Acórdão nº 2/19.3YUSTR.L1-3 de Tribunal da Relação de Lisboa, 26-06-2019

Data de Julgamento26 Junho 2019
Número Acordão2/19.3YUSTR.L1-3
Ano2019
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam em Conferência os Juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
No âmbito do processo nº 2/19.3YUSTR, que correu termos no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, 1º Juízo, Comarca de Santarém, na sequência de um recurso de impugnação Judicial da decisão administrativa aplicada pela ANACOM – Autoridade Nacional de Comunicações, em que a recorrente, V… P… – C… P…, SA foi condenada pela prática de uma contra-ordenação, prevista e punida pela alínea d) do nº 3, no nº 6 e na al. e) do nº 10 do artigo 89º do Decreto-Lei nº 123/2009, de 21 de Maio, em conjugação com o artigo 4º, da Lei nº 99/2009, de 04/09, em coima no valor de € 9.500,00 (nove mil e quinhentos euros), veio o Sr. Juiz “a quo” a proferir a sentença dos autos, tendo julgado procedente o recurso e absolvido a recorrente, V... P..., SA nos seguintes termos:
«Relatório:
1. A V... P..., SA (doravante “V... P..., SA”, “Recorrente” ou “Arguida”) veio impugnar judicialmente a decisão proferida pela Autoridade Nacional de Comunicações (doravante “Anacom”) no processo de contraordenação nº SCO0004072017, que a condenou numa coima de nove mil e quinhentos euros pela prática, a título negligente, de uma contraordenação prevista e punida pela alínea d) do nº 3, no nº 6 e na alínea e) do nº 10 do artigo 89º do Decreto-Lei nº 123/2009, de 21 de maio, em conjugação com o artigo 4º, da Lei nº 99/2009, de 04 de setembro, por ter instalado o Repartidor Geral de Fibra Ótica (doravante “RG-FO”) no exterior do edifício, sito na Avenida G.., na Amadora, quando o deveria ter feito no interior do Repartidor Geral do Edifício (doravante “RGE”), de modo a suportar o serviço que pretendia prestar, utilizando assim a funcionalidade pré-existente da infraestrutura.
2. Os fundamentos de defesa invocados pela Recorrente são, no essencial, os seguintes: (i) nulidade do processo de contraordenação por violação do direito de defesa, nos termos das alíneas b) e c), do nº 1 do artigo 58º do Regime Geral das Contraordenações (doravante “RGCO”), artigo 32º, nº 10, da Constituição, e artigo 374º, nº 2, e 379º, nº 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal (doravante “CPP”), ex vi artigo 41º, nº 1, do RGCO, porquanto a Anacom notificou-a de uma nova “acusação”, na qual omitiu elementos essenciais para a Arguida se defender; (ii) inexistência da infração, na medida em que o RG-FO colocado no local não cabia dentro do RGE e era necessário um RG-FO com aquela dimensão para garantir a prestação do serviço; (iii) impossibilidade de imputar qualquer infração à Recorrente pela instalação do RG-FO, sendo nula a decisão impugnada por falta de elementos essenciais, nos termos e para os efeitos do disposto nas alíneas b) e c), do nº 1 do artigo 58º do RGCO, o que gera a nulidade da decisão de aplicação de coima, nos termos do disposto no artigo 374º, nº 2, e 379º, nº 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal (CPP), ex vi artigo 41º, nº 1, do RGCO (disposições aplicáveis a materialidades decisórias em processos sancionatórios), ou a não a responsabilização da Arguida, em virtude de um concreto agente, com ou sem violação de deveres da pessoa coletiva mandatada (Telcabo), caso tivesse agido ilicitamente, ter atuado contra as instruções dadas pela V... P..., SA à Telcabo; erro sobre a proibição e sobre a ilicitude; discordância quanto à concreta sanção aplicada e a desnecessidade de aplicação de coima.
3. Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, com observância das formalidades legais.
*
Questões a decidir - Âmbito do controlo judicial:
4. Antes de entrar na análise do mérito do recurso importa tecer algumas considerações quanto ao âmbito do controlo judicial que deverá ser efetuado. Neste plano, é necessário distinguir entre a intensidade e o âmbito dos poderes de decisão e cognição do Tribunal num recurso de impugnação judicial no processo de contraordenação. Assim, a intensidade traduz o nível de profundidade da apreciação judicial e o âmbito a sua extensão. E é importante efetuar esta distinção porque a vocação de plenitude de uma não compromete a limitação da outra.
5. Conforme defendemos no texto “Os poderes de cognição e decisão do tribunal na fase de impugnação judicial do processo de contraordenação”[1] e cujas conclusões finais e pontos mais relevantes aqui reproduzimos, o reconhecimento de competência, no direito das contraordenações, à Administração introduz um aumento do risco de erro e de decisões injustas, que apenas é compatível com as garantias fundamentais previstas nos artigos 6º § 1º, da CEDH, e 20º, da Constituição, se o Tribunal, na fase judicial, dispuser de poderes decisórios e cognitivos de plena jurisdição, na dimensão da intensidade, sendo este o modelo que o nosso legislador adotou no RGCO.
