ACÓRDÃO Nº 277/2022
Processo n.º 666/2021
1ª Secção
Relator: Conselheiro José António Teles Pereira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – A Causa
1. Aos arguidos A. e B. (os ora recorrentes) foram aplicadas, por despacho de 06/07/2020, do Tribunal Central de Instrução Criminal, as seguintes medidas de coação: i) [arguido A.] suspensão do exercício de funções em certas empresas; proibição de se ausentar para o estrangeiro; proibição de contactar certas pessoas; proibição de frequentar certos lugares; e prestação de caução; ii) [arguido B.] suspensão do exercício de funções em certas empresas; proibição de se ausentar para o estrangeiro; proibição de frequentar certos lugares; proibição de entrada em certos edifícios; e prestação de caução.
1.1. Desta decisão recorreram os identificados arguidos para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo em vista a revogação de tal decisão relativamente a todas as medidas de coação.
1.1.1. Entretanto, por despacho de 19/01/2021, o Tribunal Central de Instrução Criminal decidiu declarar extintas as medidas de coação de proibição de contactos, de proibição de ausência para o estrangeiro e de proibição de frequentar certos lugares, por despacho de 08/03/2021 declarou extintas as medidas de coação de suspensão do exercício de funções e por despacho de 26/03/2021 levantou a caução aplicada aos arguidos.
1.1.2. Na sequência destas decisões, os arguidos recorrentes apresentaram requerimento nos autos de recurso junto do Tribunal da Relação de Lisboa, dando conta de que não se encontravam já sujeitos a nenhuma das medidas de coação impostas pela decisão recorrida e manifestando o entendimento de que “[…] este tribunal ad quem se encontra legalmente obrigado a proferir uma decisão de mérito sobre o recurso”.
1.1.3. Por decisão singular de 07/04/2021, a senhora desembargadora relatora declarou a extinção do recurso por inutilidade superveniente da lide.
1.1.4. Desta decisão reclamaram os arguidos recorrentes para a conferência, suscitando, inter alia, a inconstitucionalidade da norma contida na alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretado no sentido de considerar supervenientemente inútil o recurso de decisão que aplicou medidas de coação não privativas da liberdade, por força da sua extinção temporal ou revogação na pendência do recurso.
1.1.5. Por acórdão de 02/06/2021, foi a reclamação indeferida, reafirmando-se a inutilidade superveniente da lide. Justificando esta asserção decisória foram aduzidos os fundamentos seguintes:
“[…]
A instância, seja ela o processo principal ou um incidente pendente em primeira instância, seja a instância de recurso pendente num Tribunal superior, extingue-se com a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide (artigo 277.º, al. e) do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º CPP).
Anotando esta norma, escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa o seguinte: ‘a inutilidade superveniente decorre em geral dos casos em que o efeito pretendido já foi alcançado por via diversa, sendo o caso mais típico o do pagamento da quantia peticionada ou, em geral, o cumprimento espontâneo da obrigação em causa ou a entrega do bem reivindicado’.
Também no Código de Processo Civil anotado, 3.ª edição, de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre se pode ler o seguinte: ‘o modo normal de extinção da instância é o trânsito em julgado (artigo 628.º) da sentença final (artigo 607.º) ou do acórdão (artigo 663), ou decisão do relator (artigo 656.º) que o substitua, trate-se de decisão sobre a relação material controvertida ou decisão de absolvição da instância (…). A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio’.
Salvo melhor opinião, é exatamente esta última -o resultado visado já ter sido atingido por outro meio – a situação dos presentes autos. Com efeito, ninguém pode pôr em dúvida que o objeto do presente recurso era o conjunto das medidas de coação aplicadas aos ora recorrentes A. e B., e o objetivo do mesmo era a revogação (ou levantamento) de tais medidas. Ora, o objetivo do recurso foi alcançado: as medidas de coação foram levantadas – não por força da presente instância de recurso, mas por outra causa. O objeto do recurso desapareceu, pois as medidas de coação em concreto aplicadas aos recorrentes deixaram de existir na ordem jurídica portuguesa.
