Acórdão n.º 242/2021

Data de publicação24 Maio 2021
SeçãoParte D - Tribunais e Ministério Público
ÓrgãoTribunal Constitucional

Acórdão n.º 242/2021

Sumário: Decide, com respeito às contas anuais de 2012, julgar extinto, por prescrição, o procedimento contraordenacional relativamente às contraordenações previstas e punidas pelo artigo 29.º, n.os 1 e 2, da Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais (LFP), por referência ao artigo 3.º, n.º 1, alínea b), da LFP; julgar procedente o recurso de contraordenação interposto pelo partido Bloco de Esquerda e pela sua responsável financeira absolvendo os recorrentes das contraordenações consistentes na violação dolosa do dever previsto no artigo 12.º, n.º 1, da LFP, puníveis nos termos do artigo 29.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma.

Processo n.º 675/20

Aos vinte e oito dias do mês de abril de dois mil e vinte e um, achando-se presentes o Conselheiro Presidente João Caupers e os Conselheiros José António Teles Pereira (intervindo por videoconferência), Joana Fernandes Costa, Maria José Rangel de Mesquita, Maria da Assunção Raimundo, Gonçalo de Almeida Ribeiro, Fernando Vaz Ventura, Pedro Machete, Mariana Rodrigues Canotilho, Maria de Fátima Mata-Mouros, José João Abrantes e Lino Rodrigues Ribeiro (intervindo por videoconferência), foram trazidos à conferência os presentes autos.

Após debate e votação, e apurada a decisão do Tribunal, foi pelo Exm.º Conselheiro Presidente ditado o seguinte:

I - Relatório

1 - Nos autos de contraordenação em que são arguidos o Bloco de Esquerda (doravante "BE") e a respetiva Responsável Financeira, Sara Rita Neto Rocha, relativos às contas anuais dos partidos políticos respeitantes ao ano de 2012, a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (adiante referida pela sigla «ECFP») proferiu, em 3 de junho de 2020, decisão pela qual deliberou aplicar ao primeiro arguido a sanção de coima no valor de 10 SMN de 2008, perfazendo a quantia de (euro)4.260,00, pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 29.º, n.º 1, da Lei n.º 19/2003, de 20 de junho (Lei de Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais, doravante «LFP»), e à segunda arguida a sanção de coima no valor de 5 SMN de 2008, o que perfaz a quantia de (euro)2.130,00, pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 29.º, n.os 1 e 2, da mesma lei.

2 - Notificados desta decisão, os arguidos vieram, em 27 de agosto de 2020, interpor o presente recurso para o Tribunal Constitucional, pedindo, em suma, a revogação da decisão condenatória da ECFP.

Defendem os recorrentes, em conclusão das suas alegações, que, de acordo com os artigos 13.º e 15.º do Código Penal, "só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previsto na lei, com negligência", acentuando que no caso de se verificar negligência não existe punição. Mais sustentam que "em 2012 os artigos aplicáveis não eram explícitos, nem existiam decisões a interpretar os mesmos, logo não se pode dizer que exista qualquer tipo de DOLO na ação", e que não foi "feita nem prova do dolo, nem existência de formulação legal que permitisse o conhecimento CABAL e sem qualquer dúvida da aplicação da lei". Afirmam, por fim, que "o que existiu foi negligência e desconhecimento da fórmula de aplicação da lei".

Rematam as suas conclusões de recurso afirmando que "uma inversão do ónus da prova é inadmissível à luz do processo penal, aplicável ex vi artigo 41.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro".

3 - Recebido o requerimento de recurso daquela decisão da ECFP de aplicação de coimas, a ECFP sustentou a decisão recorrida e determinou a sua remessa ao Tribunal Constitucional.

4 - Por despacho proferido em 6 de outubro de 2020, o Tribunal Constitucional admitiu o recurso e ordenou a abertura de vista ao Ministério Público, nos termos do n.º 1 do artigo 103.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»).

5 - O Ministério Público emitiu parecer a respeito do recurso da decisão sancionatória da ECFP, remetendo para o seu anterior parecer, datado de 7 de novembro de 2016, no qual promoveu a aplicação das respetivas coimas, face às ilegalidades e irregularidades já verificadas no Acórdão n.º 420/2016, nada mais requerendo.

6 - Os arguidos, regulamente notificados, não apresentaram resposta ao parecer do Ministério Público.

Cumpre apreciar e decidir.

II - Considerações gerais sobre o novo regime de fiscalização das contas dos partidos e das campanhas eleitorais

7 - A Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril, veio alterar, entre outras, a Lei n.º 19/2003, de 20 de junho (LFP) e a Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de janeiro (Lei da Organização e Funcionamento da ECFP, doravante «LEC»), introduzindo profundas modificações no regime de apreciação e fiscalização das contas dos partidos políticos e no regime de aplicação das respetivas coimas.

