Acórdão nº 20121/16.7T8PRT.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 21-03-2019

Data de Julgamento21 Março 2019
Case OutcomeCONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Classe processualREVISTA
Número Acordão20121/16.7T8PRT.P1.S1
ÓrgãoSupremo Tribunal de Justiça

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. AA e BB intentaram, em 13 de Outubro de 2016, a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC, S.A., pedindo a sua condenação a pagar-lhes indemnização no montante de € 190.020,00, acrescido de juros de mora desde a citação e até integral pagamento.

Para tanto, e em síntese, alegam que:

- Cerca das 00,15 horas do dia 29 de Outubro de 2015 ocorreu um acidente de viação na AE-20, freguesia de ..., na cidade do …, em que interveio o veículo ligeiro de passageiros -AO, propriedade de DD e conduzido pelo mesmo, em que a mãe dos AA., EE, foi atr...ada;

- A mãe dos demandantes circulava no sentido ..., conduzindo o veículo automóvel marca ..., modelo ..., com a matrícula BX-..., por conta e no interesse do proprietário da viatura, FF, com velocidade moderada;

- A mãe dos AA., logo que tomou a posição na referida faixa, teve o veículo imobilizado por avaria mecânica pelo que, de imediato, ligou os sinais intermitentes, olhou para o retrovisor para sair da viatura e ir à mala traseira retirar o colete reflector e o triângulo de sinalização, verificando que nenhum veículo se aproximava, mantendo as luzes ligadas, o que era visível a mais de 300 metros;

- Quando a mãe dos AA. saiu da viatura e se encontrava preparada para abrir a mala para retirar o triângulo de sinalização, foi colhida de forma violenta pelo veículo de matrícula -AO que circulava a uma velocidade superior a 100km/h;

- Em consequência do atropelamento, a mãe dos AA. sofreu danos graves que resultaram na sua morte, aos 55 anos de idade;

- Era saudável e fisicamente bem constituída, expansiva e alegre, gozando de estima de quem com ela convivia, respeitada e respeitadora;

- A mãe dos AA. sentiu a eminência da morte o que lhe causou agonia;

- Os AA. receberam a notícia do falecimento com enorme choque, tristeza e amargura.

A R. contestou por impugnação, concluindo pela improcedência da acção.

A fls. 114 foi proferida sentença que decidiu o seguinte:

“Pelo exposto, julgando-se parcialmente procedente a presente acção, condena-se a Ré a pagar aos autores as seguintes quantias: 1.200 EUR em conjunto aos dois autores; 3.400,00 para cada um e 12.000EUR em conjunto aos dois autores, absolvendo-se a ré do restante pedido”.

Inconformados, AA. e R. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a modificação da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de fls. 175 foi mantida a matéria de facto e, a final, foi proferida a seguinte decisão:

“Nestes termos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar improcedente o recurso dos apelantes e procedente o recurso da apelante – Companhia de Seguros – e, em consequência, revogam a decisão recorrida absolvendo-a do pedido.”

2. Vêm os AA. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

“I - "Vocacionando-se a nossa responsabilidade civil para uma função, em certa medida, preventivo-repressiva, mas sobretudo reparadora, existem várias matérias em relação às quais, por força do elevado risco que introduzem na sociedade, se impõe a necessidade de uma socialização da responsabilidade que delas poderá decorrer. É exemplo disso a matéria em análise, em virtude da qual, enquanto actividade imprescindível à vida social, a generalidade das pessoas acaba por ser forçada a lidar de perto com a crescente circulação de veículos e a expor-se aos riscos e perigos a ela associados, exigindo-se uma especial atenção aos prejuízos que uma tal actividade poderá acarretar.

II- Deste modo, para que um veículo possa circular a responsabilidade civil emergente da circulação desse veículo terá de ser, forçosamente, transferida para uma seguradora, que irá satisfazer o direito de ressarcimento dos lesados com base nos prémios pagos pelo tomador do seguro. Este contrato de seguro é, portanto, um contrato aleatório e bilateral, recaindo sobre o tomador do seguro a obrigação de pagamento do prémio, obrigação esta que é certa, e sobre a seguradora a obrigação de cobertura dos danos causados a terceiros, enquanto obrigação futura e incerta. O seu carácter obrigatório determina uma interligação com as normas do Código Civil relativas à responsabilidade emergente de acidente de viação, na medida em que a respectiva efectivação resulta da relação processual entre a seguradora do lesante e os lesados, pois através deste contrato as seguradoras passam a garantir uma obrigação em relação à qual, de acordo com as normas do Código Civil, é responsável o tomador do seguro, fenómeno ao qual se dá o nome de "socialização do risco" pois quem vai cobrir os danos provocados é a seguradora, e não o causador desses danos.

