Acórdão nº 184/12.5TELSB-R.L1-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 11-10-2023
Data de Julgamento | 11 Outubro 2023 |
Case Outcome | PROVIDO |
Classe processual | RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL) |
Número Acordão | 184/12.5TELSB-R.L1-A.S1 |
Órgão | Supremo Tribunal de Justiça |
Acordam, no Pleno, das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório
1. O arguido AA veio, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 437.º n.ºs 2, 3, 4 e 5 e 438.º n.ºs 1 e 2, do C.P.P., interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27/01/2021, transitado em julgado em 03/02/2022, que julgou improcedente o seu recurso do despacho proferido, em 23/09/2020, pelo Senhor Juiz de Instrução do Tribunal Central de Instrução Criminal, com os seguintes fundamentos, que passamos a sintetizar:
O referido acórdão recorrido está em manifesta oposição sobre a mesma questão jurídica com o acórdão, do mesmo Tribunal da Relação, de 07/03/2018, também transitado em julgado e publicado na base de dados www.dgsi.pt (acórdão fundamento).
A questão jurídica em causa consistia em saber se a circunstância de uma mensagem de correio eletrónico se mostrar sinalizada como aberta ou lida, aquando da respetiva apreensão, afastava a aplicação do regime previsto no art. 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, ou se, diferentemente, essa circunstância é irrelevante, aplicando-se o regime da citada norma a todas as mensagens de correio eletrónico apreendidas, independentemente do facto de as mesmas estarem sinalizadas como abertas ou lidas ou, ao invés, como fechadas ou não lidas.
Ora, enquanto o acórdão recorrido entendeu que o regime aplicável ao caso dos autos era o constante do art. 16.º, da Lei do Cibercrime, cabendo ao Ministério público seriar o material apreendido e determinar ele – e não o JIC – qual o material probatório que considera relevante, dado que os mails, porque previamente abertos, mais não são que meros documentos digitais, o acórdão fundamento, por seu vez, decidiu que as mensagens de correio eletrónico que se encontrem armazenadas, num sistema informático, independentemente de se encontrem abertas ou fechadas, só podem ser apreendidas mediante despacho prévio do Juiz de Instrução Criminal, devendo, assim, o juiz a ser a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência.
Os acórdãos em questão foram proferidos, no âmbito do mesmo processo de inquérito, e no domínio da mesma legislação – a Lei n.º 109/2009, de 15/09, -, não tendo havido entre a prolação dos mesmos qualquer alteração legislativa.
Adiantou, desde logo, que fosse fixada jurisprudência neste sentido:
«Na fase de inquérito, é da competência do juiz de instrução criminal a decisão sobre a apreensão e junção aos autos de mensagens de correio eletrónico, mesmo que se encontrem sinalizadas como abertas ou lidas no momento da restiva apreensão, devendo o juiz de instrução criminal delas tomar prévio conhecimento, a fim de decidir pela junção aos autos daquelas que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova».
2. O Ex.mo magistrado do Ministério Público, junto do Tribunal da Relação de Lisboa, respondeu ao recurso interposto, defendendo a rejeição do mesmo, por não se estar perante dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, não se verificando, deste modo, em sua opinião, oposição de julgados.
3. Por sua vez, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, neste Supremo Tribunal de Justiça, emitiu, nos autos, desenvolvido parecer, nos termos dos qual, divergindo da posição assumida pelo seu Colega do Tribunal da Relação de Lisboa, entendeu, em síntese, que se verificam, in casu, os pressupostos formais e substanciais do recurso extraordinário em causa, nomeadamente, a oposição de julgados, pelo que deviam os autos prosseguir (art. 441.º n.º 1, in fine, do C.P.P.).
Observado o contraditório, o recorrente veio responder, dizendo que nada tinha a acrescentar, uma vez que a posição do Senhor Procurador-Geral Adjunto era coincidente com a sua.
4. Teve lugar a Conferência e, em 06/07/2022, foi proferido acórdão pela 3.ª Secção Criminal, que julgou observados todos os requisitos formais e substanciais, incluindo a oposição de julgados entre os dois referenciados acórdãos (recorrido e fundamento) e, em consequência, determinou o prosseguimento do recurso, nos termos do art. 441.º n.º 1, 2.ª parte, do C.P.P.