Sobre este novo regime foram desenvolvidas algumas considerações no Acórdão n.º 421/2020, salientando-se aqui, pela sua pertinência, as seguintes passagens:

«A alteração mais significativa tem que ver com a competência para apreciar a regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais e aplicar as respetivas coimas, que até essa data pertencia ao Tribunal Constitucional e passou a ser atribuída à ECFP (artigos 9.º, n.º 1, alínea d), da LEC, e 24.º, n.º 1, da LFP).

Nos termos do novo regime legal, caberá ao Tribunal Constitucional apreciar, em sede de recurso de plena jurisdição, em plenário, as decisões daquela Entidade em matéria de regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, incluindo as decisões de aplicação de coimas (artigos 9.º, n.º 1, alínea e), e 103.º-A da LTC, 23.º, n.º 1, da LFP e 23.º, n.º 1, da LEC).»

Assinala-se ainda, neste contexto, a posição que este Tribunal firmou, nos Acórdãos n.os 374/2018 e 375/2018 que se reportam aos processos de contas dos partidos políticos relativas aos anos de 2010 e 2011, a respeito do regime transitório definido na referida Lei Orgânica n.º 1/2018. Em tais arestos, o Tribunal Constitucional plasmou o seguinte:

"Como se disse, no novo regime, cuja matriz se reconduz ao enquadramento do regime contraordenacional consagrado no RGCO, incumbe à Entidade das Contas e Financiamentos Políticos a competência para proferir as decisões antes previstas nos artigos 29.º, 32.º, 33.º e 34.º da LFP, todas integradas na fase administrativa.

A intervenção do Tribunal Constitucional apenas pode ocorrer a jusante, uma vez encerrada a fase administrativa - salvaguardados os casos de impugnação de medidas que afetem direitos e interesses legalmente protegidos, previstos na parte final do artigo 23.º, n.º 2, da LEC -, e em sede de impugnação judicial da decisão final condenatória daquela entidade (artigos 103.º-A da LTC, 23.º, n.º 1, da LFP e 23.º, n.º 1, da LEC, todos na redação conferida pela Lei Orgânica n.º 1/2018).

Significa isto que o sistema normativo que passou a regular o presente processo, na dimensão sancionatória ainda pendente de decisão final, comporta, como ato necessário e prévio à intervenção jurisdicional deste Tribunal, a prolação de decisão administrativa que avalie interlocutoriamente as contas prestadas e, caso apurada a presença de irregularidades, ouvidos os arguidos, se pronuncie sobre a respetiva responsabilidade contraordenacional (artigos 32.º, n.º 1, alínea c) e 33.º, n.os 1 e 3, da LEC, na redação vigente).

A receção desta competência pela Entidade comporta, por seu turno, a consequência de que, quer o juízo do Tribunal que declarou prestadas as contas com irregularidades, quer, a jusante, a promoção do Ministério Público que, a partir dessa discriminação, impulsionou a aplicação de coima, nos termos relatados, ainda que formalmente válidos à face dos comandos normativos vigentes à data em qual foram proferidos, deixaram de assumir, no processo de fiscalização de contas reformado, a eficácia a que estavam preordenadas."

Nesta sequência, o Tribunal expressou o seguinte entendimento:

«Ora, a descontinuidade na ordem jurídica operada pelo regime introduzido pela Lei Orgânica n.º 1/2018, assenta justamente na avaliação da necessidade, por razões fundadas na Constituição, de erradicar a pronúncia inicial do Tribunal Constitucional e a sua projeção de efeitos. Votado o novo regime a assegurar que o Tribunal Constitucional não mais proceda à verificação e discriminação de factos que depois irá julgar, impõe-se concluir que esse seu juízo, no sentido e com o âmbito com que foi proferido no Acórdão n.º 261/2015, deixou de ser admitido no sistema normativo que passou a reger os presentes autos, carecendo dessa sorte de assumir relevo processual no trânsito para a Lei Nova.

Apenas em sede de apreciação de (eventuais) recursos de impugnação da decisão final da Entidade que venha a ter lugar - os quais, note-se, como decorre do RGCO, sobem e são tramitados no processo após a conclusão da fase administrativa -, poderá vir o Tribunal Constitucional a intervir, exercendo a competência que lhe é conferida nos artigos 103.º-A, da LTC, 23.º, n.º 1, da LFP, e 23.º, n.º 1, da LEC.»

8 - Nos presentes autos, que respeitam às contas relativas ao ano de 2012 apresentadas pelo BE, foi prolatado, em 27 de junho de 2016, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 420/2016, pelo qual, no que ora importa, se julgaram prestadas, com irregularidades as contas do BE relativas ao ano de 2012.

O Ministério Público, notificado para o efeito, promoveu a aplicação das sanções correspondentes às irregularidades apuradas pelo Tribunal, tendo o BE, nesse seguimento, exercido o seu direito de audição e defesa.

Tendo entrado em vigor, em 20 de abril de 2018, a referida Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril (artigo 10.º), que, como vimos, introduziu um "novo" regime no processo da fiscalização das contas dos partidos e das campanhas legislativas, aplicável, por força da norma transitória constante do seu artigo 7.º, aos presentes autos, foi, por despacho do Presidente do Tribunal...

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