Acórdão nº 1760/19.0BELRS de Tribunal Central Administrativo Sul, 11-07-2024
Judgment Date | 11 July 2024 |
Acordao Number | 1760/19.0BELRS |
Year | 2024 |
Court | Tribunal Central Administrativo Sul |
I. RELATÓRIO
D……………. – Sociedade …………………………………, S.A. (doravante Recorrente ou Impugnante) veio recorrer da sentença proferida a 22.08.2022, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada improcedente a impugnação por si apresentada, que teve por objeto o indeferimento da reclamação graciosa que versou sobre a autoliquidação da contribuição extraordinária sobre o setor energético (CESE), relativa ao ano de 2018, e sobre a liquidação dos respetivos juros compensatórios.
Apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:
“B. A CESE foi estabelecida com a intenção de constituir uma medida extraordinária (conforme decorre, aliás, da sua própria designação), no âmbito e a propósito da negociação e cumprimento do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) acordado entre o Estado português, a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional, que vigorou entre 2011 e 2014 (vulgo “programa da Troika”). Assim sendo, era suposto que a CESE vigorasse por um período transitório e limitado. Porém, desde que foi criada, a medida tem vindo a ser prorrogada anualmente, até ao presente, estando já no nono ano de vigência (quase uma década). O período em causa nos presentes autos, 2018, foi o quinto ano em que a CESE esteve em vigor.
C. Quer agora, em 2022, quer no ano aqui em questão, 2018, estamos a falar de momentos por reporte aos quais foram há muito ultrapassadas as circunstâncias que justificaram a permanência excepcional e transitória da CESE na nossa ordem jurídica. De acordo com a jurisprudência mais recente do Tribunal Constitucional, essas circunstâncias reconduzem-se à situação de emergência financeira que a República Portuguesa atravessou entre o início e meados da década passada. Com efeito, apesar de até ao momento o Tribunal se ter colocado do lado da validade da CESE, não só teve apenas em conta o tributo vigente entre 2014 e 2017 como, das decisões conhecidas, é possível retirar como consequência que, a partir de 2018, a medida deixou de ter justificação constitucional para vigorar (extraordinariamente) no nosso ordenamento.
D. A essa luz, tanto os actuais nove anos de duração da CESE quanto os cinco que ela já levava em 2018 configuram uma situação óbvia de uso excessivo e inconstitucional do poder do Estado, que requer com urgência uma intervenção que o limite – pelo menos, como ultima ratio, uma intervenção judicial. É essa intervenção que se requer a este Tribunal, enquanto garante máximo dos princípios constitucionais em que se baseia a ordem jurídico-política portuguesa.
E. Segundo o Tribunal, a conformidade da CESE com a Constituição mantém-se apenas enquanto ela puder ser considerada uma medida extraordinária, pelo que saber se ela ainda merece ou não essa qualificação é uma questão central, um critério fundamental que deve orientar a apreciação da sua validade ou invalidade. Ora, à luz da jurisprudência, não faz sentido que, no quinto ano de vigência da medida, ainda se possa considerar admissível a permanência da CESE na ordem jurídica. É que não é só a urgência da receita gerada que despareceu (em 2018, Portugal não estava já na situação financeira de há dez anos. Nessa altura, aliás, o Governo inclusivamente celebrava o facto de termos ultrapassado essa situação); desapareceu também a urgência de o tributo existir naquelas condições – condições essas que, lembre-se, este Tribunal aceitou porque eram «de fácil implementação e aplicação para um período de aplicação transitório e certo, onde não se justificaria a implementação de critérios, porventura mais adequados (…), mas muito complexos e com elevados custos de cumprimento, ou seja, totalmente desajustados à urgência do caso pretendido».
F. Pois bem: para o Tribunal (por exemplo, no Acórdão n.º 532/2021), saber se a CESE reveste ou não natureza extraordinária é uma pergunta cuja resposta tem de ser determinada por um “critério conjuntural”, em cada ano de vigência, à luz da “verificação periódica de um certo estado de coisas”.
G. No entanto, esta circunstância de a validade da CESE tem de ser apreciada ano a ano, de acordo com a manutenção ou não do contexto que justificou a sua criação, implica que não nos possamos desviar de alguns princípios essenciais. Em primeiro lugar, sob pena de se abrir a porta à maior arbitrariedade possível, ao configurarem-se as razões que justificam a continuidade do tributo na ordem jurídica, não podemos estar permanentemente a pesquisar razões novas que sustentem, por exemplo, a natureza extraordinária da CESE.
