ACÓRDÃO N.º 174/93
Procº nº 322/88
Rel. Cons. Alves Correia
(Monteiro Diniz)
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. Um grupo de 28 Deputados à Assembleia da República requereu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 281º, nº 1, alínea a), da Constituição [na versão de 1982, a que corresponde, na actual versão decorrente da Leis Constitucionais nºs 1/89 e 1/92, o artigo 281º, nº 2, alínea f)] e do artigo 51º, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas dos números - designados por "cláusulas" pelos requerentes - 1º, 6º a 11º, 14º, 20º e 23º da Portaria nº 333/86, de 2 de Julho, e das normas da Portaria nº 831/87, de 16 de Outubro.
O pedido alicerça-se nos seguintes fundamentos:
a) O princípio da separação entre a Igreja e o Estado não consente que este assuma como tarefa sua e através de agentes seus o ensino de qualquer religião;
b) Este princípio é nitidamente infringido pela Portaria nº 333/86, de 2 de Julho, que regulou o ensino da Religião e Moral Católicas no ensino primário, na parte em que prevê que essa disciplina seja ministrada pelos próprios professores do ensino primário (designadamente nas cláusulas 2ª, 10ª e 14ª);
c) Violam igualmente a Constituição as normas das cláusulas 6ª a 10ª da Portaria nº 333/86, que regulam o processo de matrícula, por razões idênticas às que constam do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 423/87, relativamente à norma do artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho, aí declarado inconstitucional, com força obrigatória geral;
d) Por outro lado, a Portaria nº 831/87, de 16 de Outubro, veio instituir inovatoriamente a disciplina de religião e moral católicas nas escolas de ensino superior oficial - as escolas superiores de educação e os centros integrados de formação de professores das universidades que formarem educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico -, o que não se encontrava previsto na Concordata de 1940 entre a Santa Sé e a República Portuguesa, nem decorria directamente do Decreto-Lei nº 323/83;
e) A Portaria nº 831/87 é organicamente inconstitucional, por dispor inovatoriamente em matéria regulada pela Lei nº 46/86, de 14 de Outubro (Lei de Bases do Sistema Educativo), que apenas prevê o ensino religioso nas escolas dos ensinos básico e secundário ( artigo 47º, nº 3), invadindo, assim, a esfera da competência legislativa reservada da Assembleia da República;
f) A mencionada Portaria é ainda inconstitucional, por violar o princípio da separação entre o Estado e as igrejas, dado que, instituindo o ensino da Religião e Moral Católicas naquelas escolas, com vista à formação dos futuros professores do ensino primário, articula-se, como decorre expressamente das cláusulas 1ª e 9ª, com o regime, constante da Portaria nº 333/86,que prevê que a disciplina da religião no ensino primário pode ser assumida pelos próprios professores da escola;
g) Finalmente, a norma da cláusula 7ª da Portaria nº 831/87, segundo a qual os docentes da disciplina de religião beneficiam do estatuto da carreira docente do ensino superior, sendo aliás nomeados pelo Estado, embora sob parecer da Igreja, é igualmente inconstitucional, por violação do princípio da separação.
2. Admitido o pedido, foi notificado o Primeiro-Ministro para sobre ele se pronunciar, no prazo de 30 dias, nos termos dos artigos 54º e 55º da Lei nº 28/82.
Na sua resposta, o Primeiro-Ministro ofereceu o seguinte naipe de conclusões:
a) A Portaria nº 333/86, de 2 de Julho, bem como a Portaria nº 831/87, de 16 de Outubro, limitaram-se a regulamentar, sem introduzir qualquer inovação, o Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho;
b) Ora, o Acórdão nº 423/87, do Tribunal Constitucional, que procedeu à análise deste diploma, pronunciou-se pela não inconstitucionalidade dos seus artigos 1º, 3º, 4º, 5º e 6º, declarando, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do artigo 2º, nº 1;
c) Assim, aquelas Portarias, nas normas regulamentadoras dos artigos 1º, 3º, 4º, 5º e 6º do Decreto-Lei nº 323/83, não enfermam de qualquer forma de inconstitucionalidade;
d) As cláusulas 6ª a 10ª da Portaria nº 333/86, que regulamentavam a norma contida no artigo 2º, nº 1, daquele Decreto-Lei, foram já revogadas pela Portaria nº 344-A/88, pelo que o pedido, nesta parte, se encontra prejudicado.
3. Concluída a discussão do memorando apresentado pelo relator e tomada a decisão do Tribunal, foi aquele substituído pelo primeiro juiz vencedor, para efeitos de elaboração do acórdão, nos termos do artigo 65º, nº 3, da Lei nº 28/82.
4. A primeira tarefa que imediatamente se depara ao Tribunal é a da delimitação do objecto do pedido que lhe vem apresentado e consequente definição do elenco das normas sobre as quais se vai debruçar.
As normas cuja constitucionalidade é questionada pelos requerentes constam de dois diplomas regulamentares - as Portarias nºs 333/86, de 2 de Julho, e 831/87, de 16 de Outubro.
Quanto à primeira, os requerentes indicam, no primeiro parágrafo da petição, as normas dos nºs. 1º, 6º a 11º, 14º, 20º e 23º. Deste leque de normas devem ser, no entanto, excluídas as constantes dos nºs 6º a 10º, respeitantes ao processo de matrícula na disciplina de Religião e Moral Católicas no ensino primário [hoje, 1º ciclo do ensino básico - cfr. o artigo 8º da Lei nº 46/86, de 14 de Outubro (Lei de Bases do Sistema Educativo)], já que elas foram revogadas e, consequentemente, banidas do ordenamento jurídico, pela Portaria nº 344-A/88, de 31 de Maio - diploma emanado, como se refere no respectivo preâmbulo, em execução da declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma do artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho, operada pelo Acórdão nº 423/87 -, ou seja, numa data anterior à da entrada no Tribunal Constitucional do requerimento iniciador do presente processo (concretamente, em 11 de Julho de 1988).
Mas, a par da exclusão acabada de referir, entende o Tribunal que às normas acima mencionadas da Portaria nº 333/86 deve aditar-se, para efeitos da determinação do âmbito do pedido, a norma do nº 2º. Com efeito, embora os requerentes não a incluam na lista do primeiro parágrafo do requerimento, não deixam de a ela se referir expressamente no parágrafo quinto - ao qual corresponde a alínea b) dos fundamentos do pedido acima enunciados -, precisamente quando escrevem que o princípio da separação entre a Igreja e o Estado é infringido pela Portaria nº 333/86, "na parte em que prevê que essa disciplina seja ministrada pelos próprios professores do ensino primário (designadamente nas cláusulas 2ª, 10ª e 14ª)". [Anote-se que a referência à cláusula 10ª constitui manifestamente um "lapsus calami", já que é o nº 11º, e não o nº 10º, que versa sobre os modos de ocupação dos alunos que não frequentem a disciplina de Religião e Moral Católicas , enquanto...