Acórdão n.º 28/2016

Data de publicação28 Julho 2016
SeçãoParte D - Tribunais e Ministério Público
ÓrgãoTribunal Constitucional

Acórdão n.º 28/2016

Processo n.º 409/2015

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - Por decisão de 30 de setembro de 2014, proferida no processo de inventário para partilha de bens da herança aberta por óbito de Maria Cândida Ribeiro, que corre termos, sob o n.º 2571/2014, no Cartório Notarial de Eva Raquel da Rocha Martins, notária e ora recorrente, determinou-se a suspensão do processo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 269.º, n.º 1, alínea c), e 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, até efetivo pagamento dos honorários notariais e despesas previstos no artigo 18.º e 21.º da Portaria n.º 218/2013, de 26 de agosto, ficando os autos de inventário a aguardar uma resposta do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. (IGFEJ, IP), no sentido de se responsabilizar pelo pagamento das despesas e honorários notariais previstos naquele diploma.

Maria Cândida Ribeiro Gonçalves, requerente do inventário e ora recorrida, recorreu dessa decisão para a instância local de Amares do Tribunal da Comarca de Braga, que, por sentença de 29 de outubro de 2014, julgou procedente o recurso, ordenando, em consequência, o prosseguimento do processo de inventário. A notária, inconformada, dela recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por Acórdão de 12 de fevereiro de 2015, negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida.

E, na sequência, recorreu desta última decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), a fim de ver apreciada «a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2 do artigo 26.º da Portaria 278/2013, de 26 de agosto, cujo teor inconstitucional é reproduzido no artigo 26.º-A da nova redação da portaria, conforme alteração introduzida à referida Portaria [...], pela Portaria 46/2015, de 23 de fevereiro (que entrará em vigor no próximo dia um de março, aplicando-se aos processos pendentes), norma esta, do artigo 26.º-A, que por substituir a norma em vigor à presente data é abrangida pelo objeto do recurso e deve ver a sua inconstitucionalidade igualmente apreciada, em ambas as redações, por violação dos artigos 13.º, 18.º, n.º 1, 20.º, 59.º, 82.º, 86.º, n.º 2, 104.º e 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição da República Portuguesa [...]».

O Tribunal recorrido admitiu o recurso.

Subidos os autos ao Tribunal Constitucional, determinou-se, por despacho do relator, que os mesmos prosseguissem para alegações, fixando-se, porém, o objeto do recurso, nos seguintes termos:

«A norma extraída do artigo 26.º, n.º 2, da Portaria n.º 278/2013, de 26 de agosto, interpretada no sentido de que, até à constituição do Fundo nele previsto, o processo de inventário deve prosseguir sem o pagamento, pelo IGFEJ, IP, dos honorários notariais e despesas previstos nos artigos 15.º, 18.º e 21.º da Portaria n.º 278/2013, de 26 de agosto, nos casos em que o requerente é beneficiário de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos do processo».

A recorrente apresentou alegações dizendo em resumo o seguinte:

- O sujeito passivo dos direitos dos beneficiários de apoio judiciário de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva é apenas o estado e são os direitos patrimoniais do Estado que devem ser restringidos para satisfazer estas obrigações.

- Sendo o notário um profissional liberal remunerado exclusivamente pelas partes, não está obrigado a tramitar o apoio judiciário e suportar as despesas inerentes por conta dos interessados, pelo que deverá fazer valer os seus direitos suspendendo o processo até que o Estado se responsabilize direta e efetivamente pelo pagamento de todos os encargos derivados do apoio judiciário.

- Não há aqui uma verdadeira colisão de direitos entre o notário e o beneficiário do apoio judiciário mas sim uma questão que deve ser resolvida entre o Estado e esses beneficiários e a única forma de obter a resolução material da questão será pela suspensão da tramitação dos processos.

- Uma interpretação do artigo 272.º do C.P.C. no sentido de que não será motivo justificado para a suspensão de um processo a falta de disponibilização em tempo útil, por parte do Estado, dos meios necessários a financiar o trabalho e as despesas que essa tramitação comporta, no caso de os interessados se encontrarem dispensados do pagamento de custas e demais encargos com o processo será manifestamente inconstitucional por violação dos artigos 53.º, 58.º, n.º 1 do artigo 59.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa.

