Acórdão nº 3391/08.1TVLSB.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 13-10-2022

Data de Julgamento13 Outubro 2022
Case OutcomeCONCEDIDA
Classe processualREVISTA
Número Acordão3391/08.1TVLSB.L1.S1
ÓrgãoSupremo Tribunal de Justiça

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


Relatório

AA demandou BB e marido CC, DD, EE e mulher FF, pedindo que seja reconhecido ao autor o direito a haver para si o prédio alienado - 2o andar, lado esquerdo, do prédio sito na Rua ..., freguesia ..., concelho e cidade ..., descrito sob o n° ...03 da ... Conservatória do Registo Predial ... e inscrito na respetiva matriz sob o art. ...75, atual 238 da referida freguesia ..., por virtude do seu direito real de preferência e, bem assim, ser declarada a transação efetuada a favor do autor, substituindo-se este aos l°s réus na compra e venda formalizada pela escritura pública e que teve por objeto o prédio referido e a condenação dos réus a entregar ao autor o valor das rendas vencidas e pagas no prédio, desde a data da aquisição até ao trânsito em julgado da sentença.

Alegou, para tanto, que tomou de arrendamento o 2o andar do prédio descrito supra, em 1976.

Em 2008, verificou que, em 1984, o prédio havia sido vendido pelos réus, 2a e 3o varão, à 1ª ré mulher, livre de quaisquer ónus e encargos, sem que lhe tivesse sido comunicada a intenção de se proceder à compra e venda em questão.

É o único arrendatário do prédio, mantendo essa qualidade desde o tempo da alienação.

Os réus BB e marido CC, aceitando a alienação do imóvel, em 1984, excecionaram a prescrição e caducidade do direito do autor, impugnaram o alegado e deduziram reconvenção, concluindo pela condenação do autor como litigante de má-fé e, na eventualidade da procedência da ação, a condenação do autor no pagamento de € 464.595, relativas a diversas obras de conservação e beneficiação do imóvel e com benfeitorias nele executadas."'

No respeitante à prescrição (obrigação de preferência) sustentaram o decurso do prazo de mais de 20 anos, desde a celebração da escritura até à data da citação e no que concerne à caducidade alegaram que os réus, há mais de 20 anos que são detentores da posse - aquisição originária do direito de propriedade por usucapião, sendo que, em 1983, o autor assinou um documento no qual declarou não estar interessado na compra.

Invocaram também a preterição de formalidades legais - no prédio existem outros andares arrendados pelo que, ex vi art. 1465 CPC -"Se já tiver sido efetuada a alienação a que respeita o direito de preferência e esse direito couber simultaneamente a várias pessoas, o processo para determinação do preferente segue os termos do art. 1460, com as alterações seguintes... - o que acarreta a improcedência da causa - fls. 51 e sgs.

Replicou o autor, concluindo pela improcedência das exceções e reconvenção e pela absolvição do pedido como litigante de má-fé - fls. 143 e sgs.

Na tréplica deduzida pelos réus, estes responderam às exceções opostas à reconvenção deduzidas na réplica - fls. 182 e sgs.

Face ao falecimento da ré DD, em 2005, foram habilitados como sucessores, sua irmã - GG - os sucessores da irmã HH - II e JJ - e os sucessores da irmã KK - LL e MM (apenso A e decisão de fls. 299 a 300).

Face ao falecimento do réu EE, em 16/2/2004, foram habilitados como sucessores - FF e NN (apenso B).

Na pendência da ação faleceu o réu CC, tendo sido habilitados como seus sucessores BB (cônjuge sobrevivo) e os filhos -OO, PP, QQ, RR, SS, TT, UU, VV e WW (Apenso C).

Instruídos os autos veio a ser proferida sentença que, julgando a ação improcedente, bem como o pedido de condenação do autor como litigante de má-fé, absolveu os réus e o autor dos pedidos.

No que tange à reconvenção, a sua apreciação ficou prejudicada, porquanto no que à usucapião concerne os reconvintes não pediram o reconhecimento da aquisição originária da propriedade e o pedido formulado apenas se destinava, caso a ação fosse julgada procedente.

A Relação na apelação julgou o recurso procedente e revogou a sentença julgando a ação procedente, reconhecendo-se ao autor o direito de haver para si o prédio alienado e identificado nas alíneas C), E), F) e G) (factos provados), por virtude do exercício do seu direito de preferência, declarando-se a transação efetuada a seu favor (autor), substituindo-se este aos l°s réus na compra e venda formalizada na escritura pública referida em C) (facto provado) e que teve por objeto o prédio supra identificado e condenam-se os l°s réus a entregar ao autor o valor das rendas vencidas e pagas no prédio, desde a data da aquisição até ao trânsito em julgado da sentença.

Julgou a reconvenção procedente e condenou o autor a pagar o valor das obras realizadas no prédio identificado relegando-se o seu apuramento em incidente de liquidação.


