Acórdão nº 209/2002.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 19-12-2006

Data de Julgamento19 Dezembro 2006
Número Acordão209/2002.C1
Ano2006
Órgão Tribunal da Relação de Coimbra
ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

A... e esposa, B..., residentes na Rua Nª Sª dos Milagres, 58, em Oliveira de Frades, propuseram a presente acção, sob a forma de processo ordinário, contra “C...”, com sede em S. Vicente de Lafões, concelho de Oliveira de Frades, pedindo que, na sua procedência, a ré seja condenada a reconhecer aos autores o direito de servidão das águas da “Mina da Piteira”, em favor do seu prédio urbano, para gastos domésticos, a reconhecer que o prédio da ré, denominado “Piteira” ou “Peteira”, se acha onerado com uma servidão de aqueduto, subterrânea, para a passagem dessa água, em direcção ao prédio dos autores, a, reconhecidos tais direitos, repor a situação, no estado anterior, através da reparação e recolocação do tubo plástico que foi cortado e que conduzia a dita água para o prédio dos autores e a satisfazer aos autores os prejuízos cujo cômputo, não apurado, relegam para liquidação em execução de sentença, alegando, para o efeito, e, em resumo, que são donos e legítimos possuidores do prédio urbano, infradiscriminado, e a ré proprietária de um outro prédio, este rústico, designado “Piteira” ou “Peteira”, que confina de Norte com o autor e outros, Nascente e Sul com a firma “Avivalta” e Poente com a estrada, tendo os autores, por seu turno, adquirido a outra fracção autónoma deste prédio rústico, que confronta, a Nascente, com a estrada.

Os autores utilizam, para gastos domésticos do seu prédio urbano, pelo menos, desde 1978, a água da mina que se situa mais a montante das duas que existem no prédio rústico, denominado “Piteira” ou “Peteira”, que limparam e onde colocaram uma canalização plástica subterrânea, que conduz a água, desde a referida mina, ao longo deste prédio, até um depósito interior, de onde sai para gastos domésticos, utilizando essa água, que lhe foi dada pelo anterior proprietário do prédio, tal como o direito de o atravessar.

Os autores utilizam essas águas, há mais de 20 anos, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, na convicção de exercerem um direito próprio.

Acontece que a ré terraplenou o “Piteira”, tendo destruído a canalização plástica dos autores, que se viram forçados a recorrer à água da Câmara.

Na contestação, a ré alega, em síntese, que as águas das “Minas da Piteira” foram destinadas à Quinta de Santo António, tendo, em tempos, sido conduzidas para o Centro de Abate da “Uniávila”, mas que foi a Câmara Municipal que atravessou o prédio daquela com uma circular.

A sentença julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu a ré dos pedidos formulados pelos autores.

Desta sentença, os autores interpuseram recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1ª - Desde pelo menos 1978 e até 2002, data da propositura da acção, a água da “Mina da Piteira” correu por um tubo plástico para o efeito colocado subterraneamente desde a boca da mina até ao prédio dos autores que construíram, então, mesmo um tanque.

2ª - Desde a mesma altura até 1990, data da extensão da rede de abastecimento domiciliário de água, os autores gastaram, para os seus gastos domésticos, rega e dessedentamento dos animais domésticos, apenas água da “Mina da Piteira” que lhes chegava através da canalização; depois dessa data, o consumo dessa água restringiu-se ao quintal e aos animais domésticos.

3ª - A água da “Mina da Piteira” foi-lhes (aos autores) dada pelo anterior proprietário do prédio “Piteira” que a mandou abrir há cerca de 50 anos.

4ª - E desde a altura dessa doação (antes de 1978), os autores usaram-na em exclusivo, pública, pacífica e ininterruptamente, portanto durante mais de 24 anos.

5ª - Durante esse mesmíssimo tempo – 24 anos pelo menos – os autores colocaram subterraneamente e mantiveram (repararam, desencravaram, substituíram parcialmente, etc.) um cano plástico para condução dessa água desde a Mina da Piteira até ao seu prédio, em permanência e sem intermitências.

6ª - O tubo era visível aos olhos de quem o quisesse ver – foi visto e respeitado como tal – pelo menos nas suas extremidades, e transportava a água desde a nascente até ao depósito da habitação e depois até ao tanque dos autores.

7ª - Quer as obras de colocação do tubo, de limpeza da mina, de construção do tanque, de desencravamento do cano, foram obra dos autores para aquele fim especifico – condução das águas da Mina da Piteira.

8ª - Fosse a água da Mina da Piteira afecta à Quinta de Santo António – que não é, sendo-o antes a da Mina dos Corvos – ou, afecta por força da doação verbal e tradição subsequente para o prédio dos autores, sempre o “Piteira”, da ré, está e estará onerado com uma servidão de água nas “Minas da Piteira”, ora e na acção, a favor deste (prédio dos autores).