H. É verdade que, potencialmente e em abstracto, em todos anos, até à eternidade, existirão por certo no Estado português circunstâncias (por exemplo, de índole orçamental) que poderão justificar a necessidade de receitas tributárias acrescidas, de natureza extraordinária; todavia, quando nos debruçamos sobre uma determinada medida concreta, para averiguar se ela é (ou ainda permanece) constitucionalmente válida – desde logo à luz da sua eventual natureza extraordinária – , não nos podemos afastar dos motivos que levaram o legislador a criá-la: é que, se optarmos por esse afastamento, estamos a aceitar que pode deixar de haver – ou deixar de ser impossível averiguar – qualquer correspondência entre a razão de ser do tributo e a necessidade de o exigir especificamente aos operadores económicos que são os seus sujeitos passivos.
I. Em vez de estarmos sempre a justificar a CESE com razões novas, ou com razões que, mesmo existindo à data da criação do tributo, não consta dos documentos legislativos ou de qualquer elemento do contexto da sua criação que tenham sido levadas em conta, aquilo a que estamos adstritos é a perguntar se as razões que presidiram à implementação do tributo se mantêm ou não, ou se foram cumpridas com a receita gerada pela medida. Caso contrário, estaremos perante uma medida violadora do princípio da proporcionalidade, por não existir correspondência entre a sua suposta necessidade e os objectivos determinado pelo legislador.
J. Nesse caso, só há duas hipóteses: ou a CESE tem de ser expurgada da ordem jurídica ou as suas regras têm de ser alteradas, com – nas palavras do TC – “a implementação de critérios, porventura mais adequados” à vigência do tributo posterior ao momento extraordinário da sua criação.
K. De resto, diga-se também, em segundo lugar, que não se pode dar justificações para a CESE que alterem natureza do tributo, a não ser que daí se retirem as devidas consequências, por exemplo e desde logo, considerando que não se trata de uma contribuição financeira, mas sim de um imposto. Lembre-se que a qualificação da CESE como uma contribuição, estabelecida no Acórdão n.º 7/2019, tinha por pressuposto que a actividade dos sujeitos passivos dava causa aos problemas que o tributo visava ajudar a resolver e/ou beneficiavam da actuação do Estado na resolução desses problemas. Porém, se a CESE passar a ser justificada sem apelo a essa ideia de bilateralidade, então é porque é um imposto e tem de ser tratada como tal, de acordo com os princípios que conformam a constitucionalidade da criação de impostos.
L. Ora, o único argumento que o TC avança para justificar a validade da CESE até 2017 é o das condições de emergência financeira em que a República Portuguesa se encontrava. Em concreto, o TC justifica a CESE com a situação de rescaldo do PAEF, durante o qual Portugal permanecia num contexto de fragilidade das contas públicas, e a manutenção do procedimento por défice excessivo, previsto no artigo 126º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (relativamente à CESE dos anos de 2015 e 2016, podemos referir as Decisões Sumárias n.ºs 358/2021 e 422/2021 e os Acórdãos n.ºs 436/2021, 437/2021, 438/2021, 513/2021 e 532/2021. Quanto a 2017, podemos citar o Acórdão 736/2021).
M. Antes de mais, analisada a jurisprudência em apreço, o que importa sublinhar é que o TC dá apenas uma justificação para a CESE de 2015, 2016 e 2017 – e essa justificação é a necessidade de consolidação orçamental. Esta circunstância transporta dois significados importantes para o caso vertente.
N. Em primeiro lugar, implica necessariamente que a CESE deve ser considerada como um verdadeiro imposto, na medida em que, se serviu simplesmente para consolidação orçamental, constitui afinal um tributo cobrado para os fins gerais dos impostos, sem qualquer efeito no financiamento de medidas de sustentabilidade do sector energético, seja na redução da dívida tarifária do Sistema Eléctrico Nacional ou em qualquer outra. Assim, é indispensável a medida ser apreciada à luz dos princípios constitucionais que regem a criação de impostos.
O. Aliás, insista-se, a partir de 2018 a CESE perdeu até a ligação à emergência da consolidação orçamental, que nessa altura deixou de se verificar, o que acarreta que deixou de existir qualquer correspectividade especial entre a CESE e uma necessidade do Estado que pudesse justificar, mesmo que temerariamente, a sua vigência extraordinária. Também por este facto se deve concluir, então, que falar hoje da CESE como um tributo bilateral – designadamente uma contribuição especial – é um erro.
P. Com efeito, em segundo lugar, levando em linha de conta a jurisprudência do Tribunal Constitucional, tem de se concluir que a CESE deixou de ser uma medida extraordinária em 2018, pois que nesse ano Portugal não só já tinha há muito deixado para trás o PAEF como havia fechado o procedimento por défice excessivo. Por reporte a 2017, o último ano analisado pelo Tribunal, este já só teve como pressuposto da natureza extraordinária da CESE a existência do procedimento por défice excessivo: se este terminou, terá de se concluir que com ele terminou igualmente a validade transitória e excepcional da CESE. Ao contrário do que sucedeu de 2014 a 2017, em 2018 e nos anos seguintes Portugal já não estava obrigado pela União Europeia à adopção de...
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