ACÓRDÃO N.º 20/2010
Processo n.º 638/2008
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
(Conselheira Ana Guerra Martins)
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A. intentou, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras e contra B., acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de mútuo nos termos do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro.
Citada para contestar, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 1.º do Regime dos Procedimentos anexo ao referido Decreto-Lei, veio a contestação oferecida pela Ré a ser julgada extemporânea, em despacho datado de 19 de Outubro de 2007. Considerando que a Ré apresentara a sua contestação após o termo do prazo legalmente fixado para tanto (n.º 2 do artigo 1.º do Regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98); que, salvo o caso de justo impedimento, devidamente invocado, o decurso do prazo peremptório extingue o direito à prática do acto (artigos 145.º, n.º 3 e 146.º do Código de Processo Civil); e que se não verificara, in casu, o justo impedimento invocado pela Ré, o Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras ordenou, após ter julgado extemporânea a contestação, o seu desentranhamento dos autos e a sua devolução à representante da Ré.
Deste despacho interpôs B. recurso de agravo para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Nas suas alegações de recurso, sustentou fundamentalmente B. que, tendo sido a citação para a contestação efectuada em pessoa diversa do citando, nos termos do n.º 2 do artigo 236.º e do n.º 2 do artigo 240.º do Código de Processo Civil, a secretaria do tribunal lhe não comunicara o facto dentro do prazo cominado pelo artigo 241.º do mesmo Código, o que, constituindo um dado notório, teria desde logo inviabilizado a possibilidade de realização atempada da sua defesa.
2. Por Acórdão datado de 17 de Junho de 2008, o Tribunal da Relação concedeu provimento ao agravo do despacho que havia considerado extemporânea a contestação, revogando-o. Fê-lo, no entanto, por recusar a aplicação da norma constante do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, “na parte em que determina a não aplicação da dilação prevista no artigo 252.º-A, n.º 1, alínea a) do CPC no caso de citação feita em pessoa diversa do réu nos termos do artigo 236.º, n.º 2, do mesmo Código”.
O juízo de inconstitucionalidade, fundamentado em violação do disposto nos artigos 20.º, n.º 4 (processo equitativo); 18.º (proporcionalidade) e 13.º (igualdade) da Constituição da República, fez-se nos seguintes termos:
(…)
A consideração da extemporaneidade da contestação tem vindo a ser tratada nos autos como uma questão de justo impedimento; mas, em nosso modo de ver, incorrectamente.
Com efeito não se nos afigura que esteja em causa a discussão de um evento que obste à prática atempada de um acto de que se tem perfeita consciência e conhecimento que pode ser praticado, que é o pressuposto da noção de justo impedimento, mas antes a contagem de um prazo.
(…)
Mas o que verdadeiramente está em causa é um outro aspecto, que importa afrontar directamente.
Se atentarmos às regras gerais sobre a citação (designadamente os artigos 236.º, 252.º-A e 145.º do CPC), e partindo da data da assinatura do aviso de recepção, a contestação haveria de ser considerada apresentada em prazo (os 5 dias de dilação remetem o início do prazo para 12SET, terminando o respectivo prazo de 20 dias em 2OUT; 3 e 4OUT foram os primeiro e segundo dias úteis subsequentes; 5, 6 e 7OUT (feriado, sábado e domingo) foram dias não úteis; e 8OUT foi o terceiro dias útil subsequente).
Ocorre, porém, que o art.º 4.º do DL 269/98, 1SET, determina que à contagem dos prazos constantes no regime da acção especial para cumprimento de obrigação pecuniária são aplicáveis as regras do CPC, “sem qualquer dilação”. E é por aplicação dessa norma ao caso concreto que se levanta a questão da extemporaneidade da contestação.
Afigura-se-nos, no entanto, que tal norma, na medida em que proíbe que o prazo de contestação só comece a contar depois de decorridos cinco dias após a entrega da carta de citação a terceira pessoa que não o citando, afronta as normas constitucionais, devendo ser recusada a sua aplicação, nos termos do art.º 204.º da Constituição.
A Constituição da República estabelece no seu art.º 20.º, n.º 4, o direito ao processo equitativo, o qual só pode ser restringido com respeito pelos princípios da proporcionalidade (art.º 18.º) e da igualdade (art.º 13.º).
O significado básico da exigência de um processo equitativo é o da conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva, não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais. Sendo um desses princípios o direito de defesa e o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas.
O respeito pelo direito de defesa e ao contraditório implica uma particular relevância do acto de citação, na medida em que esta surge como um particular momento de efectivação de tal direito; na medida em que é com ela que, conforme refere o art.º 228.º do CPC, se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender.
O acto de citação deve, pois, para respeito do direito de defesa e ao contraditório e garantia do processo equitativo, ser rodeado de especiais cautelas para assegurar a plena compreensão do seu objecto.
(…)
Pode dizer-se que tais cautelas foram tomadas no caso de entrega da carta de citação (citação) a terceira pessoa.
Desde logo essa entrega só pode ser feita a um terceiro qualificado para a entrega da carta ao citando em face das circunstâncias do caso: pessoa que se encontre na residência ou local de trabalho do citando que declare encontrar-se em condições de a entregar prontamente ao citando (art.º 236.º, n.º 2, do CPC) ou pessoa que esteja em melhores condições de a transmitir ao citando (art.º 240.º, n.º 2, do CPC).
Tal pessoa é devidamente identificada (artigos 236.º, n.º 3, e 240.º, n.º 2, do CPC) e expressamente advertida do dever de entrega pronta e da responsabilidade adveniente do incumprimento desse dever (artigos 236.º, n.ºs 1 e 4, e 240.º, n.º 4, do CPC).
E é remetida carta registada ao citando dando-lhe conta de que a citação foi entregue a terceira pessoa (art.º 241.º do CPC).
Realizada em tais circunstâncias é sustentável um juízo de certeza jurídica de que a citação chega prontamente ao seu destinatário, cumprindo integral e plenamente as suas funções, no cumprimento da exigência de um processo equitativo, pelo que é lícito equiparar tal forma de citação à citação pessoal, tendo-se a mesma como efectuada na própria pessoa do citando (artigos 238.º, n.º 1, e 240.º, n.º 5, do CPC).
Nessa equiparação falta, no entanto, um elemento essencial na caracterização do sistema legal de citação. Como se afirmou já, a exigência do processo equitativo impõe que o sistema de citação permita fixar segura e objectivamente o momento da citação, o que não ocorre na citação efectuada através de terceira pessoa.
Podendo ter-se a citação como efectuada na própria pessoa do citando e presumindo que a carta (acto) é prontamente entregue (comunicado), fica sempre a incerteza quanto ao tempo dessa entrega (comunicação), sendo que a simples experiência comum de vida leva a vislumbrar diversificadas situações em que ocorre um lapso de tempo até à entrega (comunicação).
Sendo manifesta a necessidade de...