Acórdão nº 3072/ 20.8T8SNT.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 17-12-2020
Data de Julgamento | 17 Dezembro 2020 |
Case Outcome | NEGAR A REVISTA |
Classe processual | REVISTA |
Número Acordão | 3072/ 20.8T8SNT.L1.S1 |
Órgão | Supremo Tribunal de Justiça |
Processo n.º 3072/ 20.8T8SNT.L1.S1
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I - Relatório
1. INSTITUTO LUSO-ILÍRIO PARA O DESENVOLVIMENTO HUMANO requereu contra o MUNICÍPIO DE MAFRA a ratificação judicial do Embargo Extrajudicial de Obra Nova realizado directamente pelo Requerente, na manhã do dia 12.02.2020, tendo por objecto a obra levada a cabo pelo Requerido e consubstanciada na construção de uma estrada que, a realizar-se, desintegraria irremediavelmente os espaços contratualmente cedidos pelo município requerido ao ora requerente, no âmbito de um contrato de comodato celebrado entre as partes em 29.03.2011 (nos termos do qual o município ora requerido cedeu ao ora requerente, a título gratuito, por um período de trinta anos automaticamente renovável, o palácio dos Marqueses de Ponte de Lima e a sua zona imediatamente envolvente, sito na Rua do Castelo, Vila Velha de Mafra).
Alegou - para tanto - que a aludida obra já iniciada pelo Município requerido invade e destrói parcelas da área comodatada à requerente, violando assim os direitos de gozo conferidos à requerente pelo aludido contrato de comodato, visto incidir sobre espaços contratualmente comodatados à requerente e até sobre construções já edificadas por este.
O Município requerido deduziu Oposição, invocando, entre outras, a excepção de incompetência material dos Tribunais Judiciais, uma vez que a obra embargada se reporta a uma obra pública, em particular, a construção de uma Estrada municipal que liga a Rua do Castelo e a Rua do Malvar, ambas no concelho de Mafra, pertencendo assim a competência para dirimir o presente litígio aos Tribunais Administrativos e Fiscais, nos termos e para os efeitos do exposto no art. 4.° n.° 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Notificado para se pronunciar quanto à aludida excepção dilatória de incompetência material dos Tribunais Judiciais, veio o Requerente pugnar pelo seu indeferimento uma vez que, na sua opinião, o Embargo de Obra Nova em causa nos autos tem como objectivo impedir a prossecução de uma obra da Câmara Municipal de Mafra, cuja execução viola, irremediavelmente, o direito de gozo adquirido pelo Requerente com a celebração do mencionado Contrato de Comodato junto aos autos.
Findos os articulados, o Tribunal proferiu Decisão (datada de 27.03.2020), com o seguinte teor decisório:
«Pelo que, nada mais resta a este Tribunal senão deferir a excepção de incompetência material dos Tribunais Judiciais absolvendo como tal o Requerido da presente instância, tudo nos termos e para os efeitos do exposto no art. 96.g al. a), 97° n.º 1, 99.g todos do Código de Processo Civil».
2. Inconformado com o assim decidido, o Requerente interpôs recurso da referida Decisão — que foi recebido como de Apelação, com subida imediata e nos próprios autos e com efeito suspensivo, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, decidido o seguinte:
«Acordam os juízes desta Relação em confirmar a Decisão Sumária do relator que concedeu provimento à Apelação, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento dos autos, no Tribunal "a quo", indeferindo assim a Reclamação contra ela deduzida pelo Município de Mafra ora Apelado.»
3. Inconformado com a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, veio o Município de Mafra interpor recurso de revista, no qual formulou as seguintes conclusões:
«Da nulidade do acórdão recorrido:
A. Vem o presente recurso interposto do douto acórdão da conferência do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa que, confirmando a decisão sumária do relator, concedeu provimento ao recurso de apelação apresentado pelo aqui Recorrido INSTITUTO LUSO-ILÍRIO PARA O DESENVOLVIMENTO HUMANO da douta sentença de fls. (...), dos autos, datada de 27/03/2020 e proferida pela primeira instância.
B. Por via da sentença então recorrida o tribunal de primeira instância julgou-se incompetente em razão da matéria para conhecer do objeto do procedimento cautelar de embargo de obra nova intentado pelo Recorrido tendo, por conseguinte, absolvido o aqui Recorrente MUNICÍPIO DE MAFRA da instância cautelar.
C. Inconformado com o ali decidido, o Recorrido dela interpôs recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, que, por decisão sumária, revogou a sentença e determinou o prosseguimento dos autos, sendo o acórdão daquele Venerando Tribunal que agora se coloca em crise.
D. O Venerando Tribunal da Relação, ao contrário da primeira instância, entendeu que a relação jurídica carreada para os autos pelo Recorrido é de cariz privado, consistente na ofensa do direito de gozo emergente para o Recorrido dum contrato de comodato celebrado com o Recorrente e regido por normas de direito privado – Cfr. Acórdão recorrido.
