Acórdão nº 151/14.4T3GDL.E2.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 25-10-2023

Data de Julgamento25 Outubro 2023
Case OutcomePROVIDO EM PARTE
Classe processualRECURSO PENAL
Número Acordão151/14.4T3GDL.E2.S1
ÓrgãoSupremo Tribunal de Justiça

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Relatório

1.1. No Processo Comum Colectivo n.º 151/14.4T3GDL, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Central Criminal de ... - Juiz 3, foi proferido acórdão a decidir:

“I) Operar o cúmulo jurídico, de harmonia com os ditames dos arts. 77.º e 78.º do Código Penal, das penas parcelares aplicadas nos presentes autos e no processo n.º 206/12.0... e condenar o arguido AA na pena única que se fixa em 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

II) Determinar, à luz do normativo do artigo 43.º, n.º 1, al. b) do Código Penal que o arguido AA cumpra o remanescente de prisão resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º do Código Penal ( sendo levado à operação de desconto a pena de 4 anos e 9 meses que integralmente expiou) em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, condicionada a avaliação por parte da DGRSP das condições para a instalação de meios de controlo à distância, que que solicitará.

III) Execução que se cumula com a proibição de contactos com menores de 16 anos de idade (que não os filhos) na sua habitação, mormente no desempenho de tratamentos naturais, atividade que pretende (e/ou vem) desenvolvendo e ainda a proibição do exercício ou desenvolvimento de qualquer atividade que envolva ou implique o contacto com menores – n.º 4, als. d) e e) do citado normativo.

IV) Mantém em tudo o mais, o decidido nos processos identificados em i).”

Inconformado com o decidido, interpôs o arguido recurso (para o Tribunal da Relação de Évora, que, em decisão sumária de declaração de incompetência material, procedeu à remessa para o Supremo Tribunal de Justiça, onde foi aceite), concluindo:

“A) O arguido não pode conformar-se com a pena única determinada no acórdão cumulatório que lhe foi notificado e que fixou uma pena de 6 anos e 6 meses de prisão, pela prática de 4 crimes de abuso sexual de criança, com as penas parcelares de 3 anos e 6 meses, 2 anos, 2 anos e 2 anos e 9 meses.

B) A pena única determinada no cúmulo, resultante de concurso superveniente realizado a pedido do arguido, peca por manifestamente excessiva e desproporcionada ao caso concreto e à realidade do arguido a todos os níveis.

C) Tendo presente a base abstracta em que se balizava o Tribunal a quo para a realização do cúmulo – que ia desde uma pena mínima de 3 anos e 6 meses até uma pena máxima de 10 anos e 3 meses – o factor de compressão utilizado pelo Tribunal foi desproporcional ao caso.

D) De notar que no cúmulo inicial realizado pelo Tribunal no âmbito do processo 206/12, (cuja pena única determinada foi de 4 anos e 9 meses para penas parcelares de 3 anos e 6 meses, 2 anos e 2 anos) foi utilizado um factor de compressão de menos de 1/3, sendo certo que à data não militavam a favor dos arguidos nem metade das circunstâncias que hoje se verificam e que o Tribunal a quo dá como provados no acórdão.

E) Contudo, no acórdão cumulatório ora sindicado o factor de compressão utilizado, em lugar de mais favorável ao arguido, foi na verdade bem mais gravoso, aproximando-se do 1/2 de valoração das penas parcelares.

F) Não foram devidamente considerados pelo Tribunal a quo, nomeadamente, i) a inexistência de antecedentes criminais do arguido antes dos factos provados; ii) o facto do último dos actos praticados com relevância criminal datar de há mais de 12 anos sem que até à data tenha sido cometido qualquer outro crime ou haver notícia do 27/32 cometimento de qualquer outro ilícito; iii) o facto de o arguido ter cumprido integralmente uma pena de prisão no EP de 4 anos e 9 meses, de forma ininterrupta, sem gozo de uma única medida de flexibilização da pena; iv) o facto de o arguido estar em liberdade desde Maio de 2020 sem que desde então tenha cometido qualquer ilícito, mesmo em pela liberdade; v) o facto de o arguido ter encontrado nova ocupação profissional distinta da Advocacia, sendo que os actos pelos quais foi condenado surgiram no exercício dessa referida profissão.

G) Assim, deveria o Acórdão recorrido ter considerado que as razões de prevenção especial positivas aplicáveis ao caso seriam meramente residuais e não medianas como erradamente valorou, até porque considerou que acredita que o mesmo não voltará a cometer os ilícitos pelos quais foi aqui julgado e que o não exercício das funções de ... demonstrar o menor risco de repetição destas condutas por ter sido o contexto em que antes ocorreram. Ao decidir contra os factos dados como provados e a própria convicção manifestada no texto do Acórdão, ocorreu também aqui um crasso erro de julgamento que se impõe corrigir.

H) Mais, ao nível da prevenção geral, tampouco está correcta a consideração pelo Acórdão de que estamos perante exigências elevadas. Na verdade, a prevenção geral positiva imposta pelo art.º 40.º do CP impõe que se passe à comunidade um sinal de funcionamento da instituição Justiça perante o caso concreto, o que manifestamente aconteceu neste caso com o cumprimento pelo arguido de uma pena de prisão de 4 anos e 9 meses.

