Acórdão nº 2667/20.4T8PDL.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 14-09-2023
Data de Julgamento | 14 Setembro 2023 |
Case Outcome | NEGADA |
Classe processual | REVISTA |
Número Acordão | 2667/20.4T8PDL.L1.S1 |
Órgão | Supremo Tribunal de Justiça |
I. Relatório
1.A acção
AA intentou ação declarativa de condenação sob a forma comum, contra Lusitânia Vida, Companhia de Seguros, SA e Caixa Económica Montepio Geral, pedindo que: a) A R. seguradora seja condenada a pagar à co-R. as quantias em dívida, a partir do momento em que lhe foi detetada a doença que a incapacitou (dezembro de 2015), no montante de 114.938,85€, devendo consequentemente ser considerada saldada a dívida da A. à R. Montepio, desde aquela altura. E, b) a R. Montepio seja condenada a devolver todos os pagamentos que a A. lhe efetuou depois da data referida e , no montante de 24.229,80€, acrescido de juros desde o respetivo pagamento.
Em fundamento útil , alegou, em síntese , que por escritura de ... . 12.2007, comprou o imóvel identificado nos autos, para o que contraiu um empréstimo na 2ªR., garantido, em caso de morte ou sobrevivência e riscos de invalidez, acidente e outros riscos acessórios que pudessem afetar a esperança de vida, através do contrato de seguro integrado num Plano de Proteção ao Crédito à Habitação que, em ... .11.2007, a 2ªR. celebrou com a 1ªR . Previamente à subscrição do contrato de seguro referido e por orientação / exigência das RR., a Autora foi submetida a consulta médica, em clínico da confiança daquelas , a exames complementares, análises pormenorizadas, designadamente a doenças infeciosas e HIV e RX. Sucede que , em dezembro de 2015 quando lhe foi diagnosticada uma doença autoimune, que a incapacitou em 91%, as RR recusam o cumprimento do seguro, alegando, sem corresponder à verdade, que a Autora na proposta de contrato produziu declarações falsas sobre o seu estado de saúde e padecimento e medicação.
Citadas, as RR. contestaram. A 2ªR., pugnou pela sua absolvição dos pedidos;- a 1ªR., por exceção, invocando a nulidade do contrato de seguro, e por impugnação, pugnando a final, pela procedência da exceção perentória de anulação do contrato de seguro deduzida, com a sua consequente absolvição do pedido; ou caso assim não se entenda, pela improcedência da ação, com a sua absolvição do pedido.
2. A sentença
Prosseguiu a instância os demais trâmites, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, seguindo-se a sentença, que culmina com o seguinte dispositivo - « Em face do exposto: Declaro a nulidade do contrato de seguro que AA celebraram com a Lusitânia Vida, Companhia de Seguros, SA. em ... .11.2007, traduzido na apólice 02.000.266;Em razão dessa nulidade e pelos efeitos que dela decorrem determino que a Lusitânia Vida, Companhia de Seguros, SA. restitua à A. AA todos os montantes que por conta dele recebeu a título de prémio e que se apurará em execução de sentença; Absolvo a R. Lusitânia Vida, Companhia de Seguros, SA. e a R. Caixa Económica Montepio Geral dos pedidos que contra ela a A. formulou. Custas pela A. »
3. A apelação
Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação, pugnando pela revogação do julgado a quo , e consequente condenação da Ré Lusitânia conforme peticionado.
O Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente o recurso e manteve o julgado da primeira instância .
4. A revista
Demonstrando de novo inconformismo com o resultado da lide, a Autora interpôs revista; a motivação do recurso finaliza com as conclusões que se transcrevem:
«- a.- O douto Acórdão recorrido decidiu não apreciar as alegações da recorrente, no que concerne à impugnação da matéria de facto sobre os pontos 32 e 36 da sentença recorrida, dados como não provados, por decidir que tal matéria, nas conclusões, não abrangia a que nas alegações havia sido referida pois que nestas se pretendia impugnar a decisão sobre a matéria de facto constante dos pontos 32 a 39 dos factos não provados e, ainda a do ponto 19 dos factos provados. b.- De facto, por mero lapso, a recorrente ao transcrever aqueles pontos para as conclusões, em vez de escrever de 32 a 39, ficou-se pelo 36, lapso esse que era facilmente detetável pelo que se escrevera a propósito nas alegações, circunstância que permitia ao julgador perceber que se tratava dum erro de escrita. c- Face a tal circunstância caberia ao relator cumprir o disposto no artigo 639.3 do Código do Processo Civil, de modo a mandar esclarecer e completar o que necessário fosse. Optou-se por não apreciar a impugnação das respostas sobre a matéria de facto no seu todo, fazendo-se uma interpretação da lei e da função do recurso que, salvo o devido respeito, não corresponde nem à vontade do legislador nem à letra da lei. d.- Com tal decisão inutilizou-se uma importante parte do recurso levando a uma conclusão injusta e ilegal.e.- Por outro lado, perante omissões que teriam ocorrido na declaração sobre os antecedentes patológicos da saúde da recorrente, como segurada, considerou tal facto como justo fundamento para a nulidade do contrato de seguro, apesar de não haver qualquer nexo de causalidade entre as antigas patologias (aliás todas curadas) e a doença incapacitante que deu à recorrente o direito de exigir o pagamento da quantia segurada, já que teve de ser compulsivamente reformada por doença.f- Todavia, a Lei do Contrato de Seguro que entrou em vigor um par de anos após o contrato de seguro, destes autos, exige esse nexo sem o que são irrelevantes todas as outras patologias, disposição que não pode deixar de ser aplicada ao presente caso, sob pena de se violar o princípio constitucional da igualdade constante em diversos dispositivos constitucionais designadamente do artigo 13 da Constituição, já que aquela Lei é antes do mais interpretativa da legislação anterior e o referido contrato é renovado anualmente. Termos em que: Deverá ser mandado alterar o douto acórdão recorrido, ordenando-se o cumprimento do artigo 639.3 do Código do Processo Civil e o consequente julgamento da decisão sobre a matéria de facto contida nos pontos 32 a 39 da sentença recorrida, consequentemente se decidindo da imprescindibilidade do nexo de causalidade entre as doenças não referidas aquando da feitura do contrato, com aquela que tornou a recorrente incapaz para o trabalho e habilitada a receber a quantia segura, e porque dispensou o nexo de causalidade imperativo entre as doenças não declaradas e a incapacidade que desencadeia o pagamento da quantia segurada, assim se fazendo JUSTIÇA.»