É um exemplo de escola, ou de manual, de uma situação de inutilidade superveniente de um recurso. Se esta Relação fosse mesmo assim apreciar o recurso, uma de duas coisas, em abstrato, aconteceriam: a) a Relação chegaria à conclusão que as medidas tinham sido corretamente aplicadas e que eram para manter, apesar de, incontornavelmente, as mesmas já estarem extintas: inutilidade; b) a Relação daria razão aos recorrentes, e julgaria que as medidas não deviam ter sido aplicadas, concluindo pelo seu levantamento, efeito esse que já estava alcançado previamente: inutilidade.
Em qualquer dos casos a decisão não teria nenhum efeito prático ou jurídico.
Decidindo neste sentido podemos citar, a título de mero exemplo, os Acórdãos deste Tribunal de 07-02-2007 (Proc. 12/07 – 3ª Secção), de 01-02-2007 (Proc. 6787/05 9ª Secção), de 01-02-2007 (Proc. 10/07 – 9ª Secção), e de 25-01-2007 (Proc. 10952/06 – 9ª Secção).
Antes de extrair daqui a única solução jurídica pertinente, temos, porém, de dar uma resposta ao requerimento suprarreferido, no qual os recorrentes, apesar de descreverem objetivamente uma situação de inutilidade superveniente do recurso, afirmam que mesmo assim não prescindem do seu direito constitucional de ver apreciado, em segunda instância, o mérito do Recurso que interpuseram. E invocam que só assim haverá uma tutela jurisdicionalmente efetiva dos seus direitos fundamentais, mormente do direito a todas as garantias de defesa em processo penal, citando duas decisões do Tribunal Constitucional.
Pois bem.
Embora respeitando a posição dos recorrentes, e até compreendendo do ponto de vista subjetivo a mesma, temos de dizer que a situação de inutilidade superveniente supra descrita impede-nos de conhecer do mérito do recurso.
Os dois Acórdãos do Tribunal Constitucional citados pelos recorrentes incidem ambos sobre situações de prisão preventiva, como sabemos, a mais grave de todas as medidas de coação. No caso deste recurso não é essa a medida de coação que está em causa. Logo, a jurisprudência que se possa retirar desses arestos não é diretamente aplicável ao caso destes autos.
Não obstante, temos ainda de dizer que, além dos referidos arestos do Tribunal Constitucional, vários outros do mesmo Tribunal se debruçaram sobre a mesma questão, sempre a propósito da detenção ou prisão preventiva. E, sendo certo que a clara maioria dos mesmos vai no sentido de julgar inconstitucional uma interpretação normativa de onde resulte a inutilidade do recurso ordinário incidente sobre despacho que aplicou a um arguido a medida de coação de prisão preventiva quando, posteriormente, veio a ser proferido despacho que fez cessar tal medida privativa da liberdade, não é menos certo que tal jurisprudência apenas se aplica ao caso da prisão preventiva, e assenta quase sempre, para não dizer sempre, no argumento de que não se pode julgar verificada uma situação de total inutilidade do recurso, porque permanece um interesse residual do recorrente em ver apreciada a questão, para efeitos do direito fundamental a pedir uma indemnização contra o Estado em caso de prisão ilegal (artigo 27.º, n.º 5, da Constituição).
Esse interesse em pedir uma indemnização por privação de liberdade ilegal, não tem aplicação no caso sub judice. O artigo 27.º, n.º 5 da CRP dispõe que ‘a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer’. E, como escrevem Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa anotada, 2.ª edição), em anotação ao artigo em causa, ‘a liberdade que está em causa no artigo 27.º é a liberdade física, entendida como liberdade de movimentos corpóreos, de ‘ir e vir’, a liberdade ambulatória ou de locomoção, e, ainda assim, superiormente delimitada pela liberdade de deslocação e emigração, consagrada no artigo 44.º da Constituição’.
Sendo este direito a pedir uma indemnização por prisão preventiva ilegal o único ‘resíduo’ remanescente do interesse na apreciação do recurso, no entendimento do Tribunal Constitucional, ele não tem aplicação no caso destes autos porque os arguidos nunca foram presos preventivamente.
Note-se, ainda, que a questão tem sido colocada pelo Tribunal Constitucional em termos teóricos, ou hipotéticos, ainda antes de existir algum pedido concreto de indemnização com esse fundamento.
Da mesma forma, no caso dos autos, os recorrentes afirmam que ‘uma decisão final, em segunda...