Acórdão nº 22/17.2T8CLB.C1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 10-12-2020
Judgment Date | 10 December 2020 |
Case Outcome | CONCEDIDA A REVISTA E REPRISTINADA A SENTENÇA DA 1ª INSTÂNCIA |
Procedure Type | REVISTA |
Acordao Number | 22/17.2T8CLB.C1.S1 |
Court | Supremo Tribunal de Justiça |
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. — RELATÓRIO
1. CC, residente em ..., intentou contra AA e mulher BB, residentes em ...., acção declarativa pedindo que os réus sejam condenados a:
a) afectar a fracção autónoma de que são proprietários ao fim de comércio a que a mesma se destina, não a utilizando, nem arrendando ou autorizando, por qualquer meio, a sua utilização por terceiros para a actividade de restauração e bebidas, abstendo-se e exigindo a abstenção de terceiros que a ocupem emitindo fumos, cheiros e ruídos perturbadores da saúde e descanso da autora;
b) a pagar à autora, a título de sanção pecuniária compulsória, o valor diário de 200 € desde a data da sua citação até que a aludida fracção seja afecta ao fim de comércio e não de restauração e bebidas e cessem as emissões de fumos, cheiros e ruídos;
c) a proceder ao levantamento das condutas de extracção de fumo, do “hot”, do respiradouro e dos aparelhos de ar condicionado instalados no edifício sob apreciação, repondo as partes comuns do edifício no mesmo estado em que se encontravam anteriormente à sua instalação;
d) e a pagar à autora o valor de 6000 €, a título indemnizatório, acrescidos de juros de mora vincendos, à taxa legal supletiva, actualmente de 4%, contabilizados desde a data da sua citação e até integral pagamento.
2. Os Réus AA e BB contestaram, alegando abuso de direito, nas modalidades de tu quoque e de venire contra factum proprium, e deduziram reconvenção, pedindo que a Autora seja condenada:
a) a afectar a fracção designada por CC-Um ao fim de garagem a que a mesma se destina, não a utilizando, nem arrendando ou autorizando, por qualquer outro meio, a sua utilização para a actividade de “serviços”;
b) a demolir a instalação sanitária, construída na sua garagem e remover as caixas de esgoto doméstico e todos os canos de ligação ao saneamento principal do prédio.
3. A Autora CC replicou, dizendo que não há, de sua parte, abuso do direito; que, ao exercer a actividade de vidente na sua garagem, não excede o uso residencial da fracção; que há abuso do direito da parte dos autores; e que deve ser absolvida do pedido reconvencional deduzido.
4. O Tribunal de 1.ª instância proferiu sentença que:
I. — julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os Réus de todos os pedidos formulados na petição inicial;
II. — declarou a inutilidade superveniente da lide quanto ao primeiro pedido reconvencional formulado e, em consequência, declarou extinta a instância nessa parte;
III. – julgou totalmente improcedente o segundo pedido reconvencional formulado e, em consequência, absolveu a Autora desse pedido.
5. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação.
6. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:
I – Salvo o devido respeito, que é muito - mal andou o Tribunal a quo.
II – Conforme decorre do disposto nos artigos 154.º e 615.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil, as decisões judiciais proferidas carecem, sempre, de condigna fundamentação, bastante para permitir aos intervenientes processuais alcançar o processo lógico-dedutivo que conduziu à decisão final proferida pelo julgador, sob pena de nulidade, designadamente, da sentença proferida.
III – A mera menção telegráfica, junto dos factos provados, dos meios de prova que conduziram a tal decisão, quando não acompanhada de uma resenha que permita alcançar o raciocínio do julgador que determinou tal conclusão, cominando a necessidade das partes e do Tribunal ad quem ouvirem as gravações dos depoimentos elencados para, subsequentemente, tentar alcançar o raciocínio do julgador, não configura um preenchimento do dever de fundamentação que sobre ele impende, tendo como consequência a nulidade da sentença em crise.
IV – Salvo o devido respeito, que é muito, entende a Autora que, atenta a prova produzida nos presentes autos, foram incorrectamente julgados os seguintes pontos de facto dos “FACTOS PROVADOS” que se impugnam: 6, 24, 25, 28, 29, 34, 37, 47, 48, 49, 50, 54, 56 e 62.
