Acórdão nº 2882/16.5TDLSB.L1-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 30-10-2019

Data de Julgamento30 Outubro 2019
Case OutcomeREJEITADO
Classe processualRECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Número Acordão2882/16.5TDLSB.L1-A.S1
ÓrgãoSupremo Tribunal de Justiça

AA, arguido no processo comum com intervenção de tribunal singular n.º 2882/16.5TDLSB, do Juízo Local Criminal – Juiz …, Comarca de Lisboa, não se conformando com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 12 de Fevereiro de 2019, veio, nos termos do disposto no artigo 446.º do Código de Processo Penal, apresentar requerimento de interposição de recurso extraordinário de fixação de jurisprudência (sic), invocando como fundamento a oposição entre o acórdão recorrido e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2007 (Processo n.º 256/06 – 3.ª Secção), apresentando a motivação de fls. 2 verso a 6 verso, nestes termos (Realces do texto):

«Entendeu o douto Tribunal da Relação de Lisboa inexistir fundamento para a suspensão do processo ao abrigo do princípio da suficiência do processo penal, por considerar o objeto da instância penal diferente do da instância tributária. Com todo o devido respeito, não pode o Arguido/Recorrente concordar com tal uma vez que, o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência que invalida por completo o entendimento do tribunal a quo, como veremos infra.

Requereu o arguido a suspensão da instância penal, por se encontrar pendente uma ação de intimação judicial, cuja apreciação radica em factos constitutivos do tipo ilícito reportado ao arguido. Foi pelo arguido apresentada, junto do Tribunal Tributário de Lisboa, ação de Intimação Judicial contra o Instituto de Segurança Social IP – Núcleo de Investigação Criminal, a fim de se reconhecer da prescrição das prestações respeitantes a cotizações referentes aos períodos compreendidos entre o ano de 2009 e 2012. As referidas prestações, respeitantes a cotizações cujo reconhecimento de prescrição se requer na ação, são as mesmas que estão em causa no presente processo crime em que o ora arguido vem acusado de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 6.º, 7.º n.º 1, 105.º n.º 1, 4 e 5, 107.º n.º 1 e 2 do RGIT. O reconhecimento da prescrição de tais prestações tributárias, torna a notificação feita ao arguido nos termos do artigo 105.º n.º 4 alínea b) do RGIT, absolutamente intempestiva porquanto respeitante a prestações tributárias inelutavelmente prescritas à data em que tal notificação ocorre. Por conseguinte, tais circunstâncias influenciam de forma decisiva o desfecho da instância penal, razão pela qual o arguido aqui recorrente requereu a sua suspensão.

Estamos assim perante uma questão prejudicial que envolve a análise da prescrição das prestações respeitantes a cotizações que, conforme artigo 49.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e fiscais é da competência dos tribunais tributários. Deste modo, dada a especificidade da matéria em causa – fiscal -, demonstra-se necessário a avaliação/ponderação da questão pelas instâncias competentes. Não obstante, entendeu o acórdão recorrido que: “considerando o seu objecto definido pelo despacho de pronúncia, está em causa a responsabilidade criminal do arguido, o que pode abranger apreciação da prescrição do respectivo procedimento criminal, questão da competência do tribunal criminal e para conhecimento da qual os autos fornecessem todos os elementos, sendo evidente que nenhuma justificação existe para a suspensão do processo”.

Por sua vez, o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão n.º 3/2007, perante dois acórdãos em conflito em relação a uma mesma questão de direito, na alçada da mesma legislação, quanto à suspensão do prazo de prescrição do procedimento penal fiscal devido a uma impugnação judicial fiscal, fixou jurisprudência sobre a presente matéria - suspensão do processo penal por crime fiscal - em sentido contrário ao adotado pelo tribunal recorrido.

O regime de suspensão do procedimento penal por crime fiscal em virtude de ação fiscal (impugnação judicial ou oposição fiscal) encontra-se previsto no Regime Geral das Infrações Tributárias (doravante RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho. O n.º 4 do artigo 21.º deste regime determina que, “O prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 42.º e no artigo 47.º”. Por seu turno, o n.º 1 do artigo 47.º do regime identificado estabelece, “Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o código (SIC) tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças..

