Acórdão nº 1731/16.9T8CSC.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 14-05-2019
Data de Julgamento | 14 Maio 2019 |
Case Outcome | CONCEDIDA A REVISTA |
Classe processual | REVISTA |
Número Acordão | 1731/16.9T8CSC.L1.S1 |
Órgão | Supremo Tribunal de Justiça |
I – AA intentou, em 14/6/16, acção de impugnação e de investigação de paternidade e acção de petição com reconhecimento de qualidade sucessória contra BB (mãe do falecido CC), DD (filho do falecido CC), EE (filha do falecido ..... FF (viúva do falecido CC) e GG (pai registado da autora), impugnando a paternidade registral presumida de GG e pedindo que fosse reconhecida e declarada a paternidade biológica por parte de CC e reconhecida a qualidade sucessória da autora relativamente à herança de CC.
Alegou, em síntese, que nasceu em 9/11/79, tendo sido registada como filha de HH e GG.
CC faleceu, em Outubro de 79, tendo a autora nascido um mês após o seu falecimento.
Em Abril de 2009, estando a autora grávida de sua filha (4 meses), em discussão havida com o pai de sua filha, este disse-lhe que ela não seria filha de seu pai, mas sim do falecido CC, que em vida teria tido um romance com sua mãe e que tal era do conhecimento público no círculo social que frequentavam.
Incrédula, a autora procurou seu primo DD, que lhe revelou haver rumores no seio da família da verosimilhança dessa hipótese, tendo ambos efectuado testes de ADN, os quais revelaram fortíssima probabilidade de serem irmãos.
Seu primo DD pediu-lhe para que o assunto ficasse por aí e afastou-se da autora.
Os anos de 2010 a 2012 foram muito conturbados, deteriorando-se as relações familiares da autora e sua família, sucedendo o mesmo com sua mãe que sempre negou tal possibilidade.
7 anos volvidos sobre o confronto com sua mãe, contactou o pai e este disse-lhe que tinha dentro de si uma desconfiança mas que sempre tinha preferido acreditar que tal não seria verdade
A autora viveu tempos de angústia profunda, questionando sempre a sua identidade, culminando com uma depressão.
A autora vive com um sentimento de não pertença a nenhuma das famílias, pois sabe que aquele a quem sempre chamou de pai não é o seu pai biológico, como sabe que pertence a uma família onde tem irmãos e sobrinhos que também são primos direitos de sua filha.
Defendendo a imprescritibilidade do direito pugnou pela inconstitucionalidade dos arts. 1817.º/1 e 3, aplicável por remissão do art. 1873.º, e 1842.º/1 CC, por violação dos arts. 26.º/1, 36.º/1 e 18.º CRP.
Nas contestações, FF (viúva de CC), DD e EE (filhos de CC), excepcionaram a preterição de litisconsórcio necessário passivo (art.º 1846.º CC), a ilegitimidade da 1ª autora (art.º 1819.º CC), a caducidade do direito de intentar a acção, impugnaram o alegado pela autora, pugnaram pela constitucionalidade das normas invocadas concluindo pela absolvição da 1ª e 5º réus da instância e pela absolvição de todos os réu do pedido – fls. 97 e sgs. e 130 e sgs.
Na réplica a autora requereu a intervenção principal provocada de sua mãe, concluindo pela improcedência das excepções arguidas e pela declaração de inconstitucionalidade das normas invocadas na p.i – fls. 151 e sgs.
Na resposta (art. 3.º/3 CPC), os réus não se opondo ao chamamento, concluíram como nas contestações – fls. 201 e sgs.
Foi proferido despacho saneador-sentença que:
– declarou não ser cumulável o pedido de reconhecimento e de declaração da qualidade sucessória da autora relativamente à herança do falecido ........... com os demais (impugnação e averiguação de paternidade), declarando o tribunal materialmente incompetente para o conhecer;
– Julgou a 1.ª ré parte ilegítima, ex vi arts. 1846.º/1, 1873.º e 1819.º CC;
– Colmatando a preterição de litisconsórcio necessário passivo, admitiu a intervenção principal provocada da mãe da autora, HH, na qualidade de ré, ex vi arts. 1846.º CC, 261.º/1, 262.º b), 316.º/1 e 318.º CPC;
– Pronunciando-se no sentido da constitucionalidade das normas dos arts. 1817.º/1 e 3, aplicável por remissão do art. 1873.º, e 1842.º/1 CC, com fundamento na inobservância dos prazos de 10 e 3 anos, atentas as datas da propositura da acção (14/6/16), data de nascimento da autora (9/11/79), data do conhecimento em que pode concluir não ser filha do marido de sua mãe (22/4/2009 – art. 14 p.i., concluiu pela procedência da excepção peremptória de caducidade, absolvendo os réus do pedido – fls. 205 e sgs.
Inconformada a autora apelou, sem sucesso, já que a Relação julgou a apelação improcedente e, consequentemente, confirmou a decisão.
Inconformado com tal decisão, veio a Autora interpor, para este Supremo Tribunal, recurso de revista excepcional que foi admitido.