5. Cumprido o disposto no art. 442.º n.º 1, também do C.P.P., vieram o recorrente e o Ministério Público apresentar alegações, tendo o primeiro concluído da seguinte forma (Transcrição):
1. O presente recurso foi interposto, a 02.03.2022, contra o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.01.2021 (Acórdão Recorrido), através do qual o Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente o recurso apresentado pelo Recorrente contra o Despacho do Mm.º Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Central de Instrução Criminal, de 23.09.2020.
2. No Acórdão Recorrido, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que “os mails apreendidos eram correspondência aberta, e-mails lidos” e, por essa precisa razão, sustentou que “o regime aplicável ao caso dos autos é o constante do artº 16º da Lei do Cibercrime, cabendo ao MP seriar o material apreendido e determinar ele – e não o JIC – qual o material probatório que tem por relevante dado que os mails, porque previamente abertos, mais não são do que meros documentos digitais”.
3. Verifica-se uma marcada oposição de julgados — e, até mesmo, uma violação do caso julgado formal — entre o Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento, sobre a mesma questão fundamental de direito, que é a seguinte: saber se a circunstância de uma mensagem de correio eletrónico se mostrar sinalizada como aberta ou lida, aquando da respetiva apreensão, afasta a aplicação do regime previsto no artigo 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, ou se, diferentemente, essa circunstância é irrelevante, aplicando-se o regime previsto no artigo 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, a todas as mensagens de correio eletrónico apreendidas, independentemente do facto de as mesmas estarem sinalizadas como abertas ou lidas ou, ao invés, como fechadas ou não lidas.
4. Os factos subjacentes às decisões finais tomadas em ambos os Acórdãos são, também eles, idênticos, uma vez que ambos os Acórdãos têm por referência o mesmo processo e o mesmo inquérito e ambos os Acórdãos têm por referência a apreensão física de mensagens de correio eletrónico ordenadas pela mesma decisão do Ministério Público.
5. Ambos os Acórdãos (Recorrido e Fundamento) foram proferidos no domínio da mesma legislação – a Lei do Cibercrime — uma vez que, no intervalo da sua prolação, não ocorreu qualquer modificação legislativa que haja interferido, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.
A DIMENSÃO LEGAL / INFRACONSTITUCIONAL DO OBJETO DO RECURSO
6. Na redação original do Código de Processo Penal, de 1987, o artigo 190.º consagrava uma extensão do regime das interceções telefónicas, regulado pelos artigos 187.º a 189.º, prevendo que o disposto em tais normas era “correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone”.
7. Através da Lei n.º 59/98, de 25 agosto, o artigo 190.º do CPP passou a prever a extensão do regime das interceções telefónicas “designadamente [ao] correio electrónico”.
8. Em 23.11.2001 foi assinada, em Budapeste, a Convenção do Cibercrime, e é a partir dos artigos 19.º e 21.º da mesma que se vêm entendendo previstas as orientações do Conselho da Europa em matéria de apreensão de correio eletrónico, sendo que os Estados Partes decidiram não tomar posição expressa sobre a relevância ou irrelevância da circunstância de, no momento da apreensão, a mensagem de correio eletrónico se encontrar sinalizada como aberta ou fechada.
9. Através da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, o legislador procedeu à alteração do CPP, em termos tais que se deixou claro que o regime das interceções telefónicas se estendia a outras formas de comunicação como o correio eletrónico, entendido enquanto meio de comunicação operável em tempo real, mas também enquanto instrumento passível de ser guardado em suporte digital.
10. Em 2009, com a aprovação da Lei do Cibercrime e do respetivo artigo 17.º, surge no direito nacional, pela primeira vez, um regime especial respeitante à apreensão de correio eletrónico, cujo texto normativo se mantém intocável desde então e até à data, não obstante a efémera tentativa de alteração ocorrida em 2021, vetada pelo Presidente da República após o processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, que deu lugar ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 687/2021.
11. O artigo 17.º da Lei do Cibercrime dispõe que “[q]uando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal”.
12. À luz das disposições legais relevantes — v. g., os artigos 17.º da Lei do Cibercrime e 179.º do CPP — a apreensão de correio eletrónico:
i. só poderá ser realizada no âmbito de processos relativos a crimes previstos na Lei do Cibercrime, a crimes cometidos por meio de um sistema informático, ou relativamente aos quais “seja necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico”;
ii. a apreensão pressupõe a autorização ou ordem prévia, por despacho, de um juiz;
iii. surgirá, forçosamente, na decorrência de uma pesquisa de dados informáticos ou, em diferente cenário, pressupõe-se que seja antecedida por “outro acesso legítimo a um sistema informático”;
iv. a correspondência a...
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