Acórdão nº 1795/07.6GISNT.L1 de Supremo Tribunal de Justiça, 09-09-2010

Data de Julgamento09 Setembro 2010
Case OutcomePROVIDO PARCIALMENTE
Classe processualRECURSO PENAL
Número Acordão1795/07.6GISNT.L1
ÓrgãoSupremo Tribunal de Justiça



AA, nascida em 10/9/1983 em Lisboa e residente que foi em Odivelas, foi julgada em processo comum (Pº NUIPC 1795/07.6GISNT.L1), a 23 de Junho de 2009, no Juízo de Grande Instância Criminal Lisboa-Noroeste, e condenada pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131° e 132°, n° 1 do Código Penal, na pena de 12 anos e 3 meses de prisão, de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo crime do artº 254º nº 1 al. a) do C P, na pena de 6 meses de prisão, e em cúmulo jurídico destas penas, na pena única de 12 anos e 6 meses de prisão.

Descontente com a decisão interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, impugnando a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, com as consequentes alteração da qualificação jurídica do crime praticado, de homicídio para infanticídio, a diminuição da pena e sua suspensão.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 11/3/2010, concedeu parcial provimento ao recurso, nos seguintes termos:
· Corrigiu um erro notório verificado na apreciação de facto, eliminando do elenco dos factos provados a referência constante da parte final do facto n° 3 (“matando-o após parto”), e aditando aos factos não provados o seguinte: “não provado que a arguida decidisse matar o nascituro após parto logo que soube que estava grávida”.
· Supriu oficiosamente a nulidade do acórdão, consistente na insuficiência da matéria de facto para a decisão, e aditou os seguintes factos aos provados:
- “a arguida sofreu dores físicas muito fortes durante o parto, ficando num estado de sofrimento e perturbação física e emocional após o nascimento da criança”;
- “penaliza-se pelo sucedido, sentindo profundo desgosto e amargura pelos factos”.
· Alterou a condenação da arguida nos seguintes moldes:
a) Ficou condenada como autora material de um crime de homicídio simples, p. e
p. pelos artigos 131° do Código Penal, na pena de 9 anos de prisão;
b) Em cúmulo jurídico com a pena de seis meses aplicada pelo crime de
profanação de cadáver, na pena única de 9 anos e três meses de prisão.

Irresignada, interpôs recurso para este Supremo Tribunal, questionando a qualificação feita e a pena aplicada, e pretendendo, de qualquer modo, a verificação do vício da al. b) do nº 2 do art. 410º do C P P.

A - DA DECISÃO DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

Transcreve-se a matéria de facto dada por provada na primeira instância com as alterações introduzidas na Relação.

