Acórdão nº 3777/08.1TBMTS.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 06-05-2010

Judgment Date06 May 2010
Case OutcomeNEGADA A REVISTA
Procedure TypeREVISTA
Acordao Number3777/08.1TBMTS.P1.S1
CourtSupremo Tribunal de Justiça


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.

AA intentou em 21.05.2008, no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Matosinhos, contra B... – S... DE E..., L.da, a presente acção declarativa sob a forma de processo sumário.
Pediu a declaração de ilicitude do processo disciplinar instaurado ao seu filho e a condenação da ré:
- na eliminação do registo da sanção disciplinar do processo individual do aluno, adoptando, para esse efeito, todas as diligências necessárias e adequadas;
- no pagamento da quantia de € 1194,43, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos pela autora, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento;
- no pagamento da quantia a liquidar no decurso desta acção ou posteriormente, a título de indemnização pelo custo do Centro de Estudos que a autora terá de suportar até final do ano lectivo;
- no pagamento da quantia de € 5000,00 a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento;
- na restituição à autora da importância de € 467,50, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alegou para o efeito, e em síntese, que a ré, enquanto sociedade comercial que tem por objecto o ensino básico em estabelecimento de ensino particular e que explora o estabelecimento de ensino básico dos 1.º, 2.º e 3.º ciclos designado por Externato S. João Bosco, instaurou contra o filho da autora, BB, ao tempo seu aluno, um processo disciplinar eivado de nulidades várias, o qual culminou na aplicação ao educando da medida sancionatória de suspensão por 10 dias, embora sem base factual bastante para o efeito, sendo, por isso, ilícita a aplicação de tal sanção. Em consequência do sucedido, a autora viu-se obrigada a transferir o seu filho para outra escola, facto que lhe acarretou custos acrescidos e perda de quantias várias que pagou adiantadamente à ré. A ré, regularmente citada, contestou a acção, excepcionando a incompetência em razão da matéria dos tribunais comuns para conhecerem do presente litígio e impugnando parcialmente a versão dos factos alegados pela autora.
No que concerne especificamente à excepção dilatória por si aduzida, a ré argumentou, por um lado, que a relação material controvertida estabelecida com a autora é uma relação de direito público – dado que opõe uma pessoa colectiva de utilidade pública e um particular –, e, por outro, que o exercício da acção disciplinar sobre os alunos do ensino particular ou cooperativo redunda na prática de actos materialmente administrativos, insindicáveis pelos tribunais comuns.
Concluiu pela improcedência da acção.Replicou a autora, contrapondo, a propósito da arguida incompetência material, que o objecto do litígio se refere a uma relação de direito privado e que a aplicação da sanção disciplinar em causa não é um acto administrativo nem traduz o exercício de um poder público.

No despacho saneador, o Ex.mo Juiz, para além de ter alterado o valor da causa para € 36.661,94 e a forma de processo para a de ordinário, julgou procedente a excepção dilatória da incompetência absoluta dos tribunais comuns para conhecer dos pedidos formulados pela autora e absolveu a ré da instância, entendendo achar-se a competência atribuída a outra ordem jurisdicional, a dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Inconformada, a autora apelou para a Relação do Porto, a qual, por acórdão de 29.06.2009 (fls. 353-368) julgou o recurso procedente, revogou a decisão da 1.ª instância e, consequentemente, declarou “o tribunal recorrido competente, em razão da matéria, para conhecer desta acção” e fixou “o valor processual da acção em € 6661,93”.