V – Os aludidos pontos de facto deveriam ser julgados nos seguintes moldes, em virtude dos meios probatórios especificamente indicados em sede das alegações supra, que aqui se dão por integralmente reproduzidos: 6 - Essas condutas têm saída última pela chaminé do edifício, passando pelo interior da corete do mesmo, por uma tubagem dedicada exclusivamente à fracção dos Réus, e pela fachada posterior do edifício; 24 - Para darem cumprimento às exigências legais dos requisitos exigidos pelo Município para a actividade de restauração e bebidas, os Réus procederam à execução das obras tidas por necessárias para o efeito na sua fracção, objecto de projecto, e ainda à instalação de um sistema de extracção de fumos na garagem, com saída pela fachada posterior do edifício, mediante prévio recurso à alteração do projecto em sede de “loteamento” e notificação dos seus confinantes ao invés dos condóminos; 25 - Os Réus colocaram condutas de extracção de fumos cuja saída é efectuada por uma tubagem interna, que existe desde raiz, desde a construção do edifício, na sua fracção, independente da tubagem principal da chaminé do edifício, a qual passa pelo interior da corete do mesmo, e tem um diâmetro de 125mm, inferior ao de 180mm verificado no interior da fracção; 28 – Não provado; 29 - As obras mencionadas foram objecto de reclamação em reunião de assembleia de condóminos; 34 - Existem no local onde se situa o restaurante em apreço cheiros, odores e barulhos provenientes do mesmo, os quais perturbam o sossego e bem-estar de quem ali reside, nomeadamente, da Autora, assim como fumos oriundos do sistema de extracção de fumos da fracção dos Réus; 37 - A queixa apresentada foi arquivada, junto da Provedoria da Justiça, por se considerar, erroneamente, que a queixosa “se satisfaz com o conhecimento de estarem observadas as prescrições legais e regulamentares em matéria de segurança e salubridade; 47 - Não provado; 48 - À data da aquisição da fracção pelos Réus, esta estava dotada de raiz, desde a construção do edifício, de uma tubagem independente da principal da chaminé do edifício, a qual passa pelo interior da corete do mesmo, e tem um diâmetro de 125 mm, inferior ao de 180 mm verificado no interior da fracção; 49 - A Autora é conhecida no concelho como vidente, fazendo-o ao longo dos anos, pelo menos, num dia indeterminado da semana e aos sábados, sendo que, até ao ano passado, exercia tal função na garagem afecta à sua fracção, na qual construiu uma divisória onde colocou uma instalação sanitária para se servir dela e facultar tal possibilidade às pessoas que ajudava semanalmente; 50 - A utilização que a Autora deu à sua garagem e, depois, habitação propriamente dita, foi levada a cabo sem autorização dos demais condóminos mas com o conhecimento dos Réus que jamais se manifestaram contra tal comportamento; 54 - A Autora procedeu na garagem à colocação de uma divisória e instalação sanitária com a intenção de que fossem utilizadas por si e por quem ajudava enquanto vidente; 56 - As obras efectuadas pela Autora foram-no sem autorização dos Réus ou demais condóminos do edifício mas com o conhecimento dos Réus que jamais se manifestaram contra as mesmas; e 62 - A Autora recebia como gratificação pela ajuda prestada entregas em espécie – como garrafões de azeite e batatas – e noutras vezes quantias monetárias que medeiam entre os € 5,00 (cinco euros) e os € 30,00 (trinta euros).
VI – Entende a Autora, contrariamente ao Tribunal a quo, que, atenta a prova efectivamente produzida nos presentes autos, deverão ser dados por provados os seguintes pontos de facto dos “FACTOS NÃO PROVADOS” que igualmente se impugnam: 1, 5, 7, 8, 11, 12, 15 e 34.
VII – Devendo ser julgados nos seguintes moldes, em virtude dos meios probatórios especificamente indicados em sede das alegações supra, que aqui se dão por integralmente reproduzidos: 1 – A Autora aquando da aquisição da sua fracção autónoma tinha a expectativa de que na fracção dos Réus não viesse a ser instalado um restaurante; 5 – A Autora vê a sua fracção e o interior do edifício constantemente invadidos de maus cheiros provenientes do sistema de extracção propriedade dos Réus; 7 – O restaurante instalado na fracção propriedade dos Réus mantém-se aberto em dias de festa, até, pelo menos, as 23h00; 8 – Em consequência, a Autora vê a sua tranquilidade perturbada com ruído efectuado pelos clientes e funcionários, no período nocturno, designadamente, aquando da limpeza e arrumação do estabelecimento no final da jornada de trabalho; 11 – Ocorreram infiltrações de água pelo tecto e paredes da garagem da Autora; 12 – Causando, inevitavelmente, o levantamento da tinta ali aplicada e do estuque e o enegrecimento de tais estruturas, carecendo, para a sua reparação, de ser efectuada a sua pintura, com duas de mão, com tinta plástica de igual qualidade à ali existente, com custo nunca inferior a € 500,00 (quinhentos euros); 15 – A Autora tem dificuldade em dormir em virtude do ruído causado pelo funcionamento do restaurante, havendo, inclusivamente, alterado a sua rotina; e 34 – A esplanada do restaurante em apreço é acessível através de uma zona comum a todos os condóminos.
VIII – A aplicação da figura do abuso de direito, prevista no artigo 334.º do C.C., de criação jurisprudencial francesa, exige que o excesso dos limites enunciados seja manifesto, ou seja, “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”, estando reservada às hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, não se podendo olvidar o seu carácter excepcional, na medida em que permite afastar um direito legalmente previsto e reconhecido à parte em questão tendo por base um particular circunstancialismo apresentado – vide, nesse...
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