Acórdão nº 3009/23.2T8GMR.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 12-06-2024

Data de Julgamento12 Junho 2024
Número Acordão3009/23.2T8GMR.G1
Ano2024
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

Relatora: Maria Amália Santos
1º Adjunto: Jorge Santos
2ª Adjunta: Fernanda Proença
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AA e BB, ambos melhor identificados nos autos, intentaram contra CC, DD e EE, a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, na qual pediram que:

a) Seja declarado e reconhecido o direito de preferência dos Autores na dação em pagamento do prédio referido nos artigos 1.º e 2.º da Petição Inicial feita pelo 1.º Réu aos 2ºs Réus por escritura outorgada em 23.02.2022;
b) Sejam colocados os Autores, enquanto preferentes, na posição dos 2ºs Réus beneficiários na aludida dação em pagamento, mediante o pagamento do preço acima referido;
c) Seja ordenado o cancelamento de todos os registos prediais resultantes e decorrentes da dação feita pelo 1.º Réu aos 2ºs Réus pela escritura outorgada em 23.02.2022;
d) Seja ordenado o registo predial do prédio objecto dos presentes autos a favor dos Autores; e
e) Seja ordenado o averbamento matricial do prédio objecto dos presentes autos a favor dos Autores.

Para tanto, alegaram, entre o mais, que:

Em junho de 2005 o 1.º Réu deu de arrendamento aos Autores, sem prazo e mediante o pagamento da renda mensal de € 150,00 (que ainda se mantém), o prédio urbano destinado a habitação, sito na Rua ..., ..., ..., freguesia ... (...), concelho ..., correndo por conta dos Autores o pagamento das correspondentes despesas de água, e eletricidade.
Acontece que o 1.º Réu enviou uma carta aos Autores, datada de 29/04/2022, na qual os informou que o prédio que eles habitam já não lhe pertence, sendo os atuais proprietários os 2.ºs Réus, sem lhes dizer de que forma ou por que preço transmitiu o imóvel arrendado.
Obtida certidão predial, constatou-se que os 2.ºs Réus registaram a aquisição daquele imóvel a seu favor, pela AP. ...79 de 2022/02/24.
Os Réus não comunicaram aos Autores os termos do negócio e condições essenciais do mesmo, nem ao tempo da sua celebração, nem posteriormente, em manifesta violação do disposto no art.º 416.º n.º 2 do CC ex vi art.º 1091 n.º 4 do CC.
Só com a obtenção da certidão, em 21/03/2023, é que os Autores tiveram conhecimento do negócio e dos seus elementos essenciais, designadamente o tipo de negócio, o preço e a forma de pagamento.
De acordo com a certidão obtida, a transmissão da propriedade teve por título uma escritura denominada de “DAÇÃO EM PAGAMENTO”, datado de 23 de março de 2022, outorgada no cartório Notarial da Dr.ª FF, em ....
Nessa escritura, o 1.º Réu, representado por EE, declarou ser devedor aos 2.ºs Réus da quantia de OITENTA MIL EUROS, dando em pagamento o imóvel melhor id. nos artigos 1.º e 2.º da presente peça processual, pelo mesmo valor, ou seja, a transmissão do imóvel foi efetuada pelo preço de 80.000,00 €, ao qual acresce ainda o IMT, no valor de 800,00 € e o Imposto de Selo, no valor de 640,00 €. Para o registo de aquisição a favor dos 2.ºs Réus foram pagos emolumentos no valor de 225,00 €.
Ora, os Autores são arrendatários do prédio objecto do negócio outorgado entre o 2.º e os 3.ºs Réus, há mais de 18 anos, pelo que lhes assiste o direito de preferência na mencionada transmissão – art.º 1091.º n.º 1 al. a) do Código Civil.
Para o efeito, dentro do prazo legal, será depositado o preço da venda, acrescido do IMT, Imposto de Selo e despesas com registo.

