ACÓRDÃO Nº 324/2023
Processo n.º 244/2023
2.ª Secção
Relator: Conselheiro José Eduardo Figueiredo Dias
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. veio apresentar reclamação, nos termos do n.º 4 do artigo 76.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, adiante designada por LTC), da decisão proferida naquele tribunal que não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
No âmbito do processo a quo, o autor, ora reclamado, B. interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação do Porto que, em 10 de fevereiro de 2022, confirmou a decisão proferida em primeira instância que, por sua vez, havia determinado a incompetência internacional dos tribunais portugueses para julgar a presente ação, absolvendo a ré, ora reclamante, da instância. Por acórdão datado de 27 de setembro de 2022, a revista foi julgada procedente, com fundamento na improcedência da exceção dilatória da incompetência internacional, tendo sido revogado o acórdão recorrido (cf. fls. 332-345).
Deste acórdão, veio a aqui reclamante deduzir requerimento de arguição de nulidade, com fundamento em excesso e omissão de pronúncia, o qual foi indeferido por acórdão datado de 8 de novembro de 2022 (cf. fls. 397-400).
2. Inconformada com este posicionamento, a ora reclamante apresentou recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, nos seguintes termos:
«(…)
I - Objeto e enquadramento do recurso
1. Nestes autos o autor, jogador de futebol, imputa responsabilidade civil extracontratual à ré, sociedade norte-americana, nos termos do art.º 483.º do CC, por alegada inclusão não autorizada da sua imagem nos videojogos FIFA.
2. Os acórdãos do STJ de 27.09 e 08.11.2022 determinaram que os tribunais portugueses têm competência internacional para o presente litígio, exclusivamente através da uma interpretação normativa contra legem e em manifesta violação de disposições e princípios constitucionalmente consagrados: i) princípio do estado de direito (e seus subprincípios da legalidade, da proteção da confiança dos cidadãos e da certeza e da segurança jurídica); (ii) princípio do processo equitativo e, bem assim, dos princípios da separação dos poderes e do dever de obediência à lei.
3. Com efeito, como se verá, as conclusões jurídicas contidas naqueles acórdãos em matéria de competência internacional:
(i) assentam exclusivamente em factos que não estão articulados na petição iniciai peio autor e que não integram a causa de pedir, mas que, ainda assim, foram utilizados pelo STJ, em última instância, por meio de sucessivas presunções judiciais manifestamente ilegais; e
(ii) com base nos factos dados como assentes através dessas presunções ilegais, aplicam também ilegalmente, um critério relativo ao centro de interesses, critério abstrato. de conteúdo não definido e inexistente na lei aplicável ao caso, não se verificando qualquer lacuna própria ou impróprio que justificasse o seu emprego.
operando-se por isso uma interpretação normativa manifestamente inconstitucional dos art.º 9.º e 351.º do CC. 62.º alínea b) do CPC e art.º 38.º, n.º 1 da LOSJ.
4. Os tribunais de primeira e segunda instância proferiram decisão decretando a incompetência internacional dos tribunais portugueses, a qual foi agora revogada pelo STJ.
5. Este litígio integra-se num conjunto de 25 (vinte e cinco) ações intentadas contra a ora ré por jogadores e ex-jogadores de futebol, portugueses e estrangeiros, por intermédio do mesmo mandatário judicial, nas quais a causa de pedir, os factos elencados na PI e o quadro legal invocado são essencialmente os mesmos a apreciar nestes autos.
6. Daí que, tal como nos presentes autos, em todas essas 25 ações se tenha vindo a discutir ao longo dos últimos 3 (três) anos a questão da incompetência internacional dos tribunais portugueses.
7. Tendo a jurisprudência vindo a revelar-se consensual ao concluir que efetivamente os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes.
8. Mais concretamente, no sentido da incompetência dos tribunais portugueses foram já proferidos 10 (dez) acórdãos por todos os 5 (cinco) Tribunais da Relação portugueses e todos por unanimidade. Foram também proferidas 16 (dezasseis) sentenças pelos tribunais de primeira instância decretando a incompetência dos tribunais portugueses no âmbito das referidas 25 ações - Documento n.º 1.