“1. A Arguida e BB, mantiveram um relacionamento amoroso iniciado no ano de 2001, tendo vivido um com o outro em condições análogas às dos cônjuges entre o ano de 2006 e o ano de 2007, na habitação sita emA............., n° .., .. Rinchoa.
2. Por cerca do mês de Maio de 2007 a Arguida suspeitou que estava grávida, o que confirmou nesse mês, através do resultado positivo de teste de gravidez.
3. Pensou em não contar a ninguém esse seu estado, passando a ocultá-lo, e bem assim decidiu livrar-se do nascituro [“matando-o após o partoeliminado pelo Tribunal da Relação].
4. Em consonância com tal resolução, nunca se dirigiu a um médico ginecologista ou obstetra, durante toda a gravidez.
5. Nem nunca comprou quaisquer artigos próprios para o seu estado de gravidez, para si ou para o nascituro.
6. Tendo-se esforçado durante os meses de gravidez para que a mesma não fosse visível ou perceptível a terceiros, nomeadamente ao seu companheiro, à sua mãe e demais familiares.
7. O que efectivamente conseguiu, inventando que estava com um problema de saúde de cariz ginecológico (tumor) e que carecia de ser submetida a tratamentos de quimioterapia, para o debelar.
8. Também convenceu o seu companheiro e familiares de que esse problema de saúde tinha como consequência fazer inchar a zona abdominal e baixo-ventre, de modo a que não estranhassem o aumento do seu volume corporal.
9. Logrou, desse modo, dissimular a gravidez, durante todo o respectivo tempo.
10. No dia 15 de Novembro de 2007, a Arguida começou a sentir dores de barriga, pelo que, a fim de obter algum alívio, foi deitar-se, após tomar paracetamol.
11. Por cerca da meia-noite as dores intensificaram-se e a Arguida entrou em trabalho de parto.
12. Uma vez que estava deitada no quarto de dormir com o seu companheiro e não o querendo acordar e alertar, a mesma dirigiu-se para a casa de banho.
13. Fechou a respectiva porta e, constatando que estava a perder sangue e líquido amniótico, agachou-se dentro da zona do duche.
14. Cerca das 03H30 de 16 de Novembro de 2007 a Arguida pariu, tendo nascido uma criança de sexo feminino, com o peso de cerca de 3,650 kg e com o comprimento de 54 cm.
15. Imediatamente após o nascimento, a Arguida dirigiu-se à cozinha e, com o auxílio de uma tesoura, cortou o cordão umbilical que a unia à recém-nascida.
16. De seguida foi à dispensa buscar sacos de plástico, enfiou um saco de plástico na cabeça da recém-nascida, dando um nó no mesmo, na zona do pescoço desta, e colocou-a dentro de mais sacos de plástico.
17. Após, escondeu-a num armário existente no outro quarto de dormir da casa que habitava, com o intuito de, posteriormente, a fazer desaparecer.
18. Terminada a tarefa de esconder a recém-nascida, a Arguida deslocou-se para o quarto onde o seu companheiro permanecia a dormir.
19. Contudo, porquanto a mesma começou com fortes hemorragias, teve de acordar o companheiro, que a ajudou a dirigir-se à casa de banho.
20. Já na casa de banho, sentou-se na sanita e permaneceu aí o tempo suficiente para que a placenta fosse expelida, o que veio a ocorrer.
21. Posteriormente a Arguida começou com hemorragias mais fortes, tendo desmaiado.
22. O seu companheiro transportou-a de volta para a cama e comunicou-lhe que ia chamar o «112», para a transportarem para o Hospital.
23. A Arguida ainda lhe disse para não chamar, contudo voltou a desmaiar e o seu companheiro solicitou o auxílio do INEM, que aí ocorreu e procedeu ao transporte dela para as urgências do Hospital Fernando Fonseca, na Amadora.
24. Aí chegada, os médicos que a assistiram detectaram que a Arguida acabara de ter um parto e perguntaram-lhe pela criança.
25. A Arguida respondeu que tinha deitado a criança num caixote de lixo existente na Rua da sua residência.
26. Após ter regressado do Hospital, no dia 16 de Novembro, o companheiro da Arguida encontrou o cadáver da recém-nascida, dentro dos sacos de plástico, no armário mencionado em 17, subsequentemente ao que, telefonou para a Polícia, tendo comparecido agentes no local, que, designadamente, providenciaram pela remoção do cadáver para o Instituto de Medicina Legal, onde foi autopsiado.
27. A criança que a Arguida deu à luz encontrava-se em termo de gestação, com ausência de malformações internas ou externas.
28. Nasceu com vida, tendo tido respiração extra-uterina.
29. A sua morte ficou a dever-se a asfixia por sufocação, por oclusão dos orifícios respiratórios, em consequência da acção da Arguida mencionada em 16.
30. Através de tal acção, designadamente ao enfiar um saco de plástico na cabeça da recém-nascida e atar o mesmo à volta do pescoço desta, a Arguida, sabendo que ela nascera com vida, igualmente sabia que desse modo lhe provocaria a morte, o que quis que sucedesse.
31. Nessa conduta agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a mesma era proibida e criminalmente punível.
32. Ao esconder o cadáver da recém-nascida, embrulhado em sacos de plástico, dentro de um armário, com vista a, posteriormente, desfazer-se dele, fazendo-o desaparecer e não mais ser encontrado, a Arguida agiu igualmente de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que não estava autorizada a tal procedimento e que essa conduta era proibida e criminalmente punível.

(da determinação da sanção)
33. Desde há cerca de um ano a Arguida e BB voltaram a viver um com outro, ainda que de forma concomitante [terá querido dizer-se intermitente], em virtude de este passar alguns períodos na cidade na cidade do Porto.
34. A Arguida não tem filhos.
35. Completou o curso de linguística na Universidade Nova de Lisboa.
36. Dá explicações, de Português e de Inglês, em centro de explicações privado, bem como exerce a profissão de operadora de call center.
37. Em Dezembro de 2007 iniciou consultas de neuropsicologia e de psiquiatria, que mantém.
38. Não tem registo de antecedentes criminais.”

[aditados pelo Tribunal da Relação ]
39. A arguida sofreu dores físicas muito fortes durante o parto, ficando num estado de sofrimento e perturbação física e emocional após o nascimento da criança.
40. Penaliza-se pelo sucedido, sentindo profundo desgosto e amargura pelos factos.

De relevante para a discussão da causa não resultou provada a seguinte matéria de facto:
“ 1. Que a Arguida tivesse conhecimento que a sua gravidez tivesse sido consequência de relação sexual esporádica, com outra pessoa que não o seu companheiro BB.
2. Que o facto de a recém-nascida não ser filha de BB tivesse tido alguma influência na acção da Arguida que se teve por provada.
3. Que o cadáver da recém-nascida tivesse sido encontrado dentro do armário por elementos da Polícia Judiciária.”
4. Que a arguida decidisse matar o nascituro após o parto logo que soube que estava grávida [aditado pelo Tribunal da Relação]

B - RECURSO PARA ESTE SUPREMO TRIBUNAL

Foram as seguintes as conclusões da motivação do recurso interposto pela arguida:

“A. O aresto recorrido enferma de erro de Direito, no que se refere à interpretação e aplicação do artigo 136º do Código Penal, na medida em que tem dado como provados factos que integram o âmbito da tipicidade do referido normativo, não procedeu à sua aplicação ao caso, que qualificou diversamente como caracterizando o crime de homicídio, subsumível, pois, ao artigo 131º do mesmo diploma;

B. De acordo com o disposto no art. 50º do Código Penal, estão reunidos os pressupostos de tal medida...

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