I) Ainda para mais quando tal prisão foi publicamente noticiada no meio pequeno que é a comunidade do arguido (...) e mais ainda quando o mesmo era uma figura pública ao nível da política local (concelhia do PS de ...) e ..., o que tudo deixou de ser em consequência destes processos. O sinal passado, pois, é o de que a Justiça funcionou, mesmo perante os “poderosos”, por queixa de pessoas humildes e algumas delas de condição económica muito modesta.

J) Adicionalmente, não podemos ignorar a muito recente jurisprudência deste mesmo Venerando TRE, a propósito de uma situação de abuso sexual de crianças consistente em toques/carícias por cima da roupa, que no acórdão proferido no processo 95/17.8JASTB.E2 de 24/05/2022 foram consideradas integradoras de um crime de importunação sexual e já não de abuso sexual (assim não configurando acto sexual de relevo), exactamente o que o arguido defendeu neste mesmo TRE e foi desconsiderado.

K) O surgimento deste douto acórdão é também ele um factor que deve sopesar na análise da prevenção geral, pois que a gravidade deste tipo de condutas não tem a magnitude

que o Tribunal a quo lhe pretende conferir, nem assim o impacto na comunidade é tão grande quanto aquele que se pretende dar a entender, o que não pode deixar de ser considerado no cúmulo a realizar - art.º 71.º, n.º 2, alíneas a) e b) do CP.

L) Haveria, assim, o acórdão de ter considerado que também as razões de prevenção geral que cumpriria acautelar no caso em apreço eram residuais e não elevadas como entendeu erradamente, também aqui incorrendo em erro de julgamento quanto à realidade do arguido e o impacto do processo na comunidade considerando a realidade do mesmo.

M) De tudo quanto acima se expôs resulta que as regras para a realização do cúmulo de penas foram violadas pelo acórdão recorrido, designadamente as previstas nos artigos 71.º, nºs 1 e 2; 77.º, nºs 1 e 2; 78.º, n.º 1 e 40.º nºs 1 e 2 do CP, impondo-se a sua anulação e substituição por outra decisão que valore adequadamente a realidade do arguido, face aos factos dados como provados, efectuando um cúmulo que corresponda ao tempo de pena de prisão já cumprido pelo arguido, de 4 anos e 9 meses, conforme peticionado.

Por outro lado,

N) A decisão recorrida é, também, ilegal na medida em que aplica uma proibição de contacto do arguido com menores de 16 anos durante o período do seu cumprimento de pena remanescente, “mormente” no âmbito do exercício das funções que ora exerce de terapias naturais, estendendo assim esta proibição a uma categoria geral e abstracta de pessoas, fora do âmbito do contexto em que ocorreram os factos provados, o que a Lei e a Constituição não consentem.

O) Inexiste qualquer fundamento atendível, fáctico ou jurídico, que permita ao Tribunal a quo estender esta proibição de contactos do arguido com menores de 16 anos fora do contexto do exercício de funções profissionais que é o que acontece quando acrescenta a palavra “mormente” que perpassa a ideia de mera exemplificação/não taxatividade das situações em que a proibição de contactos opera.

P) A norma invocada pelo Tribunal a quo para sustento deste segmento decisório [artigo 43.º, n.º 4 alínea e)] não tem qualquer aplicação ao caso em apreço, pois tal norma pressupõe a proibição de contactos com pessoas individualizadas, o que em regra é dirigido às próprias vítimas das condutas criminosas apuradas. Assim, o Tribunal fez uma aplicação errada da norma jurídica em causa, carecendo de sustento legal para determinação desta proibição generalizada e abstracta de contacto do arguido com quaisquer menores de 16 anos que não sejam seus familiares.

Q) Entendemos, pois, que a norma aludida, na interpretação dada pelo acórdão recorrido, atenta contra o art.º 25.º, n.º 2; 26.º, nºs 1, 2 e 4; 29.º, nºs 3 e 4; 30.º, nºs 4 e 5; 45.º n.º 1, todos da CRP, inconstitucionalidade que ora expressamente se invoca, para todos os legais efeitos, designadamente para efeitos de eventual recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no art.º 72.º, n.º 2 da “LTC”.

Finalmente,

R) A aplicação ao arguido de uma pena de 6 anos e 6 meses, em regime de permanência na habitação, conforme pedido por si, não pode – como resulta do acórdão recorrido – consubstanciar uma tolerância do Tribunal para com o arguido para não cortar um processo de ressocialização em curso e, simultaneamente, um castigo mais gravoso do que aquele que resultaria do cumprimento desse remanescente da pena em reclusão num EP.

S) E a verdade é que a decisão recorrida incorre na violação do disposto no art.º 61.º, n.º 4 do CP quando refere, ao transcrever o art.º 43.º, n.º 5 do CP, que quando a pena de prisão é aplicada em regime de prisão domiciliária, não há lugar a liberdade condicional.

T) Desde logo a norma contida no actual n.º 5...

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