Pelo douto Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do recurso de fixação de jurisprudência identificado supra foi delimitado o sentido e alcance da norma jurídica – artigo 47.º do RGIT. Como realça o acórdão fixador de jurisprudência o sentido e alcance da norma jurídica advém da sua interpretação e, interpretar uma norma consiste em fixar o seu sentido, delimitando o alcance da norma. Ora o ponto de partida da interpretação é a letra da norma, que detém a função de excluir tudo o que não tenha apoio ou ligação no texto do preceito. Porém, é também essencial na interpretação a procura do sentido que a norma deve indicar, de acordo com critérios de apreensão literal, sistemáticos e teleológicos.

Neste conspecto, o Supremo Tribunal de Justiça procedeu à interpretação do normativo legal do regime de suspensão do procedimento penal por crime fiscal em virtude de pendência de ação fiscal.

De acordo com o elemento literal, os artigos 21.º n.º 4 e 47.º n.º 1 do RGIT estabelecem que o prazo de prescrição do procedimento por crime fiscal suspende-se perante a suspensão do processo penal fiscal, se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução onde se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, perdurando a suspensão até ao transito em julgado das sentenças. A este propósito determina o acórdão de jurisprudência supra identificado que, “o legislador aponta a pendência do processo de impugnação judicial tributário como uma causa de suspensão do processo penal por crime fiscal e, consequentemente, por referência expressa, do procedimento criminal. Indica, pois, uma causa própria de suspensão, pura e simples e directa, do processo penal por crime fiscal, isto é, sem a fazer depender de qualquer condição. Nomeadamente não estipula a necessidade de um despacho judicial a determinar no contexto indicado a suspensão do processo por crime fiscal.”

Destarte, ao contrário do exposto no acórdão recorrido, de acordo com o qual “a suspensão depende” “de critérios de necessidade e conveniência”, determina o acórdão fixador de jurisprudência que de acordo com o n.º 1 do artigo 47.º do RGIT, a suspensão do processo penal por crime fiscal ocorre de forma imediata perante a pendência de acção fiscal que discuta a situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados e, “a suspensão do processo do processo penal determina ex vi legis suspensão do procedimento criminal”. Esta suspensão revela-se obrigatória na pendência de acção fiscal que discuta a situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, como sucede in casu pois, as prestações de cotizações discutidas na acção de intimação judicial (por via da prescrição) é decisivo para a imputação ao arguido do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 6.º, 7.º n.º 1, 105.º n.º 1, 4 e 5, 107.º n.º 1 e 2 do RGIT. E, como estabelece o RGIT, nomeadamente o n.º 2 do artigo 47.º, a suspensão do processo penal fiscal prolonga-se até ao trânsito em julgado das decisões da acção fiscal que discuta a situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados.

Quanto ao elemento sistemático, decorre do acórdão fixador de jurisprudência que o RGIT integra um regime penal e processual especial. Tal especificidade fundamenta que às infracções fiscais seja em primeiro lugar aplicável as normas constantes do RGIT e, subsidiariamente, em casos de omissão e desde que tal aplicação não contrarie as normas e os princípios daquele regime, as normas do regime penal e processual-penal comum. Razão pela qual, a suspensão decorre da lei, nomeadamente do artigo 47.º do RGIT, sem carência de despacho judicial, o qual terá, se eventualmente for proferido, índole tão-só declarativa.

Também aqui o acórdão recorrido andou mal ao considerar que, à luz do princípio da suficiência do processo penal a suspensão só é admissível se “quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer outra questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal”, desconsiderando a especificidade do direito fiscal e a primazia na aplicação das normas constantes do RGIT. Aliás, como expõe o acórdão fixador de jurisprudência, a peculiaridade do direito fiscal legitima “o afastamento do chamado princípio da suficiência do processo penal no domínio do direito penal fiscal”, acrescentando ser “manifesto que o direito fiscal constitui um ramo de direito público, imbuído de princípios e normas próprios, do ponto de vista quer substantivo quer adjectivo. Uma tal peculiaridade do direito fiscal justificou a criação de uma ordem jurisdicional própria — os tribunais administrativos e fiscais. (…) Mais constitui matéria da competência exclusiva de tal jurisdição, assim se afastando, neste limite, o princípio da suficiência do processo penal.”.

Neste seguimento, recusar a suspensão do processo penal estando pendente acção de intimação judicial poderá acarretar que o desfecho de uma das ações ou de ambas figure como um ato inútil ou,...

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