Acórdão n.º 376/2016

Data de publicação11 Julho 2016
SeçãoParte D - Tribunais e Ministério Público
ÓrgãoTribunal Constitucional

Acórdão n.º 376/2016

Processo n.º 1094/2015

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - Por decisão de 26 de junho de 2015, proferida nos autos de contraordenação n.º INC2015/1, a Autoridade da Concorrência aplicou à empresa Peugeot Portugal Automóveis, SA, uma coima, no valor de (euro)150.000,00, por infração ao disposto nos artigos 67.º, 68.º, n.º 1, alínea h), e 69.º, n.º 3, da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, que aprovou o novo regime jurídico da concorrência.

A arguida recorreu dessa decisão para o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, suscitando a questão da inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 84.º da Lei da Concorrência, na parte em que atribui ao recurso efeito meramente devolutivo, por violação do princípio da presunção de inocência consagrado no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição.

O Tribunal admitiu o recurso e, apreciando a questão de inconstitucionalidade suscitada pela recorrente, decidiu recusar a aplicação conjugada das normas constantes do artigo 84.º, n.os 4 e 5, do referido diploma legal, com fundamento em inconstitucionalidade material, decorrente, não da violação do princípio da presunção de inocência invocado pelo recorrente, mas da violação dos artigos 20.º, n.º 1, 268.º, n.º 4, 32.º, n.º 10, e 2.º, todos da Constituição. Em consequência, decidiu atribuir ao recurso efeito suspensivo, sem prévia prestação de caução, nos termos do artigo 408.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro.

O Ministério Público interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, que foi admitido pelo Tribunal recorrido.

Os autos prosseguiram para alegações, tendo o Ministério Público sustentado, em conclusão, o seguinte:

«1.ª O presente recurso do Ministério Público vem interposto do despacho do 1.º Juízo do Tribunal de Concorrência, Regulação e Supervisão, de 2 de outubro de 2015, proferido no Proc. 273/15.4YUSTR, na parte em que «recusa a aplicação conjugada das normas plasmadas no artigo 84.º, n.º 4 e 5, do Regime Jurídico da Concorrência (Lei n.º 19/2012, de 8 de maio) com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 20.º, n.º 1, 268.º, n.º 4, 32.º, n.º 10 e 2.º, todos da Constituição da República Portuguesa», atribuindo efeito suspensivo, sem determinar a prestação de caução, ao recurso da decisão final sancionatória da Autoridade da Concorrência.

2.ª A atribuição, como regra, de efeito meramente devolutivo ao recurso de decisões sancionatórias proferidas pela Autoridade de Concorrência em processos contraordenacionais vai ao arrepio do regime geral nos domínios contraordenacional e penal, mas encontra paralelismo no regime de recursos das decisões de outras entidades administrativas independentes e, na administração direta do Estado, de recursos das sentenças, em matéria de coimas aplicadas pela Administração Tributária e Aduaneira.

3.ª O anterior Regime Jurídico da Concorrência, constante da Lei 18/2003, de 11 de junho (revogada pela Lei 19/2012, cit.) dispunha, ao invés, no n.º 1 do artigo 50.º: «Das decisões proferidas pela autoridade que determinem a aplicação de coimas ou de outras sanções previstas na lei cabe recurso para o tribunal da concorrência, regulação e supervisão, com efeito suspensivo».

4.ª A Exposição de Motivos da Proposta de Lei 45/XII, que está na base da Lei 19/2012, dimensiona a instituição do novo regime, nos seguintes termos: «Esta reformulação completa do Regime Jurídico da Concorrência é, por conseguinte, oportuna, necessária e adequada por quatro razões: Em primeiro lugar porque faz parte do programa do atual Governo, em segundo lugar, porque visa cumprir medidas constantes do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF), em terceiro lugar, porque responde à evolução entretanto verificada na legislação e jurisprudência da União Europeia em matérias de promoção e defesa da concorrência e, por último, porque reflete a experiência e o balanço da atividade desenvolvida no domínio da defesa e promoção da concorrência, por parte da Autoridade da Concorrência e dos Tribunais de recurso competentes».

5.ª Do Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica, para que remetem os passos transcritos da Exposição de Motivos da Proposta de Lei 45/XII, constava, designadamente, do ponto 7.20: «Propor uma revisão da Lei da Concorrência, tornando-a o mais autónoma possível do Direito Administrativo e do Código do Processo Penal e mais harmonizada com o enquadramento legal da concorrência da UE, em particular»; «Simplificar a lei, separando claramente as regras sobre a aplicação de procedimentos de concorrência das regras de procedimentos penais, no sentido de assegurar a aplicação efetiva da Lei da Concorrência» e «Avaliar o processo de recurso e ajustá-lo onde necessário para aumentar a equidade e a eficiência em termos das regras vigentes e da adequação dos procedimentos».