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A Ré recorrida não respondeu às alegações.
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Da Admissibilidade da Revista
Suportado o recurso no exclusivo fundamento da violação das regras processuais pelo Tribunal da Relação na reapreciação da matéria de facto impugnada, admitiu-se a revista nos termos gerais, de acordo com o artigo 671º, nº1, do CPC, no uso dos poderes de requalificação e convolação do requerimento de interposição de revista excecional, conforme despacho inicial da relatora e não suscitou oposição.
Com efeito, na situação de confirmação por unanimidade da sentença pelo acórdão recorrido , o Supremo Tribunal de Justiça vem assumindo na actualidade , que ao intervir na reapreciação das provas e da matéria de facto - artigo 640º - o Tribunal da Relação age no exercício de competências próprias, sem simetria com a decisão da 1.ª instância adrede, e portanto, não se perfilar a caracterização da dupla conforme , 1 e o fundamento da revista por violação ou errada aplicação das leis de processo contemplado no artigo 674.º, n.º 1, al. b), todos do CPC.
Destaca o sumário do Acórdão deste STJ de ...-01-2022 - I –« Nos termos do art. 652.º, n.º 1, al. b), do CPC, deve admitir-se a revista regra na parte do acórdão recorrido em que se recusou parcialmente a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto por não se encontrarem reunidos todos os requisitos previstos no art. 640.º do CPC. II - A rejeição injustificada da impugnação da matéria de facto pelo tribunal da Relação, com fundamento em inobservância dos ónus previstos no art. 640.º do CPC, constitui violação da lei processual que, por ser imputada a esse tribunal, descaracteriza a dupla conformidade decisória. (..)»2.
E, no mesmo sentido o Acórdão do STJ de ... .01.2023 -« I - Não obstante a convergência decisória das instâncias, quanto ao mérito da causa, é admissível recurso de revista, nos termos gerais, do acórdão proferido pela Relação em que seja apontada a existência de erro decisório relativamente à aplicação da lei processual no âmbito da decisão sobre a matéria de facto.II - Encontra-se nessa situação o acórdão da Relação que se limitou a manter a decisão de facto da 1.ª instância e que ignorou outros factos que os recorrentes teriam alegado como passíveis de serem apreciados nessa decisão e sobre os quais não se pronunciou no sentido de os considerar, como provados ou não provados, ou carecidos de sobre os mesmos ser produzida prova, impondo-se a anulação de tal acórdão à luz do disposto nos arts. 662.º, n.º 2, al. c), “ex vi” do art. 682.º, ambos do CPC.»3
Delimitação do objeto do recurso
Conforme jurisprudência sedimentada, o tema decisório é balizado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, importando apreciar as questões nelas colocadas , sem embargo das que sejam de conhecimento oficioso, e excetuadas aquelas cujo conhecimento resulte prejudicado em razão da solução dada a outras - cf. artigos 635º, nº3 a nº5, 639º, nº1, e 608.º, n.º 2, ex vi 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Percorridas as conclusões da recorrente, em interface com o teor do acórdão impugnado, cabe decidir se, ocorre motivo para a rejeição (parcial) da impugnação da matéria de facto, abordando os seguintes tópicos recursivos :
• Os ónus da impugnação da decisão de facto; as conclusões e restrição do objecto do recurso;
• inadmissibilidade do convite ao aperfeiçoamento.
II. Fundamentação
A. Factos
Vem Provado das instâncias :
1. No âmbito da sua atividade comercial celebrou o R. banco com a A. um contrato de mútuo pelo valor de €160.000,00 (cento e sessenta mil euros) dos quais...
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