- Decorre da Constituição que deve ser o Estado a suportar o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, pelo que as normas sob fiscalização concreta violam o artigo 20.º da C.R.P e os artigos 2.º, 3.º, 6.º, 13.º e 15.º da Lei n.º 34/2004 de 29 de julho, na sua redação atual.

- As normas sob fiscalização concreta violam ainda os artigos 62.º, 82.º e 86.º, n.º 2, da C.R.P na medida em que o Estado não pode intervir na gestão da empresas privadas a não ser a título transitório, e o notário é simultaneamente um oficial público, enquanto confere autenticidade aos documentos, e um profissional liberal que atua de forma independente.

- As normas em apreço violam os direitos dos trabalhadores e do setor e iniciativa privados protegidos pelo disposto nos artigos 59.º, 82.º e 86.º da C.R.P., uma vez que injustificadamente interferem com o seu património e com a forma de gestão da sua atividade.

- A afetação de parte dos rendimentos do seu trabalho para um fundo destinado a assistir quem tenha insuficiência de meios económicos constitui uma forma encapotada de imposto sobre os rendimentos, que viola os princípio da dupla tributação e o princípio da legalidade fiscal (artigos 165.º, n.º 1. al i) e 103.º, n.º 2, da CRP), princípio da segurança jurídica (artigo 2.º da C.R.P.), o princípio da capacidade contributiva e da igualdade fiscal (artigos 13.º 103.º e 104.º da C.R.P. e 5.º, e 7.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária)

- A Portaria n.º 278/2013 viola o princípio constitucional da igualdade, sendo, por isso, uma norma discriminatória por violar frontalmente o princípio da repartição dos encargos públicos onerando apenas uma classe profissional interveniente nos processos de inventário e por não lhe assistir qualquer justificação material.

- As normas sob fiscalização são também formalmente inconstitucionais porquanto violam o princípio da reserva relativa da Assembleia da República (artigo 165.º alínea i) da C.R.P), uma vez que o Fundo ou Caixa de Apoio Notarial é um verdadeiro imposto, e tendo sido fixados por Portaria violam o princípio a hierarquia e prevalência de lei, na medida em que vão contra o preceituado em nos artigos 1.º, 19.º, e 23.º do Estatuto do Notariado e no artigo 173.º, n.º 1, alínea d), do Código do Notariado, bem como, contra o disposto nos artigos 2.º, 3.º, 6.º, 13.º e 15.º da Lei 34/2004.

- Nos termos expostos deve ser declarada a inconstitucionalidade da norma extraída do artigo 26.º, n.º 2, da Portaria n.º 278/13, de 26 de agosto, interpretada no sentido de que, até à constituição do Fundo nela previsto, o processo de inventário deve prosseguir sem o pagamento, pelo IGFEJ, I. P., dos honorários notariais e despesas previstos nos seus artigos 15.º, 18.º e 21.º, nos casos em que o requerente é beneficiário de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos do processo.

- Aquela norma viola o disposto no artigos 2.º, 13.º, 18.º, n.º 1, 20.º, 53.º, 58.º, 59.º, 62.º, 82.º, 86.º, n.º 2, 104.º e 165.º, al i) da CRP, violando também o princípio da hierarquia das normas, e sendo sistematicamente inconstitucional por estar em contradição intrínseca com a conceção global do sistema jurídico designadamente do sistema de acesso ao direito e de apoio judiciário.

A recorrida não contra-alegou.

Cumpre apreciar e decidir.

2 - Delimitação do objeto do recurso

A questão de inconstitucionalidade que importa decidir, no presente recurso, tem por objeto a norma do n.º 2 do artigo 26.º da Portaria n.º 278/2013, de 26 de agosto, interpretado no sentido de que, «até à constituição do Fundo nele previsto, o processo de inventário deve prosseguir sem o pagamento, pelo IGFEJ, IP, dos honorários notariais e despesas previstos nos artigos 15.º, 18.º e 21.º da Portaria n.º 278/2013, de 26 de agosto, nos casos em que o requerente é beneficiário de apoio judiciário, na modalidade...

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