E. Por conseguinte, entendeu que compete aos tribunais da jurisdição comum – e não aos tribunais administrativos – conhecer da providência cautelar de embargo de obra nova apresentada pelo Recorrido contra o Recorrente.
F. O Recorrente leva a cabo a construção de uma Estrada Municipal que liga a Rua do Castelo e a Rua do Malvar, ambas no concelho de Mafra, no prédio confinante com aquele onde se encontra o dito Palácio dos Marqueses de Ponte de Lima.
G. Isto porque, a Rua do Malvar não apresenta quaisquer condições de segurança para os peões e para os veículos que nela circulam, dado que em alguns pontos da dita rua, designadamente junto ao Palácio, não é possível a circulação de dois veículos em simultâneo e não existem passeios pedonais.
H. Sendo esta a obra que o Recorrido pretende ver embargada por via da providência cautelar que apresentou.
I. Atendendo ao alegado em sede de requerimento inicial e ao peticionado, verifica-se que a verdadeira pretensão do Recorrido é a paragem da construção da estrada municipal levada a cabo pelo Recorrente.
J. O único pedido formulado pelo Recorrido resume-se ao embargo da construção da dita estrada, não tendo sido feito qualquer outro pedido para além do embargo da obra pública.
K. Nomeadamente, o Recorrido não pediu a restituição provisória da posse, tendo nas suas conclusões do recurso que dirigiu ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa afirmado: “(...) que não é sobre a restituição provisória da posse que nos debruçamos, mas sim sobre a necessidade de parar uma obra (...)” – Cfr. conclusão I) das alegações de recurso do Recorrido dirigidas ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
L. Assim, o Recorrido não faz depender a providência de qualquer outra ação, em particular a restituição provisória da posse que, na verdade, nunca peticionou ao tribunal e que, segundo o próprio, não está em discussão nos autos.
M. Com o pedido de inversão do contencioso, entendeu o Recorrido que a sua pretensão ficava plenamente satisfeita, ou seja, que se bastava com a paragem da obra.
N. Não resulta nem da causa de pedir, nem dos pedidos formulados que o que está em discussão nos autos é a violação do direito pessoal de gozo do Recorrido, com o consequente pedido de restituição da posse.
O. O Venerando Tribunal da Relação ao tirar por conclusão que o que está em discussão nos autos é a violação do direito pessoal de gozo do Recorrido, com o consequente pedido de restituição da posse a formular em ação principal, está a alterar a causa de pedir e os pedidos formulados pelo Recorrido, o que implica a convolação para uma relação jurídica diversa da controvertida.
P. Deste modo, o Venerando Tribunal da Relação comete uma nulidade, o que convoca a nulidade do acórdão recorrido (cfr. artigo 615.º, n.º 1, alínea d) e e), do C.P.C.), que aqui vai expressamente invocada para todos os efeitos e com as legais consequências.
Q. O acórdão recorrido padece, igualmente, de nulidade, uma vez que alteração da causa de pedir e dos pedidos implica a convolação para uma relação jurídica diversa da controvertida. (cfr. artigo 265.º, n.º 6, do C.P.C.), nulidade que que aqui vai expressamente invocada para todos os efeitos e com as legais consequências.
R. Além disso, o acórdão recorrido viola os princípios do dispositivo (cfr. artigo 5.º, n.º 1 do C.P.C.), do contraditório e da igualdade das partes (crf. Artigos 3.º e 4.º do C.P.C.) da estabilidade da instância (cfr. artigo 260.º do C.P.C.), sendo, por via disso, ilegal.
Sem prescindir,
Do erro de julgamento:
S. A relação jurídica em discussão nos autos e tal como configurada e carreada pelo Recorrido não tem natureza privada, mas sim administrativa.
T. Com o devido respeito, faz-se confusão entre a relação jurídica emergente do contrato de comodato – e esta não está em discussão nos autos - e aquela que emerge na sequência da construção da obra pública.
U. Nos presentes autos cautelares, com inversão do contencioso, o Recorrido não pretende discutir o conteúdo e o alcance das obrigações decorrentes do contrato de comodado, nem tampouco a eventual violação das obrigações assumidas pelas partes.
V. O cerne da que estão nos presentes autos é outro: a obra pública executada pelo Recorrente e que o Recorrido pretende ver embargada.
W. E, não é pelo facto de entre o Recorrente e o Recorrido ter sido celebrado um contrato de comodato de um determinado bem imóvel que tanto a construção da estrada municipal, como a relação jurídica estabelecida passam a ter natureza privada e, por via disso, analisada à luz das normas jurídicas de matriz essencialmente civilística.
X. Muito menos pelo facto de nesse contrato terem as partes atribuído competência aos tribunais comuns para dirimir litígios decorrentes do mesmo, que apenas vale quando o contrato é objeto da ação, que não é o caso dos autos.
Y. Os pedidos formulados e a causa de pedir que foi carreada para os autos, tal como configurada, emergem de uma relação de natureza administrativa e não privada, correspondendo tal obra ao exercício de um poder público administrativo pelo Recorrente.
Z. Estando em presença uma obra que...
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