Acórdão nº 20/22.4T8VVC-A.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 13-09-2022
Data de Julgamento | 13 Setembro 2022 |
Case Outcome | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA |
Classe processual | REVISTA |
Número Acordão | 20/22.4T8VVC-A.E1.S1 |
Órgão | Supremo Tribunal de Justiça |
ACORDAM, em nome do POVO PORTUGUÊS, os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:
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RELATÓRIO
I – INTRODUÇÃO
1) Por apenso ao processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas à criança AA, instaurado pelo Ministério Público em 4 de fevereiro de 2022 (processo 20/22.4T8VVC) no Juízo de Competência Genérica ..., em 9 de março de 2022, requereu BB contra CC, invocando o disposto nos artigos 8.º e seguintes da Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia a 25 de outubro de 1980, que fosse ordenasse o imediato regresso da criança a França.
Para tanto, alegou em síntese:
Que a criança AA nasceu em França em .../.../2019, sendo registada como filha do requerente e da requerida.
Que a criança AA sempre residiu em França, sendo certo que após o termo do relacionamento entre o requerente e a requerida, passou a vigorar, por acordo verbal, um regime de residência semanal alternada em relação ao exercício das responsabilidades parentais e à custódia da criança.
Mais alega que a requerida, sem consentimento nem conhecimento do requerente, trouxe a criança AA para Portugal em 22 de janeiro de 2022, onde a requerida passou a viver, continuando o requerente a residir em França.
2) Teve oportunamente lugar uma conferência entre os pais da criança na qual foi estabelecido, para vigorar na pendência do processo, um regime de contactos entre o requerente e a criança.
3) A requerida contestou o pedido formulado alegando, em síntese, o seguinte:
Que o meio processual adoptado pelo Requerente não é o legalmente estipulado na Convenção de Haia e no Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro, uma vez que, ao ter recorrido aos Tribunais Portugueses, o requerente reconheceu que a residência habitual da criança corresponde a Portugal e não em França;
Que não se está em presença de uma deslocação ou retenção ilícita da criança AA porquanto não se verificou a violação do direito de guarda, já que as responsabilidades parentais relativas à criança não foram ainda reguladas;
Que sempre existiria fundamento para decidir a recusa de regresso da criança AA a França porquanto, dada a sua tenra idade, a separação da progenitora e guardiã com quem sempre viveu, lhe pode causar um dano psíquico intolerável, por implicar a supressão na sua vida quotidiana das suas figuras familiares de referência e sua principal ligação afetiva.
4) Teve oportunamente lugar a audiência de julgamento.
Foi, na sequência, proferida sentença que, depois de reconhecer a competência internacional dos Tribunais Portugueses e a existência de uma situação de deslocação ilícita da criança tutelada pela Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, decidiu “ordenar o imediato regresso a França da criança AA, nascida a .../.../2019, em França, filha de CC e de BB, atualmente a viver com a progenitora em (…) ..., devendo ser entregue ao cuidado do seu progenitor.”
5) Inconformada a requerida CC, interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora.
Por acórdão proferido a 30 de junho de 2022 o Tribunal da Relação de Évora decidiu, por maioria e com declaração de voto discordante, manter integralmente a sentença de primeira instância impugnada.
É do seguinte teor o sumário do referido Acórdão:
“I – Não estando em causa a regulação das responsabilidades parentais, mas sim o pedido de regresso a França de uma criança deslocada para Portugal pela sua progenitora, os tribunais portugueses são os competentes para apreciar aquele pedido.
II – A deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando se verifiquem dois pressupostos: primeiro, a violação de um direito de custódia atribuído pelo Direito do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; segundo, o exercício efetivo desse direito no momento da transferência ou da retenção (cfr. artigo 3º, 1º §, als. a) e b) da Convenção da Haia de 1980 e artigo 2º, nº 11, do Regulamento (CE) 2021/2003).
III – O regresso imediato da criança em situação de deslocação ou retenção ilícitas, preconizado pela Convenção, sofre, no entanto, desvios sempre que se mostrem verificadas as circunstâncias previstas nos seus artigos 12º, 13º e 20º. Apuradas estas, pode haver lugar a uma decisão de recusa de regresso da criança.
IV – Não se apurando nenhuma daquelas circunstâncias, nomeadamente a existência de uma situação de risco grave para o regresso a França da criança AA, local da sua residência habitual, não pode ser recusado o regresso.
V – Não deve confundir-se o presente procedimento com a regulação do exercício das responsabilidades parentais, em cuja sede se decidirá a qual (ou se a ambos) dos progenitores será confiada a guarda da criança”.
