Acórdão nº 2855/21.6T8BCL.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 04-05-2023
Data de Julgamento | 04 Maio 2023 |
Case Outcome | NEGADO PROVIMENTO |
Classe processual | RECURSO PENAL |
Número Acordão | 2855/21.6T8BCL.G1.S1 |
Órgão | Supremo Tribunal de Justiça |
Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:
I - Relatório
1. Por sentença de 16-02-2022, proferida nos presentes autos, no Juízo Local Criminal ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi julgado improcedente o recurso de impugnação apresentado por “ADB - Águas de Barcelos, SA”, e mantida a condenação desta na coima de 24.000,00 € (vinte e quatro mil euros), pela prática de uma contraordenação prevista e punível nos termos das disposições conjugadas dos artigos 81.º, n.º 3, al. c), do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31-05, e artigo 22.º, n.º 4, al. b), da Lei n.º 50/2006, de 29-08.
2. Inconformada, a arguida interpôs recurso da sentença para o Tribunal da Relação de Guimarães, instância em que, por acórdão de 23-05-2022, foi julgado totalmente improcedente, e, consequentemente, confirmada a sentença recorrida.
3. Vem agora a arguida interpor recurso de revista excecional do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães para o Supremo Tribunal de Justiça, “ao abrigo do disposto no artigo 432.º e ss. do Código de Processo Penal (“CPP”) e artigo 672.º, n.º 1, al. a) e b) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP e do princípio do contraditório”, com motivação de que extrai as seguintes conclusões:
“A. O presente recurso tem por objeto o Douto Acórdão recorrido.
B. Está em causa a condenação da ADB à prática de contraordenação ambiental muito grave prevista no artigo 81.º, n.º 3, al. c) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio pelo alegado “incumprimento das obrigações impostas pelo respetivo título”.
C. Pese embora o Tribunal de 1.ª instância se ter declarado “impossibilitado de considerar idóneos os resultados espelhados no auto de notícia”, o mesmo considerou que a ADB praticou o ilícito de mera ordenação social pelo qual veio a ser condenada pela entidade administrativa competente, baseando-se em factos distintos daqueles que deram origem ao processo de contraordenação.
D. Fazendo-o quando nem a própria entidade competente para a fiscalização considerou bastantes os factos distintos daqueles que deram origem ao processo de contraordenação (nomeadamente os resultados previamente apresentados pela ADB), para desencadear, por si só, o procedimento de contraordenação sub judice.
E. Tendo, desta forma, e tal como consta do Dispositivo constante da Sentença do tribunal de 1.ª instância, julgado recorrendo à alteração da factualidade provada com o intuito de manter a condenação da ADB.
F. O Douto Tribunal recorrido veio confirmar a legalidade daquela decisão.
G. A imputação dessa mesma contraordenação com base nos resultados que a ADB havia, no cumprimento das obrigações decorrentes da Licença, previamente apresentado à entidade administrativa competente, faz com que, em plena violação da reserva da atividade administrativa prevista no artigo 111.º da CRP e do princípio constitucional da não autoincriminação, o poder jurisdicional se substitua ao juízo da entidade administrativa competente.
H. Qualquer ato administrativo (no caso, a Decisão de condenação proferida pelo IGAMAOT) deve, no cumprimento do artigo 153.º do Código do Procedimento Administrativo, ser devidamente fundamentado, não só para garantir o direito de defesa da ADB, mas também o interesse público e uma função de autocontrole da própria administração, explicitando as razões de facto e de direito que levaram o autor à prática da decisão administrativa.
I. A factualidade provada alterada sobre a qual a ADB não teve a oportunidade de se pronunciar, pode ter sido gerada por causas que não são da responsabilidade da arguida e que, por essa razão, conduzem à exclusão de ilicitude e culpa.
J. Refira-se que o facto de existir uma ideia de “menor dignidade” da matéria contraordenacional, relativamente à matéria criminal, não pode significar uma menor dignidade de tratamento jurídico quando estão em causa questões processuais e procedimentais essenciais para assegurar a tutela dos direitos da ADB enquanto interessada, seja em sede do procedimento administrativo do qual emergiu a decisão de contraordenação, seja em sede do respetivo processo contencioso de impugnação da mesma.
K. O artigo 32.º, n.º 10 da CRP dispõe que “Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa” - o que significa que a própria Constituição não faz a distinção entre matérias de parente “pobre”, como as contraordenacionais, e matérias de parente “nobre”, como as criminais.