III - A socialização desta responsabilidade visa, através da obrigatoriedade de seguro - obrigatoriedade que, note-se, corresponde ao seguro mínimo que abrange os danos quanto a terceiros, não obstante a possibilidade de contratar uma cobertura mais alargada - garantir que o lesado num acidente de viação irá, efectivamente, alcançar a indemnização a que tem direito se, e quando, de acordo com as normas do nosso Código Civil, se concluir pela existência de uma obrigação de indemnizar do segurado e que, consequentemente, acarreta a responsabilidade da seguradora na exacta medida em que aquele seria responsável, mas até ao limite do valor convencionado. O seguro obrigatório exerce uma função de garantia que viabiliza a protecção dos lesados em termos práticos e daí que se exija um cuidado especial no tratamento desta matéria no sentido de harmonizar as normas do nosso Código Civil com a existência de um seguro obrigatório, para que uma potencial desarmonia não implique a quebra desta protecção.

IV - É neste seguimento que nos é permitido constatar uma evolução das Directivas Comunitárias no sentido de avizinhar as legislações no quadro jurídico do regime de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. Surgem-nos as seguintes Directivas:

V - A Directiva do Conselho n° 72/166/CEE de 24 de Abril de 1972 preocupou-se com a instituição de um seguro obrigatório de responsabilidade pela circulação de veículos terrestres, admitindo a existência de certas derrogações pelas respectivas legislações;

VI - A Directiva do Conselho n°84/5/CEE de 30 de Dezembro de 1983 teve como foco a imposição de uma extensão mínima do seguro obrigatório por forma a garantir a todos os lesados uma indemnização suficiente, independentemente do Estado-membro onde o sinistro ocorra;

VII - A Directiva do Conselho n°90/232/CEE de 14 de Maio de 1990 concentrou-se na cobertura do seguro, passando a incluir os passageiros dos veículos enquanto vítimas potenciais particularmente vulneráveis;

VIU - A Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho n°2000/26/CE de 16 de Maio de 2000 teve em vista a permissão de uma rápida regularização do sinistro pelo lesado;

IX - A Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho n°2005/14/CE de 11 de Maio de 2005 veio alargar a cobertura do seguro obrigatório automóvel mesmo perante aqueles passageiros que sabiam, ou deviam saber, que o condutor estava sob a influência de álcool ou outros tóxicos na altura que se deu o sinistro, assim como em relação aos chamados "participantes mais fracos", como são os utilizadores não motorizados (caso dos peões e ciclistas).

X - A Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho n°2009/103/CE de 16 de Setembro de 2009 procedeu à consolidação das directivas anteriores, que deixaram de estar em vigor.

XI - Dando-se cumprimento aos princípios comunitários respeitantes a esta matéria, surgiu, entre nós, o Decreto-Lei n°522/85 de 31 de Dezembro relativo ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, diploma que foi integralmente revogado pelo Decreto-Lei n°291/2007 de 21 de Agosto por força da transposição parcial para a ordem jurídica interna da Directiva n°2005/14/CE.

XII - Tendo em conta toda a evolução descortinada dúvidas não existem para a comprovação de que o seguro automóvel centrar-se-á, contrariamente à lógica do nosso Código Civil, não tanto numa perspectiva de responsabilização do lesante, mas já no ângulo do ressarcimento do lesado, consequência da carência de uma protecção social que será alcançada através do endosso dessa responsabilidade à seguradora.

XIII - Por sua vez, a nossa responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação assenta, em primeira linha, num regime de responsabilidade civil por factos ilícitos, baseada na culpa do lesante e prevista nos arts. 483°ss. do Código Civil e, em segunda linha, num regime de responsabilidade objectiva ou pelo risco, baseado no risco/perigo da circulação de veículos e previsto nos arts. 503°ss. do Código Civil, o qual, prescindindo da culpa e da ilicitude, tem essencialmente por base o nexo causal pois a utilização de veículos, embora indispensável à vida do homem, acarreta um perigo iminente, pelo que os danos que dessa circulação resultarem terão de ser assumidos por aquele que dessa circulação usufrui.

XIV - Tendo em conta que o direito comunitário integra o ideário comum da nossa responsabilidade civil, estamos sujeitos a uma interpretação conforme aquelas directivas, pelo que não obstante a liberdade de consagração do regime de responsabilidade civil emergente de acidente de viação que se nos afigure o mais apropriado, nunca se poderá perder de vista o fim que está na base da criação deste seguro obrigatório, sendo-nos vedado conter o seu efeito útil. Deste modo, existe a preocupação de garantir uma uniformidade nos standards de tutela dos potenciais lesados em acidentes de viação, daí resultando, quanto a determinadas normas da nossa responsabilidade por acidente de viação, certos problemas específicos, nomeadamente ao nível da sua conformidade com a lógica e sistema do seguro obrigatório.

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