6. Contudo, esses poderes de plena jurisdição não são incompatíveis, em geral, com o reconhecimento de que existem, na fase de impugnação judicial, elementos de um recurso, nem, em particular, com a limitação do âmbito dos poderes do Tribunal. E se, aquando da entrada em vigor do RGCO, esta possibilidade não se colocava, porque, na vigência do CPP de 1929, não se admitia a limitação do objeto do processo ao longo de todo o processo penal, tal questão assumiu dimensões problemáticas com a consagração no atual CPP do regime previsto nos artigos 402º e 403º, ambos do CPP, que gerou o problema. Por sua vez, a previsão da proibição da reformatio in pejus no art. 72.º-A, nº 1, do RGCO, pelo DL nº 244/95 ampliou a extensão do problema.
7. Com exceção dos processos de contraordenação que não estão sujeitos à proibição da reformatio in pejus e em que, cumulativamente, a decisão é precedida de audiência de julgamento ou há lugar a decisão por simples despacho com agravamento das sanções, verifica-se que a vontade do arguido assume um papel decisivo na génese, conformação e manutenção da impugnação judicial, que não há espaço, em termos de utilidade, para a afirmação de uma pretensão punitiva que vá para além das questões que o arguido pretende ver apreciadas e que não há fundamento, no plano das garantias fundamentais, para se ir para além da vontade do arguido. Razão pela qual é possível limitar o âmbito do controlo judicial, mediante a aplicação do regime previsto nos citados preceitos do CPP, ex vi artigo 41º, nº 1, do RGCO.
8. Adicionalmente, é necessário acrescentar que, tal como sustenta Damião da Cunha a propósito dos recursos ordinários em processo penal e que por identidade de razões é aqui aplicável, o princípio da presunção de inocência é indisponível. Por conseguinte, o Tribunal nunca poderá deixar de se pronunciar sobre a culpabilidade quando, no âmbito de um recurso limitado à sanção ou – acrescenta-se – a uma outra questão, lhe surja a dúvida sobre a possibilidade razoável de existência de uma questão não resolvida ou mal resolvida relativa à culpabilidade da infração ou infrações objeto da decisão administrativa[2].
9. Dito isto, impõe-se então fixar o âmbito do presente recurso, à luz do disposto no artigo 403º, nº 1, do CPP, ex vi artigo 41º, nº 1, do RGCO, uma vez que, no caso, é aplicável a regra da proibição da reformatio in pejus.
10. Neste plano, constata-se, em primeiro lugar, que há duas questões prévias autónomas face ao mérito, designadamente a nulidade do processo de contraordenação por violação do direito de defesa e a nulidade da decisão impugnada. Quanto ao mérito, verifica-se que a Recorrente pugna pela sua absolvição, com base em fundamentos muitos específicos, designadamente: não verificação da infração por não serem verdadeiros os factos relacionados com a possibilidade de instalação de um RG-FO dentro do RGE (cf. pontos 3 e 4 da matéria de facto provada da decisão impugnada); violação de instruções por parte da Telcabo, que foi quem, mandatada pela Recorrente, efetuou a instalação; e erro sobre a proibição e erro sobre a ilicitude. Considerando que a decisão, no que respeita as demais segmentos factuais não absorvidos por estes fundamentos de defesa, não suscita qualquer dúvida quanto à sua correção, passível de justificar uma intervenção oficiosa, e é possível autonomizar, na parte dos factos, uns e outros, os poderes de cognição do Tribunal limitar-se-ão, nesta parte, ao reexame dos factos comprometidos pela defesa da Recorrente, dando-se como assentes os demais factos. Uma última questão identificada e autónoma face às demais consiste na sanção aplicável.
11. Por conseguinte e em síntese, as questões que o Tribunal terá de apreciar e decidir, ao abrigo dos seus poderes de plena jurisdição e sem prejuízo de alguma(s) ficar(em) prejudicada(s) face às demais, são, por ordem de precedência lógica, as seguintes:
a. primeira questão - nulidade do processo de contraordenação por violação do direito de defesa;
b. segunda questão – nulidade da decisão impugnada por falta de elementos essenciais relativos à pessoa que praticou os factos e à sua conexão com a Arguida;
c. terceira questão – inexistência da infração porque o RG-FO colocado não cabia dentro do RGE e não podia ser colocado um RG-FO de menor dimensão;
d. quarta questão – a não a responsabilização da Arguida, em virtude de um concreto agente, com ou sem violação de deveres da pessoa coletiva mandatada (Telcabo), caso tivesse agido ilicitamente, ter atuado contra as instruções dadas pela V... P..., SA à Telcabo;
e. quinta questão - erro sobre a proibição e sobre a ilicitude;
f. sexta questão – sanção aplicável.
*
12. Primeira questão – nulidade do processo de contraordenação por violação do direito de defesa:
13. Alegou a Recorrente o seguinte:
g. a Anacom notificou-lhe uma primeira acusação na qual referia que, «face à existência de espaço livre no RGE», o «RG-FO poderia ter [sido] instalado no [seu] interior»;
h. na sequência da defesa apresentada pela Recorrente, a Anacom emitiu uma nova acusação, que constitui
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