Interposto pelos réus recurso de revista concluem estes:

(i) Consta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que: “1. O autor é o único arrendatário do prédio que, desde o tempo da alienação, mantém essa qualidade;

(ii) Tal formulação resulta seguramente de um evidente erro de escrita;

(iii) O que deveria constar da matéria de facto provada é que: “o autor é o único arrendatário no prédio que, desde o tempo da alienação, mantém essa qualidade”;

(iv) Desde logo, porque tal resulta de toda a documentação junta aos autos e que prova que o Autor é arrendatário do segundo andar esquerdo sito no prédio melhor identificados em c) e e) dos factos assentes;

(v) Pelo que, nos termos do artigo 249 do CC e do artigo 614.º do CPC, deverá passar a constar do ponto nº 1, em conformidade com o supra exposto:

“1. o autor é o único arrendatário no prédio que, desde o tempo da alienação, mantém essa qualidade”;

(vi) Caso assim não se entenda então uma contradição manifesta e insanável na matéria assente;

(vii) Consta da matéria assente que:

“A - A 1 de Agosto de 1976, os herdeiros de XX, representados pelo cabeça de casal YY, na qualidade de senhorios e AA, como inquilino, subscreveram o instrumento junto por cópia a fls. 12-13, onde consta que entre eles foi ajustado o arrendamento do segundo andar esquerdo sito na Rua ... pela renda mensal de Esc. 1.512$00.

B - A 10 de Março de 1983, o autor subscreveu o instrumento junto por cópia a fls. 97, denominado “DECLARAÇÃO”, com o seguinte teor: “AA, inquilino do segundo andar lado esquerdo do prédio sito na Rua ..., ... (antiga R. da ...) declara para os devidos e legais efeitos não estar interessado na compra do referido imóvel.”

D - A 10 de Julho de 1985, foi lavrada a folhas 6v.-8 do Livro n° 225-E do 16° Cartório Notarial ..., a escritura pública de “ARRENDAMENTOS” certificada a fls. 81-86, onde consta que ZZ, em representação de CC e BB, deram de arrendamento:

a) AAA, a sala A da loja com entrada pelo n° ..., pela renda mensal de Esc. 50.000$00, sendo destinado a salão de chá e venda de utilidades domésticas;

b) BBB, as salas B e C da loja com entrada pelo n° ..., pela renda mensal de Esc. 20.000$00, destinado venda de artigos de decoração e prendas;

c) CCC, a sala D da loja com entrada pelo n° ..., pela renda mensal de Esc. 20.000$00, destinada a salão de chá e venda de artigos de presentes e decorações;

d) CCC, o Anexo, composto de sala ampla e cozinha, pela renda mensal de Esc. 50.000$00;

e) DDD, o 1.º andar do anexo pela renda mensal de Esc. 50.000$00.

(viii) Consta, igualmente, da matéria assente que: “1. O autor é o único arrendatário do prédio que, desde o tempo da alienação, mantém essa qualidade”

(ix) As decisões são manifestamente contraditórias;

(x) Não é possível considerar como provado que o Autor é o único arrendatário do prédio desde 1984 (o que, reitera-se, nunca foi alegado nem provado) e que esse mesmo Autor é arrendatário do segundo andar esquerdo no mesmo prédio desde 1984, conjuntamente com diversos ouros arrendatários;

(xi) Pelo que, caso não se entenda que estamos perante um manifesto lapso de escrita deverá ser ordenada a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa para resolução de tal contradição, nos termos e com os fundamentos previstos no artigo 682.º, n.º 3, do CPC

Sem conceder

(xii) Apesar de proceder à aplicação da Lei 63/77, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, o referido tribunal omite in totum uma análise jurídica da mesma, especialmente em face dos factos apurados - a preferência de um arrendatário habitacional de um andar relativamente à alienação da totalidade do prédio;

(xiii) Isto porque, de forma evidente, o local arrendado é o segundo andar esquerdo do prédio, não é o prédio na sua totalidade. O objeto do contrato de arrendamento (segundo andar esquerdo) e o objeto do exercício do direito de preferência que o Autor abusivamente pretende acionar (o prédio melhor identificado nas alíneas C) e E) dos factos assentes não têm a mesma identidade.

(xiv) Conforme se disse, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa omite qualquer análise ao escopo e fundamento da atribuição ao arrendatário habitacional na Lei 63/77, legislação essa que foi revogada há cerca de trinta anos;

(xv) Seguramente que a consagração de tal direito não é, nunca foi e nunca será, uma porta aberta à especulação imobiliária e à admissibilidade do enriquecimento abjecto que o Autor pretende obter nos presentes autos – a totalidade de um prédio urbano sito no centro de ... e cerca de 40 anos de rendas recebidas pelos Réus pelos arrendamentos (habitacionais, comerciais ou outros – cf. cláusula D) dos factos assentes) por si legalmente celebrados no prédio.

(xvi) É assim necessário interpretar a legislação aprovada na década de 70 do século passado e revogada há mais de trinta anos;

(xvii) Consta do preâmbulo da vetusta leu que o propósito da revolucionária legislação foi o de fomentar: “uma política de acesso à habitação própria”.;

(xviii) Ora o caso que retratado nos autos em nada se reconduz à ratio legis supra transcrita na medida em que a decisão jurisprudencial acolhe um desbragado assalto à propriedade dos réus (propriedade imobiliária stricto sensu, mas também patrimonial – o Autor arroga-se a receber anos de renda de todos os arrendamentos existentes no prédio...

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