L. Ao confirmar a legalidade daquela decisão, o Douto acórdão recorrido vedou à ADB qualquer oportunidade de se defender junto da entidade administrativa quanto àquela matéria que resultou da alteração de factualidade – o que resulta, para além da violação do princípio constitucional da separação de poderes, na violação do direito de defesa da ADB com a abrangência imposta pelo artigo 32.º, n.º 1 e 5 da CRP, no sentido de que nenhuma decisão deve ser proferida, sem que previamente tenha sido precedida de ampla e efetiva possibilidade de ser contestada ou valorada pelo sujeito processual contra o qual aquela é dirigida.
M. Dito isto, a questão jurídica fundamental objeto da presente revista é a seguinte: pode uma entidade administrativa praticar um ato administrativo sancionatório (no caso, uma contraordenação e respetiva sanção), com base numa fundamentação de facto à qual o Arguido teve oportunidade de responder em sede procedimental e o Tribunal de 1.ª instância, na apreciação dessa mesma decisão administrativa, alterar a fundamentação de facto sem que o Arguido nunca tenha tido a possibilidade de se pronunciar sobre a nova fundamentação que o Tribunal entendeu selecionar para manter a validade da decisão administrativa condenatória?
N. Assumindo que em Portugal, em cada ano, seja no domínio ambiental, seja nos dos demais setores regulados, as entidades administrativas aplicam milhares de contraordenações e respetivas coimas, esta é, pelo impacto que tem na garantia de defesa dos administrados e na atuação da Administração Pública, enquanto entidade sancionatória, uma questão de gigantesca relevância jurídica que apenas em sede de recurso de revista o Supremo Tribunal de Justiça poderá apreciar e decidir.
O. Se esta revista não for admitida ou à mesma não for dado provimento, o Estado de Direito está ferido de morte, na medida em que, a partir de agora, sempre que uma entidade administrativa fundamentar de maneira imperfeita a sua decisão administrativa, poderá o tribunal substituir, no plano dos factos, e até no do direito, a fundamentação que serviu de base à decisão administrativa sem que sobre a nova fundamentação o respetivo arguido tenha tido oportunidade de se defender.
P. Não há maior atropelo ao princípio da defesa dos direitos dos administrados previsto no artigo 266.º, n.º 1 da CRP, designadamente no plano do direito de participação procedimental ou de audiência previa previstos no artigo 12.º e 121.º do Código do Procedimento Administrativo, do que a situação acabada de relatar.
Nestes termos e nos melhores de Direito (…):
a) Deve o presente recurso de revista ser admitido e, em consequência,
b) Deve o recurso interposto ser julgado procedente, sendo revogado o adouto acórdão recorrido, com as respetivas consequências legais.”
4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto suscitado a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, nos seguintes termos:
“(…)
5 – Suscita-se a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, em razão da irrecorribilidade da decisão do Tribunal da Relação de Guimarães.
Com efeito, sob a epígrafe Âmbito e efeitos do recurso, dispõe o artigo 75.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, diploma que instituiu e regula o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo, doravante designado por R.G.C.O: 1 - Se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões. (…).
Configura-se, nestes termos, legalmente inadmissível a interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão proferida pelo tribunal da Relação em matéria de contraordenações.
Ciente de tal limitação, a recorrente ADB - Águas de Barcelos, S.A. procura sustentar, no segmento expositivo da motivação de recurso, que a referida norma do artigo 75.º do R.G.C.O. «… se refere ao recurso ordinário e, não ao recurso extraordinário.» (cfr. ponto 25).
E por isso se abalançou à interposição de recurso de revista excepcional, previsto no artigo 672.º do Código de Processo Civil (C.P.C.), invocando, como fundamento, estar em causa questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito, e estarem ainda em causa interesses de particular relevância social, enquadrados, uma e outro, nas alíneas a) e b) do n.º 1 dessa disposição legal, aplicável, na sua perspectiva, por força do disposto no artigo 4.º do C.P.P.
É de entender, porém, não ser admissível o recurso de revista excepcional de que foi lançada mão.
Como ainda muito recentemente, 18 de Maio de 2022, se decidiu em acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 48/17.6GCALM.L1-A.S1, da 3ª Secção: [transcrição]
Igual sorte deverá ter o recurso em presença.
Com efeito, a evolução do regime de recursos no âmbito do processo penal (…) torna evidente que a opção do legislador foi no sentido de tornar o regime dos recursos no processo penal autossuficiente e completamente autónomo do regime de recursos no processo civil.
“O regime de recursos em processo penal, tanto na definição do modelo, como nas concretizações no que respeita a pressupostos, à repartição de competências pelos tribunais de recurso, aos...
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