Acórdão nº 2909/19.9T8VFR.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 04-11-2021
Data de Julgamento | 04 Novembro 2021 |
Case Outcome | CONCEDIDA A REVISTA, ANULANDO-SE PARCIALMENTE O ACÓRDÃO E ORDENADA A BAIXA DOS AUTOS AO TRIBUNAL DA RELAÇÃO |
Classe processual | REVISTA |
Número Acordão | 2909/19.9T8VFR.P1.S1 |
Órgão | Supremo Tribunal de Justiça |
I – Relatório
1. A 7 de outubro de 2019, o digno Magistrado do Ministério Público na Instância Central de Família e Menores ....... requereu a abertura de processo de promoção e proteção com vista à aplicação urgente de adequada medida de proteção, nomeadamente a de apoio junto de outro familiar, ou outra que se venha a mostrar mais adequada no decurso da instrução, às menores AA, nascida a ... de ... de 2018, e BB, nascida a ... de ... de 2019, filhas de CC e de DD.
2. Alegou que ambas residem com os progenitores, mas em situação de perigo por negligência grave destes, que estão desempregados e revelam reduzidas competências para assegurar a satisfação das necessidades básicas das filhas, nomeadamente no que respeita à higiene e alimentação.
3. Os progenitores consentiram, inicialmente, a intervenção da CPCJ (……), a qual deliberou, a 30 de julho de 2019, aplicar a favor da AA e da BB, pelo prazo de seis meses, a medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais.
4. Foi ainda deliberada a atribuição de apoio económico ao agregado familiar.
5. O respetivo Acordo de Promoção e Proteção foi assinado a 12 de agosto de 2019 e os progenitores comprometeram-se, inter alia, a prestar todos os cuidados ao nível da educação, alimentação, higiene, saúde, segurança e conforto das filhas.
6. Porém, a situação das crianças não sofreu qualquer melhoria e, depois de o progenitor ter encetado atividade laboral, temporariamente, em ..., passaram a ocorrer episódios de negligência grave da mãe para com as filhas, nomeadamente na alimentação e na saúde.
7. Consequentemente, a CPCJ deliberou, a 27 de setembro de 2019, aplicar a favor das crianças a medida de promoção e proteção de apoio junto de outro familiar - os tios paternos -, mas o acordo de promoção e proteção não chegou a ser assinado porque a progenitora, por não concordar com a aplicação dessa medida, retirou o consentimento à intervenção da CPCJ.
8. As crianças encontram-se, atualmente, em situação de perigo, em virtude da incapacidade que os progenitores têm vindo a demonstrar para assegurar, de forma conveniente, a satisfação das suas necessidades elementares, como a alimentação, a higiene e a saúde, pondo em causa o seu saudável e integral desenvolvimento.
9. Declarada aberta a instrução, a11 de novembro de 2019 foram tomadas declarações aos progenitores e elaborado relatório social, tendo-se apurado que a denunciada situação de perigo não só persistia como se tinha agravado, pelo que foi aplicada a ambas as menores a medida provisória de confiança a pessoa idónea pelo período de seis meses, a rever trimestralmente.
10. A menor BB foi, então, confiada à guarda e cuidados do casal constituído por EE e FF e a AA, por seu turno, ao casal composto por GG e HH.
11. Por despacho de 4 de maio de 2020, foi declarada a incompetência territorial do Juízo de Família e Menores ...... e, ao mesmo tempo, determinou-se a separação de processos, formando-se um processo para cada uma das menores.
12. O presente processo foi organizado para a menor BB e passou a correr termos pelo Juízo de Família e Menores .......
13. No prosseguimento do processo, a 17 de novembro de 2020, foram tomadas declarações à Senhora Técnica de Segurança Social, aos progenitores e ao Casal Cuidador. Depois, a digna Magistrada do Ministério Público propôs a aplicação à menor BB da medida de confiança a instituição com vista a futura adoção.
14. Foi, então, declarada encerrada a instrução e determinou-se a realização imediata de uma conferência, tendo em vista a eventual obtenção de acordo de promoção e proteção, consenso que não foi possível alcançar por oposição dos progenitores à aplicação da medida proposta pelo Ministério Público.
15. Perante a ausência de consenso, o Ministério Público e os progenitores foram notificados para alegarem por escrito e oferecerem prova, nos termos e para o efeito do disposto no art. 114.º, n.º 1, da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro (Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, doravante LPCJP, sucessivamente alterada pelas Leis n.os 31/2003, de 22 de agosto, 142/2015, de 8 de setembro, 23/2017, de 23 de maio, e 26/2018, de 5 de julho).
16. O Ministério Público apresentou alegações em que reafirmou os seus pontos de vista e renovou a proposta de aplicação à menor BB da medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, tendo também indicado prova.
17. Por seu turno, os progenitores e os membros do casal cuidador - EE e FF - apresentaram requerimento conjunto, que concluem do seguinte modo:
“Vem pugnar-se junto de V. Exas. pela adoção plena da menor BB por EE e FF”.
