Acórdão nº 1523/13.7TJPRT.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 02-06-2014
Data de Julgamento | 02 Junho 2014 |
Número Acordão | 1523/13.7TJPRT.P1 |
Ano | 2014 |
Órgão | Tribunal da Relação do Porto |
1523/13.7TJPRT.P1
Sumário do acórdão proferido no processo nº 1523/13.7TJPRT.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
1. Não há omissão de pronúncia sempre que o tribunal a quo, no exercício da sua liberdade de qualificação jurídica, conhece de questão que configura defesa por excepção e cuja procedência prejudica o conhecimento da pretensão accionada.
2. Não há excesso de pronúncia sempre que o tribunal a quo, no exercício da sua liberdade de qualificação jurídica, conhece de excepção peremptória cujo conhecimento não esteja dependente da vontade do interessado, apenas com base na factualidade trazida a juízo pela defesa, mesmo que essa factualidade não tenha sido qualificada juridicamente como o fez o tribunal.
3. A entrega da coisa cuja venda foi prometida para o futuro não envolve quaisquer efeitos translativos do direito de propriedade dessa coisa, apenas facultando que o gozo da coisa cuja venda foi prometida no futuro seja antecipadamente colocado na disponibilidade do promitente comprador.
4. Mesmo quando ilícita, a cessão do gozo da coisa dada em locação financeira não implica a invalidade do acto de cessão, mas importa antes a eventual resolução do contrato de locação financeira, ex vi artigo 17º do decreto-lei nº 149/95, de 24 de Junho, sendo ineficaz relativamente ao locador a cessão do gozo não consentida.
5. Ao nível das relações entre locatário financeiro e o promitente comprador da coisa locada a quem ao abrigo do contrato-promessa de compra e venda tenha sido concedido o gozo da coisa locada, mantendo-se operante a fonte contratual que esteve subjacente à concessão do gozo da coisa, essa concessão do gozo só pode extinguir-se por mútuo consentimento ou nalgum caso legalmente previsto (artigo 406º, nº 1, do Código Civil).
1. Relatório
A 30 de Setembro de 2013, nos Juízos Cíveis do Porto, B…, Lda. instaurou procedimento cautelar comum contra C… pedindo que, sem audiência do requerido, se ordene que este proceda à imediata entrega do veículo automóvel de matrícula ..-HA-...
Para fundamentar a sua pretensão, a requerente alega, em síntese, que na sequência de acordo com o requerido, então seu comissionista, para facilitar a aquisição de uma viatura por parte deste, outorgou um contrato de locação financeira relativamente ao veículo de matrícula ..-HA-.., comprometendo-se o requerido a deduzir o valor das prestações do leasing, bem como os custos relacionados, aos montantes das comissões que tivesse a receber da requerente. Entretanto o requerido deixou de prestar serviço à requerente e deixou de pagar as prestações do leasing, que vêm sendo suportadas pela requerente. Alega ainda que o veículo continua em poder do requerido e a ser por ele utilizado, encontrando-se em permanente desgaste e desvalorização, receando a requerente que dele seja feito um uso que seja ainda mais lesiva dos seus interesses.
A 02 de Outubro de 2013 foi proferido despacho a indeferir a não audição prévia do requerido e após trânsito de tal decisão, foi efectuada a citação do requerido.
C… veio deduzir oposição alegando, em síntese, que foi acordado que pagaria as prestações do leasing celebrado pela requerente referente ao veículo de matrícula ..-HA-.. e que no final do pagamento contratado, seria necessariamente transmitido para si o direito de propriedade de tal veículo, tendo o opoente dado em pagamento inicial um veículo de que era dono, de matrícula QT-..-... Alega ainda que é credor da requerente no montante global de € 12.173,35, invocando ser titular de direito de retenção que lhe faculta continuar a deter o veículo cuja entrega é pretendida pela requerente, declarando ainda opor-se a eventual requerimento de inversão do contencioso.
A 04 de Novembro de 2013 foi proferido despacho declarando a incompetência territorial dos Juízos Cíveis do Porto, ordenando-se a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Gondomar e, efectuada a remessa, vieram os autos a ser distribuídos ao terceiro Juízo de Competência Especializada Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Gondomar.
Realizou-se a audiência final, com produção da prova testemunhal oferecida pelas partes e a 20 de Fevereiro de 2014 foi proferida decisão final que julgou improcedente a providência cautelar de entrega do veículo de matrícula ..-HA-.. requerida por B…, Lda.
A 07 de Março de 2014, inconformada com a decisão final, B…, Lda. interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
“I. Na sentença colocada em crise, no seguimento do invocado pela requerente no seu requerimento inicial, resulta provado que a requerente, na qualidade de locatária, outorgou um contrato de locação financeira, relativamente à viatura de marca Skoda …, com a matrícula ..-HÁ-.., com a D…, S.A., nos termos do qual esta lhe concedeu o aluguer de um veículo automóvel, marca SKODA, matrícula ..-HA-.., pelo período de 84 meses, mediante a entrega de uma renda inicial de 2.500,00€ e termo em 20.12.2015.