Do acórdão que assim decidiu recorre agora, de revista, a ré, que finaliza a sua minuta de recurso com a enunciação das seguintes conclusões:
1ª - O presente recurso restringe-se à decisão proferida quanto à competência do tribunal recorrido em razão da matéria e é admissível independentemente do valor da causa e da sucumbência, por se tratar de decisão que viola regras de competência em razão da matéria, nos termos da al. a) do n.º 2 do art. 678º do CPC, e é igualmente admissível por a decisão recorrida estar em contradição com a decisão proferida em 1.ª instância (art. 721º, n.º 3 a contrario, do CPC).
2ª - A competência material dos tribunais judiciais deve ser aferida por critérios de atribuição positiva (pedido formulado na acção, isto é, o quid decidendum) e de competência residual (cabem na competência dos tribunais civis as causas que não estejam legalmente atribuídas a outro tribunal).
3ª - Resulta da petição inicial e do pedido deduzido que a recorrida funda a sua pretensão numa alegada ilicitude do processo disciplinar, instaurado pela Direcção de um estabelecimento de ensino de que a ora alegante é proprietária, ao respectivo filho – em nenhum momento põe em causa a relação contratual estabelecida com a recorrente nem alega a existência de qualquer incumprimento de tal contrato por parte do estabelecimento de ensino.
4ª - O que a recorrida invoca é a ilicitude do processo disciplinar instaurado ao filho, para reclamar a eliminação da sanção disciplinar aplicada do processo individual do aluno, fundando a sua pretensão em normas do Código do Procedimento Administrativo.
5ª - O processo individual do aluno acompanha o mesmo ao longo de todo o seu percurso escolar, e isto, independentemente de tal percurso ser efectuado em escolas públicas ou privadas; logo, a natureza do processo disciplinar instaurado, quer por um estabelecimento de ensino público, quer por um estabelecimento privado, a um aluno, é só uma e a mesma, sendo decorrente do próprio Direito ao Ensino, que tem de ser assegurado pelo Estado e logo fiscalizado pelos seus órgãos, e não de uma relação jurídica regulada pelo direito privado.
6ª - A recorrente é uma sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada que tem por objecto o ensino básico em estabelecimento de ensino particular, mas, de acordo com o disposto no art. 8º, n.º 1, do DL n.º 553/80, de 21-11 (Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo), goza das prerrogativas das pessoas colectivas de utilidade pública.
7ª - O exercício do poder disciplinar que assiste à recorrente sobre os seus alunos é, salvo mais douto entendimento, uma relação de direito público, estabelecida entre uma pessoa colectiva de utilidade pública e um particular.
8ª - A recorrente tem por missão realizar interesses públicos, recebendo, por isso, prerrogativas de autoridade conferidas pelo Estado e pela Lei e, no uso delas, pratica actos materialmente administrativos, nomeadamente, no seu relacionamento com alunos e com encarregados de educação, ficando as respectivas decisões sujeitas às regras de recurso estabelecidas pelo ETAF e na LEPTA, por se tratar de matéria não excluída de jurisdição administrativa.
9ª - De acordo com o art. 50º do Estatuto do Aluno (o qual se aplica quer à escola pública quer ao ensino particular), da decisão final do procedimento disciplinar cabe recurso hierárquico nos termos gerais de direito.
10ª - Uma vez que, no caso das escolas particulares, tal recurso hierárquico não é possível, resta o recurso jurisdicional para o tribunal que, no caso em apreço, sempre deverá ser o Tribunal Administrativo e Fiscal.
11ª - O procedimento disciplinar a alunos das escolas particulares, ainda que em regime de autonomia pedagógica, pode ser sindicado no contencioso administrativo.
12ª - Na determinação da competência dos tribunais administrativos e fiscais assiste-se, actualmente, ao abandono do critério delimitador da natureza pública ou privada do acto fundamentador da pretensão para a determinação da competência daqueles, antes se apelando a um critério geral assente no conceito de relação jurídica administrativa ou de relação pública, em que um dos sujeitos seja uma entidade pública ou então uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido, como sucede em relação à recorrente.
13ª - O direito ao ensino é dos direitos fundamentais reconhecidos ao cidadão na nossa lei fundamental, sendo que cabe ao Estado, em primeira instância, promover tal direito através da sua política de ensino, criando, nomeadamente, uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população e delegando parte dessa competência a estabelecimentos de ensino particular e cooperativo, os quais o Estado reconhece e fiscaliza (art. 75º da CRP).
14ª - É, pois, de interesse público que estamos a tratar no caso em apreço, já que a recorrente tem uma parcela (ainda que subdelegada, mas que é fiscalizada pelo Estado) da prerrogativa pública que ao Estado cabe, em primeira instância: o exercício efectivo do direito à educação dos cidadãos.
15ª - Tal só pode ser sindicável pelos tribunais administrativos e fiscais.
16ª - O procedimento disciplinar do aluno tem, por natureza e por força de lei, uma grande proximidade com o procedimento administrativo (não fazendo sentido a analogia que o acórdão recorrido faz entre a presente situação e o regime dos contratos de trabalho), o que determinou que o legislador, no art. 56º do Estatuto do Aluno, tenha remetido para a aplicação do Código de Procedimento Administrativo.
17ª - A invocada analogia entre o procedimento disciplinar laboral e o procedimento disciplinar do aluno não tem razão de ser, já que não são os tribunais cíveis que julgam a correcção e legalidade de um dado procedimento disciplinar laboral, mas os tribunais de trabalho, ou seja, tribunais de competência especializada, para um ramo de direito específico e que tem um ordenamento específico.
18ª - Não está em causa nos presentes autos a titularidade da competência para o exercício da acção disciplinar relativa aos alunos
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