ACÓRDÃO Nº 287/2024
Processo n.º 1240/2023
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Benedita Urbano
Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. A. e B., réus e aqui reclamantes, como consta do primeiro acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) a seguir mencionado, foram demandados por C., tendo sido proferida sentença na 1.ª instância, “julgando a ação procedente” e condenando “os réus a reconhecer a autora como legítima proprietária da fração autónoma designada pelas letras “AC” correspondente ao 5º andar letra A do prédio urbano situado em .., na Av. … nº .., descrito na ficha nº ../20020821 da Conservatória do Registo Predial de Agualva-Cacém e inscrita sob o art. … da matriz predial urbana da freguesia de Cacém e São Marcos, condenando os réus a restituí-la à autora livre e devoluto de pessoas e bens e ainda a pagar à autora, pela ocupação ilegítima do imóvel, à razão de € 350,00/mês, desde abril de 2019 a julho de 2020 e à razão de € 500,00/mês, desde agosto de 2020 até efetiva e entrega do mesmo”. Nessa sequência, recorreram dessa decisão para o TRL, terminando esse recurso com as seguintes conclusões:
“1º - O presente recurso é interposto da sentença proferida pelo Juízo Central Cível de Sintra, Juiz 1, que julgou procedente a ação interposta, condenando os RR no pedido.
2º - O tribunal a quo deu como provado os factos constantes dos pontos I a II da sentença recorrida isto é que «por contrato celebrado no dia 31 de março de 2014 a Autora deu de arrendamento aos Réus, para habitação e pela renda de € 350,00, a fração autónoma referida em 1. 3. O contrato de arrendamento foi celebrado pelo prazo de 5 anos, com início no dia 1 de abril de 2014 e termo no dia 31 de março de2019.; 4. Por carta datada de 04-09-2018 a Autora comunicou aos Réus que... «a minha intenção de não renovação do contrato de arrendamento... por necessitar do imóvel para habitação própria. O contrato acima referido cessará os seus efeitos a partir de 31 de março de 2019, data em que deverá proceder «a entrega do arrendado livre de pessoas e bens...». 5. A carta referida em 4. foi enviada sob registo e aviso de receção, tendo sido recebida pelos Réus no dia 23 de setembro de 2018...6. Os Réus detêm a fração e as chaves do mesmo.7. A Autora está privada da fração, não a podendo usar ou fruir. 8. Estando igualmente impedida de, caso o pretendesse, arrendar... 10. Colocada no mercado de arrendamento a referida fração teria o rendimento mensal, no mínimo de €500,00, condenando-os a reconhecer a autora como legítima proprietária da fração autónoma... a restituí-lo à Autora livre e devoluto de pessoas e bens a pagar à A. quantia devida pela ocupação ilegítima do imóvel, à razão de €350,00 até efetiva do mesmo, e custas na proporção de 8/10, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
3º - Decisão com a qual os RR, ora recorrentes não se conformam, senão vejamos:
4º - Nos presentes autos, nunca esteve em causa o reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre o imóvel, pelo que entende os Recorrentes que o tribunal a quo fez uma incorreta apreciação dos factos, porquanto fundamenta a sua decisão no facto de a causa de pedir ser o reconhecimento do direito de propriedade da A e a posse ilegítima por parte dos RR, fundada na caducidade do contrato de arrendamento.
5º - Acontece que toda a petição inicial se baseia num facto bem distinto: a existência de um contrato de arrendamento celebrado entre a A e os RR, que enquanto vigente legitimou a ocupação do local arrendado, mas que chegou ao seu termo, não pretendendo a A renová-lo, conforme comunicação feita por carta, de 04,09.2018 e recebida pelos RR.
6º - Portanto, e citando a vasta jurisprudência sobre a matéria, nomeadamente o Ac TRP (proc 3220/19 0T8VLGPI)... a exposição, pela A, do acervo factual que constitui a causa de pedir, esbarra inevitavelmente na existência de um contrato de arrendamento celebrado com os RR de cuja cessação – efeito jurídico que, devendo ser deduzido pela A, não o foi dependerá a condenação dos RR na entrega do imóvel/desocupação do local arrendado,
7º - Por outro lado, a ação é proposta contra os RR/inquilinos, ora recorrentes, pessoas que legitimamente ocupavam o imóvel, na vigência do contrato, e que não se apoderaram legitimamente da fração em causa, violando o direito de propriedade da A.