II. Como decorrência própria da contratualização de um contrato de locação financeira, constituiu-se a requerente e locatária no direito de crédito sobre o referido bem.
III. É esse preciso direito – de crédito –, nos presentes autos invocado pela requerente, que a mesma pretende ver reconhecido e salvaguardado, porquanto assiste à sua reiterada violação, impedida de exercer o gozo sobre a referida coisa. Contudo,
IV. O direito de crédito invocado pela requerente, pese embora sumariamente dado como provado em sede de fundamentação quanto à factualidade em causa, não constituiu objecto de apreciação e decisão por parte do Tribunal a quo, que nenhuma referência estabeleceu a seu respeito.
V. Entendeu o Tribunal a quo - erroneamente, como se demonstrará seguidamente -, que em discussão nos presentes autos estava um contrato-promessa de compra e venda, com traditio, celebrado entre as partes, pelo que não se pronunciou sobre o direito de crédito invocado pela requerente.
VI. Tendo resultado da matéria de facto dada como provada a celebração do referido contrato de Leasing;
VII. Tendo resultado da matéria de facto dada como provada a assunção, pela requerente, e até à presente data, de todas as obrigações contratuais daí decorrentes;
VIII. Tendo resultado da matéria de facto dada como provada a privação da utilização do veículo em causa;
IX. Mal andou o Tribunal a quo ao omitir pronunciar-se sobre a existência de tal direito, bem como sobre o preenchimento dos restantes pressupostos legais que se impõem ao decretamento da providência cautelar requerida.
X. Perante tal omissão, viu a requerente ser-lhe denegada a Justiça que procurava, não porque a decisão se apresentou desfavorável à sua pretensão, mas porque a mesma se revelou absolutamente indiferente à contenda trazidas aos autos.
XI. Como tal, a sentença de que ora se recorre enferma de nulidade, nos termos do artigo 615º/1,d).
Sem prescindir,
XII. O Meritíssimo Tribunal a quo qualifica a factualidade dada como provada como consubstanciando um contrato-promessa de compra e venda com traditio celebrado entre as partes, decidindo com base em tal consideração jurídica.
XIII. Contudo, e salvo melhor opinião, o circunstancialismo fáctico em causa não encontra qualquer enquadramento na figura jurídica apontada. Senão vejamos,
XIV. É um facto que as partes acordaram...
Sumário do acórdão proferido no processo nº 1523/13.7TJPRT.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
1. Não há omissão de pronúncia sempre que o tribunal a quo, no exercício da sua liberdade de qualificação jurídica, conhece de questão que configura defesa por excepção e cuja procedência prejudica o conhecimento da pretensão accionada.
2. Não há excesso de pronúncia sempre que o tribunal a quo, no exercício da sua liberdade de qualificação jurídica, conhece de excepção peremptória cujo conhecimento não esteja dependente da vontade do interessado, apenas com base na factualidade trazida a juízo pela defesa, mesmo que essa factualidade não tenha sido qualificada juridicamente como o fez o tribunal.
3. A entrega da coisa cuja venda foi prometida para o futuro não envolve quaisquer efeitos translativos do direito de propriedade dessa coisa, apenas facultando que o gozo da coisa cuja venda foi prometida no futuro seja antecipadamente colocado na disponibilidade do promitente comprador.
4. Mesmo quando ilícita, a cessão do gozo da coisa dada em locação financeira não implica a invalidade do acto de cessão, mas importa antes a eventual resolução do contrato de locação financeira, ex vi artigo 17º do decreto-lei nº 149/95, de 24 de Junho, sendo ineficaz relativamente ao locador a cessão do gozo não consentida.
5. Ao nível das relações entre locatário financeiro e o promitente comprador da coisa locada a quem ao abrigo do contrato-promessa de compra e venda tenha sido concedido o gozo da coisa locada, mantendo-se operante a fonte contratual que esteve subjacente à concessão do gozo da coisa, essa concessão do gozo só pode extinguir-se por mútuo consentimento ou nalgum caso legalmente previsto (artigo 406º, nº 1, do Código Civil).
***
Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:1. Relatório
A 30 de Setembro de 2013, nos Juízos Cíveis do Porto, B…, Lda. instaurou procedimento cautelar comum contra C… pedindo que, sem audiência do requerido, se ordene que este proceda à imediata entrega do veículo automóvel de matrícula ..-HA-...
