe “a adoção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional”6.
XVII. Sob pena de, assim não sucedendo, “estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes. (…) Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada.”7
XVIII. Admite-se, assim, que a proibição de discriminação nos termos do artigo 13, n.º 2 da CRP exige que as diferenciações de tratamento sejam materialmente fundadas e não se baseiem num qualquer motivo constitucionalmente impróprio.
XIX. Neste sentido, a jurisprudência do Tribunal Constitucional afirma que o princípio da igualdade nas leis de amnistia e de perdão genérico “só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis” (Acórdão n.º 42/95), entendendo que as diferenças de tratamento legal traduzem uma diferenciação arbitrária apenas quando não sejam concretamente compreensíveis ou quando não seja possível encontrar uma justificação razoável para a diferenciação, ligada à natureza das coisas (Acórdão n.º 152/95)"8.
XX. Seguindo essa vertente, considera-se que existe violação do princípio da igualdade quando, como é o caso, não existe adequado suporte material para a diferença. Isto posto, basear um tratamento desigual com base na idade dos Arguidos não refere a mínima concretização nem fundamento para a desigualdade apresentada.
XXI. Assim, o despacho que indefere o perdão de pena, viola o preceito legal previsto no art. 13º, n.º 2 CRP.
XXII. Por conseguinte, em face de tudo o que foi alegado, deve revogar-se o douto despacho recorrido do Tribunal a quo, sendo proferido acórdão no que determine a aplicação da referida lei.
Nestes termos e nos melhores de direito,
julgando-se totalmente procedente o presente recurso
a revogando-se o douto despacho recorrido, com as
inerentes consequências legais, se fará sã, inteira,
serena e objetiva JUSTIÇA!»
3. - A Ex.ma Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância apresentou resposta, concluindo:
«1. A delimitação do âmbito de aplicação da lei n,º38-A/2023, de 2 de Agosto está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável, pelo que não padece de inconstitucionalidade a limitação constante do n.º1, do artigo 2º.
2. A lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto aqui em causa reveste carácter geral e abstracto, pois ela aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita, que, assim, são em número indeterminado.
Face ao exposto, entende-se dever ser negado provimento ao recurso e confirmada, pois, na íntegra, o acórdão recorrido.
CONTUDO, V. EX. AS DECIDIRÃO CONFORME FOR DE JUSTIÇA».
4. - Por seu lado, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, neste Tribunal da Relação, emitiu fundamentado parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.
5. - Foi cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta ao sobredito parecer.
6. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
*
II. – FUNDAMENTAÇÃO 1. - Constitui entendimento pacífico que, em matéria de recurso, é pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, nas quais sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), que se delimita o objeto do mesmo e se fixam os limites do horizonte cognitivo do tribunal superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente pelo tribunal ad quem[2].
Assim, no presente recurso a questão a decidir reconduz-se a saber se o arguido deve beneficiar da aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, por força da inconstitucionalidade do estatuído no n.º 1 do artigo 2º daquele diploma legal na parte em que limita a sua aplicação a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
2. - Apreciação do recurso
O recorrente/condenado insurge-se contra o despacho recorrido, mediante o qual entendeu o tribunal a quo que aquele não podia beneficiar do perdão de pena previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, em virtude de, à data dos factos, ter idade que ultrapassa o limite etário estabelecido no dito diploma [30 anos].
Alega, em síntese, o recorrente que a Lei n.º 38-A/2023 não reveste carácter geral e abstrato, pois, ao definir o âmbito da exclusão do perdão a pessoas que tenham mais de 30 anos de idade à data da prática do facto, limita o âmbito da sua aplicação, não se...
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