Acórdão nº 354/23.0T8BRR-C.L1-1 de Tribunal da Relação de Lisboa, 11-07-2024

Data de Julgamento11 Julho 2024
Número Acordão354/23.0T8BRR-C.L1-1
Ano2024
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam as juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:


IRELATÓRIO


António … e mulher Carla … apresentaram-se conjuntamente à insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante.
Indicaram na respectiva relação de bens (Anexo IV) uma única verba: “Veículo automóvel de matrícula xxxx, marca RENAULT, modelo R, cor cinzenta e outras, com a primeira matrícula datada de 2015-01-29, com 1461 de cilindrada (cc)”.
Por sentença proferida em 13/02/2023, já transitada em julgado, foi a insolvência declarada (sendo que o pedido de exoneração do passivo restante foi liminarmente admitido por despacho de 16/05/2023).
Em 18/04/2023, o AI apresentou o relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, no qual se consignou: (…) 6 – Inventário (artº 24º, nº1. al. e) do CIRE) // Bens do Insolvente // Como declarado na PI, considera uma Verba única – veículo matrícula xxxx, marca RENAULT – modelo Captur, matriculado em 29-01-2015; // Com contrato de reserva de propriedade nº …147, com Livrança em branco; // Valor em conta bancária, que se aguarda confirmação do banco.
Ao relatório foi anexada, para além do mais, a relação de credores para efeitos do artigo 154.º do mesmo código, na qual surge identificada como credora (n.º 2): B… - Sociedade Financeira de Crédito, S.A. (como sendo detentora de um crédito comum no valor de 23.187,26€, com relação ao qual foram efectuadas observações, designadamente: “Valor imputado ao Consumidor acordado com os insolventes – Contrato de Crédito nº 1113547”).
Igualmente foi junta certidão da 2.ª Conservatória do Registo Predial e Automóvel de Leiria, da qual resulta com relação ao veículo de matrícula xxxx: a) registo de propriedade a favor de António… n.º 03274, em 26/09/2022; b) anterior proprietária: Tarefa Secular, Lda., registo de propriedade n.º 08581, de 21/09/2022; c) registo de propriedade a favor de Banco …, SA n.º 02621, de 26/09/2022; d) reserva n.º ordem 00000, em 26/09/2022, a favor de Banco …, SA.
Em 24/04/2023 vieram os insolventes requerer:
1.ºO Exmo. Sr. Administrador de Insolvência, solicitou informações sobre o paradeiro da viatura a que fez referência no Relatório, elaborado nos termos do artigo 155.º do CIRE e indicou ainda que iria proceder à venda do veículo, cfr doc. 1. // 2.º Em comunicação, os ora insolventes, através dos seus Mandatários, informaram o Exmo. Sr. Administrador de Insolvência sobre a situação da viatura, tendo ficado com fiel depositário o ora insolvente António …. // 3.º A viatura, marca Renault, modelo Captur 1.5 DCI Sport, apresenta 5 lugares e tem a matrícula xxxx. // Com efeito, a viatura com a matrícula xxxx, têm uma reserva de propriedade a favor do Banco … S.A, conforme já resulta do Relatório elaborado pela Exmo. Sr. Administrador de Insolvência, nos termos do artigo 155.º do CIRE. // Vejamos o teor do artigo 409.º, n.º 1 do Código Civil: (…)” // Ora, em obediência ao desiderato do processo de insolvência, decorre da lei que, integra a massa insolvente “todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.”, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos (cf. artigo 46.º, 36.º, n.º 1, alínea g), e 149.º, todos do CIRE). // Assim, os bens que integram a massa insolvente são, como não poderia deixar de ser, os bens do Devedor. // Por inerência, o veículo automóvel que têm reserva de propriedade, não sendo bens dos Devedores, não poderão integrar a massa insolvente, nem ser objeto de apreensão para a mesma cfr apenso 354/23.0T8BRR-B. // Ora, as competências do Administrador de Insolvência cingem-se à administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente, nos termos do artigo 81.º, n.º 1, do CIRE: (…) // 10º Assim, o Exma. Sr. Administrador de Insolvência está a extravasar as competências que lhe são atribuídas pela lei, quando requer que lhe sejam prestadas informações quanto ao paradeiro do veículo que não integra a massa insolvente e ainda enviando um e-mail em como irá prosseguir com a venda do mesmo cfr. Doc. 1 // (…) // Nestes termos, requer-se a V. Exa. se digne notificar o Exmo. Sr. Administrador de Insolvência, das informações prestadas pelos ora Insolventes.”
Notificado deste requerimento, em 02/11/2023 veio o AI pronunciar-se nos seguintes termos:
“(…) a reclamação de créditos em causa – B… – Soc. Financeira de Crédito, S.A. é bem explicita, crédito para garantia de contrato de mútuo, com o valor de empréstimo de 12.830,00€ (…) como determinado, e corretamente, com a classificação do próprio crédito – Comum; // 2 – O AI, como sua obrigação, apresentou com o relatório a lista provisória de acordo com o artº 154º do CIRE, com as devidas classificações e mais tarde - 03-05-2023, por não ter havido qualquer reparo/reclamação, procedeu ao envio a todos os credores e insolventes, da lista final – artº 129º, nº 1 do mesmo código, sem qualquer impugnação, e onde salienta – emerge – o referido contrato de mútuo – nº 1113547. O próprio relatório já indiciava que “a insolvência deverá seguir para liquidação, …...., sobre o veículo, ou outro”; // 3 – O bem foi apreendido já com algum atraso, dado que os Exmos. Srs. Insolventes, por várias vezes, através das suas mandatárias, foram dizendo estarem em negociações com o credor, a ponto de surgir despacho do(a) Meritíssimo(a) Dr(a). Juiz, para proceder à apreensão, encontrando-se o mesmo com “registo provisório”; // Do exposto o AI, entende: (…) No caso em análise, o crédito não beneficia de qualquer garantia especial das obrigações – privilégio creditório, ou direito de retenção, como previsto nos artºs. 623º a 761º do Código Civil. // A reserva de propriedade, (artª 409º do C. Civil), não constitui um direito real de garantia, apenas de gozo. Tal reserva não tem qualquer preferência de pagamento pelo valor de certa coisa; // 5 – O nº 3 do artº 6º do Dec. Lei 359/91, de 21/9, que regula o regime jurídico do crédito ao consumo, prevê “que o acordo de reserva de propriedade” – não “legaliza” a sua estipulação a favor da entidade financeira, quando ocupa a posição de terceira relativamente ao contrato de alienação; // 6 – Quanto à referencia do artº 119º do Registo Predial, não foi levada em consideração pois o subscritor assim o entendeu, dado que o bem não goza de reserva de propriedade do mesmo, mas sim de gozo. (…)//Face ao exposto, o subscritor, para além da clarificação/resposta, deu conhecimento aos insolventes através de “e-mail” datado de 18-10-2023, da colocação em venda do bem apreendido, pelo que requer ao(à) Meritíssimo(a) Dr(a). Juiz despacho de acordo com o exposto e assim dar prosseguimento ao processo. (…)
Em 06/11/2023, foi proferido o seguinte despacho:
(…) A fim de se esclarecer a factualidade em litígio, notifique o Banco ..., S.A. e sociedade B… – Soc. Financeira de Crédito, S.A., com cópia dos requerimentos dos Insolventes e do Administrador de Insolvência, para, no prazo de 10 dias, dizerem ou requererem o que tiverem por conveniente.
Em 17/11/2023, veio a credora B… – Sociedade Financeira de Crédito, SA requerer: a) que se declare que o veículo da marca “Renault”, modelo “Captur Diesel” com a matrícula xxxx, não constitui propriedade dos insolventes e, como tal, não integra o património da massa insolvente; b) que se declare ilegal a apreensão do veículo por recair sobre um bem que não integra a massa insolvente e, consequentemente, ordenar o cancelamento do registo de apreensão; c) que se ordene que o Administrador de Insolvência venha aos autos declarar se pretende a execução do cumprimento do contrato de crédito e, em caso negativo, ordenar a sua entrega à Credora;”
Para tanto alegou: 1º. A Credora é titular de um crédito sobre os insolventes (…) //. O supramencionado crédito resulta da celebração de um contrato de crédito tendo em vista a aquisição da viatura com marca “Renault”, modelo “Captur Diesel” com a matrícula xxxx. // 3º. Para garantia do cumprimento do contrato de crédito, foi celebrado a favor do Banco reserva de propriedade do veículo adquirido com o crédito contraído. // 4º. Acontece que, esta viatura sobre a qual recaí a reserva de propriedade a favor do Banco é a mesma que pretende, agora, o Administrador de Insolvência proceder à venda a favor da massa insolvente. // 5º. Ora, salvo o devido respeito por entendimento diverso, não pode o Administrador de Insolvência praticar esse ato por sua própria iniciativa. (…) // decorrente da aquisição do veículo, a titularidade da propriedade não se transferiu, de forma imediata, para os insolventes. (…) não existe o direito de propriedade sobre o veículo in casu. // 9º. Decorrente da reserva de propriedade, a transferência do direito de propriedade só ocorrerá com o cumprimento do contrato de crédito, uma vez que a verificar-se haverá lugar ao cancelamento da reserva de propriedade. // 10º. Porém, conforme resulta evidente dos próprios autos, nunca houve lugar ao cumprimento integral do contrato de crédito a favor da Credora. // (…) 12º. Relembrando o preceito do CIRE – art. 46.º - resulta claro que o veículo da marca “Renault”, modelo “Captur Diesel” com a matrícula xxxx, não integra a massa insolvente. // (…) 15º. No direito, não se pode confundir a transmissão da propriedade com a tradição imediata da coisa. // (…) (…) Quanto a esta matéria, a acompanhar o nosso entendimento, pronunciou-se o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão datado de 13-03-2006, relatado por Abílio Costa, em que nos diz que: “ (…) é inequívoco que o veículo automóvel não integra a massa insolvente. Na verdade, tendo a alienação do mesmo sido efectuada com cláusula de reserva de propriedade a favor da requerente até ao pagamento integral do contrato de mútuo por parte da requerida, a transferência da propriedade, ao contrário do que acontece
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