6.ª À luz dos trabalhos preparatórios publicitados da Lei 19/2012, a operada alteração do regime dos recursos, em desvio ao sistema geral em matéria contraordenacional e penal, vem, pois, genericamente enquadrada no propósito expresso de «aumentar a equidade, a celeridade e a eficiência dos procedimentos de recurso judicial de decisões da Autoridade da Concorrência», com separação clara das regras processuais penais e «harmonizada com o enquadramento legal da concorrência da UE».

7.ª Assim, o artigo 88.º, n.º 1 da Lei 19/2012, com similar redação à do artigo 31.º do Regulamento do (CE) 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, elimina a proibição da reformatio in pejus. E a ausência de efeito suspensivo, agora constante do n.º 4 do artigo 84.º da mesma lei, caracteriza o recurso das decisões da Comissão, incluídas as de aplicação de coimas, podendo todavia o Tribunal atribuí-lo, «se considerar que as circunstâncias o exigem», nos termos do artigo 278.º do TFUE.

8.ª É sobre o novo regime do recurso, tal como passou a constar do n.º 5 do artigo 84.º da Lei 19/2012 (tendo, conexamente, como pano de fundo, o disposto no n.º 4 do mesmo artigo), que incide o juízo de inconstitucionalidade contido na decisão recorrida.

9.ª Tal juízo, acompanhando o Acórdão do STA, de 15 de maio de 2013, Proc. 665/13, afasta como seu fundamento a violação do princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2 da Constituição), invocada pela sociedade arguida.

10.ª O juízo de inconstitucionalidade é aferido, também através de remissão para o citado Acórdão do STA, com referência ao «acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva (conferir artigo 20.º, n.º 1 e artigo 268.º, n.º 4, ambos da Constituição da República Portuguesa), com óbvias repercussões - acrescentamos - nas garantias do processo contraordenacional (conferir artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa) e do Estado de direito democrático (artigo 2.º, da Constituição da República Portuguesa)».

11.ª Interessa, em um primeiro passo, validar o segmento da decisão recorrida acerca da não violação do princípio de presunção de inocência, que fora processualmente invocada pela sociedade arguida - invocação essa, aliás, noticiada já durante a fase pública de ampla discussão da proposta de lei e ulteriormente retomada, em diversos comentários acerca do Novo Regime Jurídico da Concorrência.

12.ª Sabendo-se, embora, que não é fácil determinar o sentido da presunção de inocência do arguido (n.º 2 do artigo 32.º da Constituição), e tendo o princípio como aplicável ao processo contraordenacional, a par dos direitos de audiência e defesa (n.º 10 do mesmo artigo), também enquanto simples irradiação para esse domínio sancionatório de requisitos constitutivos do Estado de direito democrático, não se mostra ele confrontado na questão de constitucionalidade da norma contida no n.º 5 do artigo 84.º da Lei 19/2012, nem nesta pode de algum modo aí ver-se presumido o cometimento da infração.

13.ª Como se observa no citado Acórdão do STA, de 15 de maio de 2013, no caso paralelo da norma contida no artigo 84.º do RGIT - havendo, relativamente a esse, uma diferença de grau no que respeita à possibilidade da prestação de garantia para evitar a executoriedade da decisão de aplicação de coima pela Autoridade da Concorrência -, «a prestação de garantia emerge como um ónus para o recorrente que pretenda obter o efeito suspensivo do recurso, que leva a questão da eventual desconformidade do preceito a transferir-se para um juízo sobre a avaliação da adequação de tal ónus, à luz das exigências do princípio da proporcionalidade, tendo em conta o interesse público que presidiu à adoção de tal solução».

14.ª É, pois, no âmbito do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva (arts. 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 da Constituição), tal como afirmado na decisão recorrida, que a presente questão de constitucionalidade haverá de ser aferida.

15.ª A decisão recorrida, ao recusar a aplicação por inconstitucionalidade das normas contidas no n.os 4 e 5 do artigo 84.º da Lei 19/2012, convoca ainda, cumulativamente, os arts. 2.º e 32.º, n.º 10 da Constituição.

16.ª A convocação dos citados arts. 2.º e 32.º, n.º 10 da Constituição conforma-se, na economia da decisão recorrida, como mero corolário da proposição anteriormente estabelecida, quanto ao direito a recorrer, ao direito de impugnação judicial da decisão administrativa sancionatória.

17.ª Importa apenas acentuar que, nos termos da primeira parte do n.º 1 do artigo 88.º da Lei 19/2012, o Tribunal «conhece com plena jurisdição dos recursos interpostos das decisões em que tenha sido fixada pela Autoridade da Concorrência uma coima ou uma sanção pecuniária compulsória».

18.ª Coloca-se, deste modo, a questão de saber se o novo regime do recurso, tal como passou a constar do n.º 5 do artigo 84.º da Lei 19/2012 (tendo, conexamente, como pano...

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