18. Realizou-se o debate judicial e, a4 de março de 2021, foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:
“Em face de tudo o que ficou exposto e após deliberação, decidimos:
a) aplicar à criança BB a medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção prevista nos art.º 35.º n.º 1 al. g) e 38.º-A da LPCJP e, em consequência, confiá-la à guarda do Centro de Acolhimento Temporário onde for acolhida e nomear, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 62.º-A n.º 3 da LPCJP, como curador provisório da criança, o Sr. Director de tal instituição;
b) declarar cessadas as visitas à criança por parte da sua família biológica (art.º 62.º-A n.º 6 da LPCJP);
c) declarar DD e CC inibidos do exercício das responsabilidades parentais da criança (art.º 1978.º-A do Código Civil);
d) determinar que o presente processo tenha a partir de agora, natureza secreta, por forma a salvaguardar a identidade da pessoa a quem a criança venha a ser confiada”.
19. Inconformados com esta decisão, os cuidadores EE e FF interpuseram recurso de apelação.
20. O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
21. O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo (despacho de 14 de abril de 2021).
22. A 12 de julho de 2021, por acórdão, o Tribunal da Relação ...... decidiu o seguinte:
“Termos em que acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação ...... em:
A) rejeitar, por legalmente inadmissível, o recurso intercalar interposto do despacho de 15.02.2021;
B) julgar improcedente o recurso de apelação interposto por EE e FF do acórdão de 04.03.2021 e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
As custas dos recursos ficam a cargo dos recorrentes, face ao seu decaimento total (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Cód. Processo Civil).”
23. O Tribunal da Relação ...... julgou, assim, o recurso improcedente, confirmando a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, sem voto de vencido, e com a mesma fundamentação, tendo mantido, no essencial, os factos dados como provados e não provados pelo Tribunal de 1.ª Instância (apenas precisou alguns dos factos dados como provados).
24. De novo não conformados, EE e FF interpuseram recurso de revista excecional, apresentando as seguintes Conclusões:
“B1 - Da admissibilidade da presente revista excecional
A. Consagrou-se, em 2007, um regime de atenuação da dupla conforme – previsto no artigo 672.º do CPC – segundo o qual a revista será sempre admissível, a título excecional, se se verificarem as premissas nele ínsitas. E assim cremos acontecer no caso em apreço.
B. Uma vez que o legislador não densificou tais premissas, antes as fez assentar, como de resto é seu apanágio, em conceitos indeterminados, cumprirá ao Supremo Tribunal de Justiça essa (não fácil, mas necessária) tarefa de integração; no âmbito da qual rogamos se atente ao seguinte:
Da relevância jurídica
C. Acompanhados de doutrina e jurisprudência bastante, concluímos que cabem na alínea a) todas as questões manifestamente complexas, de grande relevo jurídico e controverso, cuja apreciação surge, assim, como necessária a “uma melhor aplicação do direito”.
D. Exige-se, pois, uma questão nova, passível de diferentes interpretações, com carácter paradigmático e sem paralelo na jurisprudência. Ora,
E. No caso vertente, e como procuraremos detalhar, inexiste uma corrente jurisprudencial consolidada nesta matéria.
Da relevância social
F. Dados os valores supremos em contenda, a análise da questão agora aqui trazida é imperativa, cumprindo, pois, destacar, os enraizados valores socioculturais e socioeconómicos que se veem ameaçados e que se traduzem na circunstância de uma menor, de muito tenra idade, se ver apartada da sua família -que não biológica mas, na verdade, afetiva e efetiva -para ser entregue a uma instituição para futura adoção, sabendo-se (e estando provado) que a menor está bem acolhida e integrada, bem cuidada e amada apenas e tão só com base numa leitura positivista da lei, apartada do seu espírito.
G. Não pode a sociedade deixar de alarmar-se com um comando que engrossa as fileiras de crianças institucionalizadas, com o fito único de cumprir a Lei; magoando profundamente os conceitos de família e do superior interesse da criança.
H. Na verdade, o acórdão recorrido não dedica uma única linha às ligações existentes entre a menor e a família afectiva, tampouco à dinâmica da família (que o é) alargada ou, sequer, à circunstância de EE ser madrinha de batismo da menor. Mais, da contradição de julgados
I. Não há, na experiência dos tribunais superiores, questão com idênticos contornos. Verifica-se, no entanto, contradição de julgado perante a aplicação das mesmas regras de direito, mas com diferentes alcances.
J. Chamamos, por tal, à colação o (melhor identificado supra) aresto do Tribunal da Relação de Lisboa, segundo o qual: “(…) Com efeito, vislumbrando-se a existência de uma família natural susceptível de integrar o menor haverá, antes de mais, de averiguar das efectivas possibilidade dessa integração na família natural antes de avançar, como se avançou, para a adopção.”
K. Outrossim, e em linha...
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