Para fundamentar a sua pretensão, a requerente alega, em síntese, que na sequência de acordo com o requerido, então seu comissionista, para facilitar a aquisição de uma viatura por parte deste, outorgou um contrato de locação financeira relativamente ao veículo de matrícula ..-HA-.., comprometendo-se o requerido a deduzir o valor das prestações do leasing, bem como os custos relacionados, aos montantes das comissões que tivesse a receber da requerente. Entretanto o requerido deixou de prestar serviço à requerente e deixou de pagar as prestações do leasing, que vêm sendo suportadas pela requerente. Alega ainda que o veículo continua em poder do requerido e a ser por ele utilizado, encontrando-se em permanente desgaste e desvalorização, receando a requerente que dele seja feito um uso que seja ainda mais lesiva dos seus interesses.
A 02 de Outubro de 2013 foi proferido despacho a indeferir a não audição prévia do requerido e após trânsito de tal decisão, foi efectuada a citação do requerido.
C… veio deduzir oposição alegando, em síntese, que foi acordado que pagaria as prestações do leasing celebrado pela requerente referente ao veículo de matrícula ..-HA-.. e que no final do pagamento contratado, seria necessariamente transmitido para si o direito de propriedade de tal veículo, tendo o opoente dado em pagamento inicial um veículo de que era dono, de matrícula QT-..-... Alega ainda que é credor da requerente no montante global de € 12.173,35, invocando ser titular de direito de retenção que lhe faculta continuar a deter o veículo cuja entrega é pretendida pela requerente, declarando ainda opor-se a eventual requerimento de inversão do contencioso.
A 04 de Novembro de 2013 foi proferido despacho declarando a incompetência territorial dos Juízos Cíveis do Porto, ordenando-se a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Gondomar e, efectuada a remessa, vieram os autos a ser distribuídos ao terceiro Juízo de Competência Especializada Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Gondomar.
Realizou-se a audiência final, com produção da prova testemunhal oferecida pelas partes e a 20 de Fevereiro de 2014 foi proferida decisão final que julgou improcedente a providência cautelar de entrega do veículo de matrícula ..-HA-.. requerida por B…, Lda.
A 07 de Março de 2014, inconformada com a decisão final, B…, Lda. interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
“I. Na sentença colocada em crise, no seguimento do invocado pela requerente no seu requerimento inicial, resulta provado que a requerente, na qualidade de locatária, outorgou um contrato de locação financeira, relativamente à viatura de marca Skoda …, com a matrícula ..-HÁ-.., com a D…, S.A., nos termos do qual esta lhe concedeu o aluguer de um veículo automóvel, marca SKODA, matrícula ..-HA-.., pelo período de 84 meses, mediante a entrega de uma renda inicial de 2.500,00€ e termo em 20.12.2015.
II. Como decorrência própria da contratualização de um contrato de locação financeira, constituiu-se a requerente e locatária no direito de crédito sobre o referido bem.
III. É esse preciso direito – de crédito –, nos presentes autos invocado pela requerente, que a mesma pretende ver reconhecido e salvaguardado, porquanto assiste à sua reiterada violação, impedida de exercer o gozo sobre a referida coisa. Contudo,
IV. O direito de crédito invocado pela requerente, pese embora sumariamente dado como provado em sede de fundamentação quanto à factualidade em causa, não constituiu objecto de apreciação e decisão por parte do Tribunal a quo, que nenhuma referência estabeleceu a seu respeito.
V. Entendeu o Tribunal a quo - erroneamente, como se demonstrará seguidamente -, que em discussão nos presentes autos estava um contrato-promessa de compra e venda, com traditio, celebrado entre as partes, pelo que não se pronunciou sobre o direito de crédito invocado pela requerente.
VI. Tendo resultado da matéria de facto dada como provada a celebração do referido contrato de Leasing;
VII. Tendo resultado da matéria de facto dada como provada a assunção, pela requerente, e até à presente data, de todas as obrigações contratuais daí decorrentes;
VIII. Tendo resultado da matéria de facto dada como provada a privação da utilização do veículo em causa;
IX. Mal andou o Tribunal a quo ao omitir pronunciar-se sobre a existência de tal direito, bem como sobre o preenchimento dos restantes pressupostos legais que se impõem ao decretamento da providência cautelar requerida.
X. Perante tal omissão, viu a requerente ser-lhe denegada a Justiça que procurava, não porque a decisão se apresentou desfavorável à sua pretensão, mas porque a mesma se revelou absolutamente indiferente à contenda trazidas aos autos.
XI. Como tal, a sentença de que ora se recorre enferma de nulidade, nos termos do artigo 615º/1,d).
Sem prescindir,
XII. O Meritíssimo Tribunal a quo qualifica a factualidade dada como provada como consubstanciando um contrato-promessa de compra e venda com traditio celebrado entre as partes, decidindo com base em tal consideração jurídica.
XIII. Contudo, e salvo melhor opinião, o circunstancialismo fáctico em causa não encontra qualquer enquadramento na figura jurídica apontada. Senão vejamos,
XIV. É um facto que as partes acordaram...
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