8º - Pelo que ao contrário da sentença recorrida, não está em causa o seu direito de propriedade da A, mas sim um dos efeitos da cessação do contrato de arrendamento. Conf o mesmo ac...«se os ocupantes do prédio arrendado fossem pessoas alheias ao contrato de arrendamento, a ação própria para reavê-lo seria efetivamente a de reivindicação, todavia, estruturando-se à causa de pedir, notoriamente, no contrato de arrendamento celebrado com os réus (que, por força desse contrato, obviamente reconheceram o direito de propriedade dos autores/senhorios sobe o locado), e a cessação dele por alegada caducidade, forçosamente é de concluir é a ação de despejo.
Tratando-se a caducidade de uma forma de extinção do arrendamento é apropriada a ação de despejo para obter a desocupação do arrendado e não a ação de reivindicação. P3226/19.0T8VLG.Plde 14.07.2021.
9º - Na verdade, a causa de pedir na ação, salvo opinião contrária, é incompatível com os pedidos, que não foi feito pela A, de declaração de cessação do contrato de arrendamento, por caducidade, em vez de reconhecimento do direito de propriedade, que nunca esteve em causa.
10º - Não restam dúvidas de que o efeito jurídico pretendido pela A na propositura da ação é a entrega da tração e para ISSO reclamam a condenação dos RR, ora recorrentes, no reconhecimento do seu direito de propriedade. Porém, tal direito nunca foi questionado pelos RR.
11º - Na realidade, nos factos alegados pela A e que constituem a causa de pedir, não se coaduna com um facto muito concreto que é a existência de um contrato de arrendamento, de cuja cessação depende a entrega do locado, o que não consta do pedido formulado, e que só poderia ser feito em ação de despejo e não de reivindicação.
12º - Daí a evidente incompatibilidade entre a causa de pedir e o pedido formulado pela A, que deveria ser julgado pelo Tribunal a quo, com a extinção da presente ação declarativa, observando o vício previsto no art. 186/1CPC.
13º - Segundo o nº 1 do art. 186 CPC, «É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial».
E acrescenta o nº 2 do mesmo normativo:
«Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir»;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causa de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis».
14º - A ineptidão da petição inicial emana da análise da causa de pedir e do pedido, enquanto elementos essenciais, estruturantes e estruturadores do objeto do processo, os quais, por sua vez, delimitam os poderes de cognição do tribunal.
15º - Segundo o artigo 552/1 CPC, «Na petição, com que propõe a ação, deve o autor (...) expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir», ou seja, o conjunto dos factos constitutivos da situação jurídica que o autor quer fazer valer (os que integram a previsão da norma ou das normas materiais que estatuem o efeito pretendido).
16º - Os factos a que se refere a norma em causa são os factos principais, na conceção ampla dos factos essenciais a que alude o nº 1 do art. 5 da lei processual civil, que, integrando a causa de pedir, têm função fundamentadora do pedido deduzido. A falta de alegação de algum deles compromete a procedência do pedido deduzido, por insuficiência de fundamentação de facto do mesmo, isto é, da respetiva causa de pedir, conduzindo à absolvição do demandado do pedido formulado.
17º - Outra circunstância que pode ditar a ineptidão da petição inicial verifica-se «quando exista uma desarmonia irreversível entre a exposição dos factos e a pretensão jurídica formulada. Isto significa que o percurso expositivo da factualidade está em oposição com a pretendida solução jurídica, existindo um impacto entre ambas que não possibilita qualquer tutela jurisdicional» (Ac TRP, Proc3226/19.0tSvig.pl, de 14.07.2021)
18º - In casu, a A interpôs uma ação que configura uma ação de reivindicação, pedindo a condenação dos RR a reconhecer o seu direito de propriedade, ao mesmo tempo que alegam a celebração de um contrato de arrendamento com os RR, para habitação destes, contrato esse que não pretendia renovar, denunciando-o a partir de 31 de março de 2019,
19º - Acontece que nos termos legais, a ação a propor seria de despejo, que se destina a fazer cessar a situação jurídica de arrendamento (art. 14/1 do NRAU), e não a ação de reivindicação, acolhida pela sentença recorrida.
20º - Embora a A peça a entrega do prédio, pretensão que é comum à reivindicação e ao despejo, haveria que, de acordo com a causa de pedir nos autos, fazer o inerente e primordial pedido, de declaração de cessação do contrato de arrendamento por caducidade e não um pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade, que nunca esteve em causa, devendo a petição ser considerado inepta, por violação do art. 186/2, al b) do CPC, ao contrário do que...