SEM PRESCINDIR,
O 1.º Réu nada devia aos segundos Réus.
O 1.º Réu não outorgou a escritura, nem pretendia transmitir o imóvel para os 2.s Réus, só tendo conhecimento da transmissão após a sua concretização.
A escritura foi, supostamente, efectuada mediante intervenção de uma procuradora, a qual refere publica e expressamente que não esteve presente em nenhum acto notarial, pelo que é nulo o acto praticado. E mesmo que tivesse outorgado tal escritura, teria extravasado os limites do seu mandato.
Nunca o 1.º Réu pretendeu transferir a propriedade do seu imóvel para os 2.ºs Réus, tendo sido estes quem engendraram o negócio, ocultando-o do próprio 1.º Réu.
Houve assim uma divergência intencional entre a vontade dos Réus e a declaração, com o intuito de prejudicar e enganar terceiros, em especial os aqui Autores.
O negócio foi, portanto, simulado e, consequentemente, nulo.

MAIS,
São formalidades comuns dos actos notariais “as assinaturas, em seguida ao contexto, dos outorgantes que possam e saibam assinar, bem como de todos os outros intervenientes, e a assinatura do funcionário, que será a última do instrumento” – Cfr. art.º 46.º n.º 1 al. n) do Código do Notariado.
O acto notarial original não continha, também, a assinatura da Sr.ª Notária, cuja consequência é a nulidade do acto – art.º 70.º n.º 1 al. f) do Código do Notariado -, podendo ser posteriormente lavrado um instrumento a sanar tal vício, mas apenas quando tal situação tiver ocorrido, o que os Autores desconhecem.
*
Foi então proferida, no Despacho Saneador, a seguinte decisão (da qual se recorre):
“Dispõe o art.º 186.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Civil, que “Diz-se inepta a petição (...) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.
Conforme explicam António S. A. Geraldes et al., in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2.ª Edição, pág. 233, “sendo a causa de pedir o fundamento da pretensão deduzida em juízo, se o autor invoca em simultâneo dois ou mais fundamentos incompatíveis entre si, eles acabam por se excluir reciprocamente”.
Na verdade, a incompatibilidade substancial de causas de pedir pressupõe que estas não possam ser ambas acolhidas sem se admitir ou introduzir uma contradição interna na ordem jurídica – Cfr., neste sentido, J. de Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1987, Volume II, págs. 492 e 493.
Ou seja, nas palavras de J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª Edição, pág. 379, “A dedução cumulativa de pedidos entre si incompatíveis implica contradição no objeto do processo que impede a sua necessária identificação, algo de semelhante acontecendo quando, fora duma relação de subsidiariedade, se baseie o mesmo pedido em causas de pedir entre si incompatíveis.
Ora, pressupondo o exercício do direito de preferência a validade do negócio relativamente ao qual a mesma se exerce, existe manifesta incompatibilidade de causas de pedir quando, com vista ao seu exercício, se invocam, simultaneamente, os factos de onde tal direito deveria emergir e a nulidade do contrato relativamente ao qual se pretende preferir, como ocorre no caso em apreço – Cfr., a este respeito, Ac. da Relação de Coimbra, de 19.11.2002 (…)e de 12.10.2010 (…), e Ac. da Relação de Évora, de 11.05 .2017 (…)todos disponíveis em www.gde.mj.pt.
Ainda que assim não se entendesse, sempre a invocação da nulidade do contrato relativamente ao qual se pretende exercer a preferência implica uma contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora de ineptidão da petição inicial ao abrigo do disposto no art.º 186.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil.
A este propósito, cabe observar que a petição inicial, tal como a sentença final, deve apresentar-se sob a forma de um silogismo, ao menos implicitamente enunciado, que estabeleça um nexo lógico entre as premissas e a conclusão.
Nesse silogismo, a premissa maior é constituída pelas razões de direito invocadas, a premissa menor é preenchida com as razões de facto, e o pedido corresponderá à conclusão.
Por isso, a causa de pedir não deve estar em contradição com o pedido.
Como explica J. Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, Volume II, pág. 381, para que exista a referida contradição, é preciso que haja oposição entre o pedido e a causa de pedir, que o pedido “brigue” com a causa de pedir: “(…) é da essência do silogismo que a conclusão se contenha nas premissas, no sentido de ser o corolário natural e a emanação lógica delas. Se a conclusão, em vez de ser a conclusão lógica das premissas, estiver em oposição com elas, temos, não um silogismo rigorosamente lógico, mas um raciocínio viciado, e portanto uma conclusão errada. Compreende-se, por isso, que a...

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