Por sua vez a declaração de voto discordante salienta a existência no caso de fundamento para recusa do regresso da criança a França e sua consequente entrega ao progenitor ali residente dado que tal representa a criação de uma situação intolerável de privação forçada do convívio e do acompanhamento da criança com a sua progenitora e irmã, sendo desconhecidas as condições em que actualmente vive em França o seu progenitor (artigo 13.º alínea b) da Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças).
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II – A REVISTA
1) Sempre inconformada com a decisão proferida em segunda instância a requerida CC interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo apresentado nas respectivas alegações as seguintes CONLUSÕES:
“1ª. O Requerente/Pai, por apenso à regulação das responsabilidades parentais requeridas pela Requerida, ora Recorrente, requereu, “nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 8º e seguintes da Convenção sobre os aspectos civis do rapto internacional de crianças, concluída em Haia em 25 de outubro de 1980 e aprovada pelo Decreto do Governo nº 33/83, de 11 de Maio, publicado no D.R., 1 série, nº 108, de 11/05/83, doravante intitulada Convenção de Haia de 1980, o regresso a França da criança AA”.
2ª. O pedido formulado pelo Requerente é apreciado pela Convenção de Haia, de 25 de outubro de 1980, e pelo Regulamento CE nº 2201/2003 do Conselho relativo à Competência, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Matrimonial e de Responsabilidade Parental.
3ª. Os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para análise da situação em apreço.
4ª. Assim, o Requerente, ao ter dado início ao presente procedimento em Portugal, no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Competência Genérica ..., o Requerente/Pai, violou, designadamente, o estipulado no identificado artigo 10º do Regulamento CE nº 2201/2003 do Conselho.
Sem prescindir,
5ª. O facto de o Requerente ter considerado o Tribunal Judicial da Comarca de Évora – Juízo de Competência Genérica ... – como o internacionalmente competente para apreciar acerca do regresso, ou não, da menor a França, e o mesmo ter sido reconhecido competente -, tal não pode deixar de significar que o Requerente considera e reconhece que, em prol dos princípios da proximidade, da ligação particular e do superior interesse da menor, são os Tribunais portugueses que, atenta a situação em concreto – residência habitual, integração familiar, melhores condições de vida e estabilidade –, os competentes para apreciar a questão.
6ª. Proximidade e ligação particular que, inclusivamente, a matéria dada como provada nestes autos veio comprovar – cfr. designadamente os pontos 15, 16,30, 31, 32, 33, 34, 35, 36 e 38 dos Factos Provados.
7ª. Assim, o Requerente/ Pai implicitamente reconheceu, apesar de não ter alegado, que se verifica uma das situações de excepção previstas no artigo 10º do Regulamento CE nº 2201/2003 do Conselho, na medida em que reconhece a residência habitual em Portugal, reconhece a proximidade e a integração da menor em Portugal e, consequentemente, o que a residência em Portugal representa no superior interesse da menor.
8ª. Caso contrário, o Requerente teria recorrido aos Tribunal do Estado membro de origem, ou seja, de França.
9ª. Veja-se, a propósito e neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.10.2017, in proc. 6484/16.8T8VIS.C1.
Posto isto,
10ª. Na tomada da decisão acerca do regresso ou não regresso imediato da menor a França, importa analisar, sucessivamente, primeiro, se estamos perante uma deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita e, na afirmativa, se no caso, se verificam alguma ou algumas das situações de excepção previstas, designadamente, no artigo 13º da Convenção de Haia.
11ª. Entende a Recorrente que não resultou provada a deslocação ou retenção ilícita da criança, porquanto não se provou, de forma isenta de dúvidas, a violação do direito de guarda.
12ª. Prova que, no caso, cabia ao Requerente/Pai fazer, mas, contudo, não fez.
13ª. O Requerente/Pai, para atestar o seu direito de guarda em relação à menor juntou aos autos cópia do Código Civil Francês, sem referência a qualquer artigo em concreto e
14ª. juntou aos autos um documento, aliás impugnado, onde consta que a menor frequentava uma creche – cfr. doc. a fls. – documento que, a ser porventura verdadeiro, nem sequer esclarece desde quando é que a menor frequentava a creche.
15ª. O Requerente não arrolou qualquer testemunha que consigo convivesse em França e, nessa medida, pudesse relatar ao Tribunal o que poderia ser a vivência da menor em França.
16ª. Atenta a falta de alegação e prova de factos, por parte do Requerente/Pai, para fundamentar a guarda pelo mesmo Requerente, o Tribunal recorrido para fundamentar a sua decisão, remeteu para a sentença proferida em 1ª instância onde se fez constar que “tendo o tribunal de perscrutar qual o regime legal, à luz do direito Francês, que rege o exercício das...
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