9ª - Esse ónus não foi levantado e nem se acha extinto pelo decurso do prazo, pelo não uso ou sequer por abandono do titular.

10ª - Igualmente se acha constituída uma servidão de aqueduto, subterrânea, constituída também por usucapião.

11ª - A prova existente nos autos é de molde a justificar a procedência total da acção, pelo que, a sentença deverá ser revogada e substituída por outra que assim a (acção) julgue.

Defendem ainda os autores, no corpo das alegações, que devem merecer resposta positiva os pontos nºs 3, 4 e 5, 7, 8 e 9 e 12 a 17, inclusive.

Nas suas contra-alegações, os réus entendem que deve negar-se provimento à apelação, mantendo-se inalterada a sentença recorrida, aceitando, porém, a reapreciação da prova gravada, apesar deste objectivo não constar, «expressis verbis», das conclusões da apelação, sustentando ainda que os autores devem ser condenados como litigantes de má-fé, em multa, e indemnização não inferior a 2500€.

*

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

As questões a decidir, na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:

I – A questão da alteração da decisão sobre a matéria de facto.

II – A questão do direito de servidão.

I

DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Os autores sustentam que devem conhecer resposta positiva os pontos nºs 3, 4, 5, 7, 8, 9 e 12 a 17, inclusive, da base instrutória, relativamente aos quais o Tribunal «a quo» proferiu resposta negativa.

Resulta da audição da prova objecto de gravação, no que contende com os pontos da matéria de facto em que os autores suscitaram a respectiva alteração, e bem assim como com os demais que com aqueles se encontram, intimamente, conexionados, que a testemunha João Correia disse que, em 1987, trabalhou para o autor quando este construiu a sua moradia, e que, nessa altura, “foi ao local, por duas vezes, desentupir os tubos da canalização, por causa das infiltrações que a tapavam. Então, já corria água das minas pelo cano que passava perto da casa da testemunha Carlos Farreca Pinto e vinha por aí abaixo, a direito, e caía para o tanque existente na esquina da casa dos autores, e deste tanque ia para o quintal para regar. Uns largos anos depois, quando andou a fazer a casa desta testemunha, vizinho dos autores, retiravam água daquele tanque. Que só limpou uma mina, a Piteira, que ficava acima da casa do mencionado Carlos Farreca, a cerca de 300 metros, e a 400 e tal metros da casa dos autores”.

A testemunha Carlos Oliveira disse que, na qualidade de bombeiro, “foi, algumas vezes, desentupir o tubo de água que vinha para casa dos autores, devido a infiltrações de raízes e folhas, a primeira das quais, há 10 ou 12 anos. Que, na parte de baixo, havia uma mina grande, de bastantes anos, que dava para entrar uma pessoa, que tinha um tubo de água que caía num tanque anexo, encostado à casa do autor, da parte de trás, no quintal da sogra, seguindo os canos para a cozinha, para gastos domésticos. A água dava um caudal de ¾ ou uma polegada e que, depois de desobstruir a mina, a água logo corria na cozinha, acrescentando que agora o terreno foi terraplanado”.

A testemunha Abílio Lopes, encarregado de obras da Câmara Municipal de Oliveira de Frades, e, anteriormente, empregado da Uniávila, disse que “foi à Piteira fazer a ligação da água para a Uniávila, primeiro, e, depois, há mais de 24 anos, para o autor, desviando a água que ia para a Uniávila para passar a correr para o autor. A mina era em pedra, com mais de 55 anos, e tinha óculo. Andou lá pessoal a enterrar os tubos quando a testemunha fez a ligação para a casa do autor, passando a água a cair na casa deste, pois era a sua única água, já que não tinha água da Câmara. A água da mina esteve a correr para a Uniávila, que a pediu por favor, por a empresa a não ter, desde 1973 até data que não recorda. Quando ligou a água para o autor já não corria para a Uniávila. Ligou a água logo à saída da mina, admitindo tê-la ligado no mesmo cano da Uniávila, mas que a água já não corria para esta”.

A testemunha António Santos, que foi madeireiro e construtor civil, disse que “a mina (a de cima) era de boca aberta e que os canos conduziam a água da mina para, ao que supõe, a casa do autor, e que os tubos não iam para a Uniávila, mas cá para baixo. Que o autor ofereceu-lhe os canos existentes, por cima da terra, que tinham conduzido água, e que estavam rebentados”.

A testemunha Abel Loureiro, residente no lugar da Piteira e sobrinho por afinidade do autor, disse que “a água para o autor vinha da mina, através do tubo que passava junto à berma do caminho, entrava para casa do autor, caindo do tubo no tanque da casa, existente no quintal...

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