Acórdão nº 1807/19.0YRLSB-7 de Tribunal da Relação de Lisboa, 11-12-2019

Data de Julgamento11 Dezembro 2019
Número Acordão1807/19.0YRLSB-7
Ano2019
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
AA e BB vêm requerer a confirmação da escritura pública de união estável, outorgada em 3.11.2016, no Brasil, a qual formalizou a união estável entre os requerentes.
Cumprido o disposto no 982º, nº1, do Código de Processo Civil, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de que deve ser indeferido o pedido formulado, uma vez que o «documento apresentado não contém qualquer decisão nem qualquer declaração da entidade administrativa que lavrou a escritura pública que ateste os factos ali descritos, pelo que não se mostram verificados os pressupostos de revisão de sentença estrangeira», invocando a doutrina dos Acórdãos do STJ de 28.2.2019, 9.5.2019 e 21.3.2019. .
O Tribunal é competente e não ocorrem nulidades, exceções ou outras questões prévias de que cumpra conhecer.
QUESTÃO A DECIDIR
A única questão a decidir consiste em verificar se estão demonstrados os requisitos legais de que depende a revisão e confirmação da sentença estrangeira apresentada.
FACTUALIDADE PROVADA
Encontra-se documentalmente provado nos autos que:
1- No dia 3.11.2016, os requerentes compareceram perante o Cartório do 6º Serviço Notarial da cidade do Rio de Janeiro, Brasil, onde foi lavrada Escritura Pública Declaratória de União Estável, nos termos da qual pelos requerentes foi dito: «Que vivem sob o regime de convivência familiar (União Estável) nos termos do Artigo 1723 e seguintes do Código Civil Brasileiro, sob o mesmo teto, como se casados fossem há 17 anos; desta união não foram havidos filhos; prestam esta declaração de livre es espontânea vontade, usando dos direitos que a Lei lhes confere, atribuem o Regime de Separação Total de Bens afastando assim a presunção estabelecida no Artigo 1725º do Código Civil Brasileiro, e, assinam a presente escritura para tudo o que for preciso , a fim de garantirem, reciprocamente, todos os direitos, benefícios previdenciários e assistenciais(…) » (fls. 41);
2- A requerente nasceu em 30.8.1962, tendo nacionalidade portuguesa (fls. 34-35);
3- O requerente nasceu no dia 24.3.1942, em Penedo, Alagoas, tendo nacionalidade brasileira (fls. 38-40).
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O sistema português de revisão de sentenças estrangeiras inspira-se no chamado sistema de delibação, isto é, de revisão meramente formal, o que significa que o tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito da causa.[1]Trata-se de um processo especial de simples apreciação.
Nos termos do Artigo 980º do Código de Processo Civil, para que a sentença seja confirmada é necessário:
«a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para ação nos termos da lei do país do tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português
Dispõe o Artigo 983º, nº 1, do Código de Processo Civil que: «O pedido só poder ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980º, ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g), do artigo 696º.» Por sua vez, o Artigo 984º determina que «O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito
Consoante se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.2.2006, Oliveira Barros, 05B4168, o requerente está dispensado de fazer prova direta e positiva dos requisitos das alíneas b) a e) do Artigo 980º. Se, pelo exame do processo, ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, o tribunal não apurar a falta dos mesmos, presume-se que existem, não podendo o tribunal negar a confirmação quando, por falta de elementos, lhe seja impossível concluir se os requisitos dessas alíneas se verificam ou não. A prova de que não se verificam os requisitos das alíneas b) a e) do artigo 980º compete ao requerido, devendo, em caso de dúvida, considerar-se preenchidos.[2]
No que tange à legitimidade passiva neste processo especial, não é imprescindível a existência de demandados. Conforme se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4.10.2011, Rijo Ferreira, 529/11,
«Sendo uma sentença um ato pelo qual se definem direitos, a atribuição de eficácia a uma sentença estrangeira coloca aquele a quem ela atribui direitos numa posição de, no território nacional, a fazer impor a quem aquela sentença constitui na obrigação de reconhecer aqueles direitos. Daí que o pedido de revisão dessa sentença deva ser formulado no confronto com quem possa ser diretamente atingido pelo deferimento de tal pedido (daí que o pedido deva ser formulado contra quem se pretenda fazer valer a ação – e não necessariamente o vencido na mesma – no tribunal da área da sua residência para a ela ser chamado por meio de citação).