Porém, os recorridos vieram reclamar da admissão, tendo a Formação declarado nulo o acórdão proferido e convidado a recorrente a escolher o acórdão-fundamento e a atentar no requisito do trânsito em julgado.
Dessa decisão veio a Autora recorrer de revista, a qual não foi admitida mas foi admitida a revista excepcional inicialmente proposta, com fundamento na alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC e tendo como acórdão-fundamento o deste Tribunal de 15.11.2011, processo n.º 49/07.2TBRSD.P1.S1.
A recorrente apresentou as suas alegações, formulando, em síntese, as seguintes conclusões:
1. O prazo do artigo 1842º, nº 1, c), do CC, na medida em que é limitador da possibilidade de o filho do marido da mãe impugnar, a todo o tempo, a sua paternidade, constitui uma salvaguarda desproporcional dos valores de certeza e segurança jurídica esbarrando contra a defesa do direito à identidade, consagrado pelo artigo 26º, nº 1, da CRP.
2. As razões de segurança jurídica, fundadas na paz social que advém dum quadro jurídico-familiar estabilizado, mesmo não correspondendo à verdade biológica, deixam de fazer sentido perante o devir social, bem como perante a insegurança da possibilidade da "paternidade nenhuma",
3. Numa época em que a paternidade pode ser determinada cientificamente com testes de ADN, seria incompreensível que esta prova ficasse prisioneira da prova por presunção estabelecida no artigo 1826, n.º 1, do CC.
4. Deste modo, o respeito, puro e simples, pela verdade biológica sugere, claramente, a imprescritibilidade, não só do direito de investigar como do direito de impugnar.
5. O critério da decisão do "momento certo" pode ser mutável, em correspondência com a variação no tempo dos quadros relacionais e situacionais que podem influenciar uma tomada de decisão, tal como são subjetivamente sentidos e interpretados pelo pretenso filho.
6. A afirmação do interesse pela investigação, numa fase etária mais avançada, pode ser legitimamente influenciada pela consideração (só então possível) do interesse de outros igualmente afetados pelo desconhecimento da ascendência do investigante, nomeadamente os seus descendentes.
7. Não é legitimo que por inércia do pretenso filho, o pretenso neto, também não o seja.
8. Perante a verdade biológica, não pode prevalecer a verdade presumida legalmente estabelecida quando o bem em causa é o direito à identidade.
9. A prova irrefutável da não paternidade torna injusta e inútil a subsistência do vínculo legalmente presumido, para além dos inconvenientes e repercussões da manutenção de um vínculo falso (consanguinidade, genética, saúde).
10. O direito ao desenvolvimento da personalidade", introduzido pelo artigo 26º, nº 1, da CRP significa para o pretenso filho o exercício do direito de investigar e determinar as suas origens, a sua família e a sua "localização" no sistema de parentesco, enquanto para o pai se traduz no direito de ilidir a presunção de paternidade contrária à verdade biológica.
11. O direito a conhecer a paternidade como um direito inviolável e imprescritível cuja tutela é imposta no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição.
12. A decisão de avançar para um processo de estabelecimento judicial da ascendência biologicamente verdadeira convoca a uma reflexão prévia e profunda sobre aspetos pessoalíssimos da pessoa humana, aspetos de ordem moral, social e patrimonial não compatíveis com a existência de prazos legais para o exercício deste direito.
13. A paz da família conjugal do investigado e da reserva da vida privada deste perderam importância e devem ser olhados como interesses menores face ao superior interesse do investigando? ‑ de conhecer e ver reconhecida juridicamente as origens da sua existência.
14. Apenas invoca a caducidade, quem receia a verdade. A única forma de acabar verdadeiramente com a insegurança é a obrigatoriedade da impugnação e da investigação da paternidade.
15. O caso sub judice merece em última análise a ponderação do caso concreto e perante ele decidir em justiça e consciência de acordo com critérios de equidade.
16. A última pronúncia do Tribunal Constitucional sobre matéria da mesma natureza, defende os direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade como corolários da Constituição da República Portuguesa, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, nº 2, com o artigo 26.º, nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.
POR TAIS RAZÕES, EXPOSTAS SUCINTAMENTE, ENTENDE-SE QUE OCORRE A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1817° N.º 1 E N.º 3, (POR REMISSÃO DO ARTIGO 1873º) E DO ARTIGO 1842 N.º 1, TODOS DO CC.
NÃO DEVENDO SER JULGADA PROCEDENTE A EXCEÇÃO DA CADUCIDADE, MAS SIM DECRETADA A INCONSTITUCIONALIDADE DOS ARTIGOS 1817º N.º 1 E Nº 3, (POR REMISSÃO DO ARTIGO 1873º) E DO ARTIGO 1842 N.º 1, TODOS DO CC.
Pede, em consequência, que, na procedência do recurso, seja revogada o acórdão e seja julgada procedente a acção.
Não houve contralegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A) De Facto
Os factos com interesse para a decisão constam do extractado supra.
B) De Direito
A questão a decidir consiste em saber se caducou ou não o direito da Autora de propositura da presente acção de investigação de paternidade, o que, no caso dos autos se reconduz à questão de saber se o prazo de dez anos após a maioridade ou emancipação, que actualmente está fixado no art. 1817.º,...
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