9. Até à prolação do primeiro acórdão do STJ de 24.05.2022, no Proc. n.º 3853/20.2T8BRG.G1.SI, cuja fundamentação se reproduziu igualmente nestes autos (e nos demais processos referidos no acórdão de 27.09.2022), as decisões dos tribunais superiores foram todas no sentido de declarar a incompetência internacional.
10. A ilegalidade (e, mais concretamente, a inconstitucionalidade) da fundamentação perfilhada nos acórdãos em crise é de tal forma clara que os tribunais de primeira e segunda instância continuam a sustentar que os tribunais portugueses são incompetentes, mesmo após conhecerem e ter sido discutido nesses autos a fundamentação dos acórdãos do STJ, cfr. a sentença de 13.10.2022 no Proc. n.º 3729/21.6T8BRG e o voto de vencido do acórdão do TRG de 13.10.2022, no Proc. n.º 3803/20.6T8BRG.G1 - Documento n.º 2 e 3.
11. Daí que a pertinência do presente recurso extravase o âmbito destes autos porque a mesmíssima questão - interpretação dos art.º 9.º e 351.º do CC, do art.º 62.º, alínea b) do CPC e do art.º 38.º, n.º 1 da LOSJ, em sentido inconstitucional - se mostra colocada, nos exatos mesmos moldes, em todas as demais ações judiciais.
12. A surpreendente interpretação perfilhada por este coletivo do STJ afastou-se completamente do quadro jurisprudencial nacional há muito consolidado de apreciação da competência no âmbito da qual, até aqui, se determinava que: "...para se determinar a competência do tribunal haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados.".
13. Afastando-se igualmente do entendimento há muito assente no STJ de que "... é pelo pedido do autor que se afere da competência material do Tribunal, mesmo que a ação tenha sido deduzida incorretamente, tanto do ponto de vista adjetivo como do direito substantivo, isto é, o autor é soberano nesta sede, pois o Tribunal tem de atender ao pedido tal como ele é apresentado. Trata-se de mais uma manifestação do princípio da autorresponsabilidade das partes segundo o qual elas litigam por sua conta e risco. Por isso, se a ação for incorretamente intentada, o seu eventual insucesso é questão que está para além da problemática da competência material do Tribunal, não lhe diz respeito.".
14. Com efeito, os factos tidos em consideração nos acórdãos em crise como elementos de conexão a Portugal não foram alegados pelo autor na petição inicial: tais factos foram acrescentados à fundamentação dos acórdãos por meio de presunções judiciais ilegais e inconstitucionais, presunções essas estruturadas de forma a poder concluir-se pela competência dos tribunais portugueses.
15. A fundamentação de facto e de direito da decisão de competência internacional está suportada exclusivamente na utilização de factos presumidos e no critério de centro de interesses, sem os quais o sentido decisório seria diametralmente oposto.
16. Não obstante a óbvia e abundante utilização de presunções, o STJ não reconhece ter utilizado presunções judiciais, assim procurando afasta a prática de inconstitucionalidade e ilegalidade na interpretação e aplicação da lei.
17. Sucede que, como se identifica de imediato, as decisões revidendas são bastante explícitas no recurso ao que legalmente se define como presunção judicial – estabelecimento de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido:
A) Acórdão de 27.09.2022:
- "Muito embora o centro de interesses corresponda, por regra, ao lugar da residência habitual, a sua determinação casuística pode resultar de outros indícios, como, por exemplo, o exercício de uma atividade profissional, em termos de estabelecimento de um nexo particularmente estreito com o Estado Membro." (pág. 21), o que revela que o acórdão procedeu a uma indagação instrutória para encontrar o centro de interesses, designadamente o uso de presunções judiciais;
- "...pode afirmar-se que é também em Portugal que se consubstancia o dano, pois é aqui que o Autor tem o seu "centro de interesses", na acepção definida." (pág. 22), sendo que na petição inicial o autor nunca alegou ter em Portugal o seu centro de interesses ou aduziu factos que permitissem preencher esse conceito (cujo conteúdo é, na verdade, obscuro);
- "...Nesta medida, considerando que os clubes onde jogou maioritariamente em Portugal, as internacionalizações ao serviço da selecção portuguesa, o seu centro de interesses da repercussão do seu nome e imagem enquanto futebolista profissional situa-se em Portugal, onde sofreu as desvantagens da lesão aos direitos de personalidade." (pág. 23), excerto que mostra a utilização de factos que não integram a causa de pedir (o...