Mas nem sempre a atribuição de eficácia à sentença estrangeira visa a possibilidade de a fazer impor a outrem; de a fazer valer contra outrem. Com efeito, situações há em que com atribuição de eficácia à sentença estrangeira apenas se pretende tornar efetivas no território nacional as situações definidas na sentença estrangeira em favor do próprio peticionante, sem que haja qualquer confronto com terceiro.
Ora nesses casos a ação de revisão não se estabelece numa relação processual antagónica, em termos de autor/réu, requerente/requerido, mas numa simples demanda ao Estado de atribuição de eficácia à sentença estrangeira; ao reconhecimento da situação por ela definida. Pelo que a mesma não terá qualquer sujeito a ocupar o lado passivo da relação processual (abstraindo aqui do papel do MP enquanto defensor da legalidade e dos princípios de ordem pública).
O caso paradigmático dessa situação é o pedido de revisão de sentença estrangeira de divórcio formulado por ambos os ex-cônjuges.»
No que respeita ao requisito da alínea a), o Tribunal português tem de adquirir, documentalmente, a certeza do ato jurídico postulado na decisão revidenda, mesmo que não plasmada em sentença na aceção pátria do conceito, devendo aceitar a prova documental estrangeira que suporte a decisão revidenda, ainda que formalmente não seja um decalque daquilo que na lei interna nacional preenche o conceito de sentença.[3]
No que tange ao requisito da alínea f) (ordem pública internacional do Estado Português), os princípios da ordem pública internacional do Estado Português são princípios enformadores e orientadores, fundantes da própria ordem jurídica portuguesa, que de tão decisivos que são, jamais podem ceder. Por outro lado, tem-se em vista o resultado concreto da decisão, ou seja, o dispositivo da sentença e não os seus fundamentos.[4]
A ordem pública internacional do Estado Português não se confunde com a sua ordem pública interna: enquanto esta se reporta ao conjunto de normas imperativas do nosso sistema jurídico, constituindo um limite à autonomia privada e à liberdade contratual, a ordem pública internacional restringe-se aos valores essenciais do Estado português. Só quando os nossos interesses superiores são postos em causa pelo reconhecimento duma sentença estrangeira, considerando o seu resultado, é que não é possível tolerar a declaração do direito efetuada por um sistema jurídico estrangeiro. De modo que só quando o resultado dessa sentença choque flagrantemente os interesses de primeira linha protegidos pelo nosso sistema jurídico é que não se deverá reconhecer a sentença estrangeira.[5]
Conforme se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 3.3.2009, Arcanjo Rodrigues, 237/07,
«A lei ( …) não define o conceito de "ordem pública internacional", tratando-se de um conceito indeterminado, carecido de preenchimento valorativo na análise casuística.
O que releva, para o efeito, não são os princípios consagrados na lei estrangeira que servem de base à decisão, mas o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto, ou seja, a reserva de ordem pública internacional visa impedir que a aplicação de uma norma estrangeira, pela via indireta da execução de sentença estrangeira, implique, na situação concreta, um resultado intolerável.
Por conseguinte, o juízo de compatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português terá que ser necessariamente aferido, não pelo conteúdo da decisão e o direito nela aplicado, mas pelo resultado do reconhecimento, o que implica um "exame global".
Não basta, por isso, que a solução dada ao caso pelo direito estrangeiro seja divergente da do direito interno português, exigindo-se que o resultado seja "manifestamente incompatível" com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português (cf. LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, vol., p. 584 e segs., vol. III, p.368 e ss.), MARQUES DOS SANTOS, Aspetos do novo Código de Processo Civil, "Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras", p. 140).»
O Ministério Público
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