Acórdão nº 1455/09.3TABRR.L1-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 20-10-2011
Data de Julgamento | 20 Outubro 2011 |
Case Outcome | REJEITADO |
Classe processual | RECURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL) |
Número Acordão | 1455/09.3TABRR.L1-A.S1 |
Órgão | Supremo Tribunal de Justiça |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
No processo nº 1455/09.3tbrr.l1, da 9ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, provindo do 1º Juízo Criminal da comarca do Barreiro, vem a arguida recorrida AA, com os demais sinais dos autos, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, “nos termos e para os efeitos do disposto no Art. 437.°, n.º 2 do CPP e com os seguintes fundamentos:
I. INTRODUÇÃO: QUESTÃO JURÍDICA CONTROVERSA.
1. A Recorrente exerce de profissão a função de Conservadora do Registo Predial do Barreiro.
2. No âmbito das suas funções, a Recorrente foi acusada de ter cometido, em autoria material, crime de desobediência, previsto e punido no Art. 348.°, n.o 1, aI. b) do CP, pela recusa da prática de certos actos registrais ordenados judicialmente, em 25.06.2008, pelo Mmo. Juiz de Direito do 2.° Juízo Cível do Tribunal de Família e de Menores e de Comarca do Barreiro, no âmbito do processo com o n.º 10/1999.
3. A ordem judicial em causa determinou o seguinte: "(. . .) cancele todos os registos de hipotecas e penhoras que à data da venda ainda subsistam sobre o imóvel vendido nestes autos", a qual não foi cumprida pela Recorrente porquanto a mesma se encontrava ferida de ilegalidade.
4. Na verdade, como tem vindo comummente a ser aceite pela nossa jurisprudência, e resulta da vontade do legislador, não basta determinar o cancelamento genérico dos registos pendentes, ou seja, dos direitos existentes. O juiz está vinculado, no âmbito do processo executivo, a identificar expressamente as inscrições cujo cancelamento pretende, obrigação que decorria, à data da prática dos factos, do disposto no Art. 888.° do CPC, na redacção que lhe foi dada pelo DL n,º 38/2003, de 8 de Março, já que não se inclui nas competências da Recorrente a verificação das inscrições que devem ser canceladas.
5. Antes pelo contrário, dentro dos poderes da Recorrente, insere-se o poder de qualificação dos actos susceptíveis ou não de ser registados, pelo que, caso o Art. 68.° do Código do Registo Predial seja interpretado no sentido de ceder perante ordens judiciais ilegais, tal interpretação sempre seria inconstitucional por violação do princípio constitucional da separação de poderes.
6. Assim, a questão jurídica controversa que se coloca é a de saber se as ordens jurídicas que determinam a prática de actos registrais devem ou não ser específicas para que, depois, assente que está este ponto, saber se tal ordem é ou não legítima, nos termos e para os efeitos do disposto no Art. 348. ° do CP.
II. OPOSiÇÃO DE JULGADOS: ACÓRDÃO FUNDAMENTO.
7. A Recorrente, pese embora absolvida pelo Tribunal de Família e de Menores e de Comarca do Barreiro, foi posteriormente condenada em multa pelo douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de que ora se recorre.
8. No douto Acórdão da Relação a fls. dos autos escreve-se que "não só a lei. processual civil, civil ou registral. não impõe esse dever de especificação como também sabia, atenta a sua formação académica e profissional, que as orientações jurisprudenciais só valiam dentro dos processos em que foram proferidas" (sublinhado nosso), tese esta que. determinando a verificação do pressuposto da ordem legítima para efeito do preenchimento do tipo do Art. 348.° do CP, contraria frontalmente o sentido do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04.10.2005, Proc. n.º 1595/05 e disponível em www.dgsi.pt.
9. Com efeito, neste aresto pode ler-se, de forma clara e peremptória, "Ao impor-se, no artº 888° do CPC, o carácter oficioso do cancelamento dos registos de ónus ou encargos existentes sobre os bens vendidos em processo de execução, visou-se manter sobre o controle judicial a decisão relativa à caducidade dos direitos reais que devam caducar, nos termos do artº 824°, nº 2, do CC, pelo que deve o iuiz especificar ou identificar. no despacho relativo ao cumprimento do artº 888º do CPC. as inscricões reaistais que devam ser canceladas. não bastando que o faça através de uma ordem genérica e abstracta de cancelamento" (sublinhado nosso).
10. Resulta por isso claro que as soluções de direito agora versadas são antagónicas, gerando resultados práticos diametralmente opostos. Com efeito, caso a tese sufragada no Acórdão fundamento estivesse presente no Acórdão recorrido, nunca poderia ter sido a Recorrente condenada, porquanto não se encontram reunidos os pressupostos objectivos do tipo de crime de desobediência qualificada.
11. Paralelamente, as situações de facto em causa em ambos os arestos são em tudo idênticas, reportando-se ao mesmo domínio legislativo, qual seja a interpretação do Art. 888.° do CPC na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março.
12. Aliás, o facto do Acórdão fundamento ter sido produzido por uma secção civil, não obsta à identidade das causas, uma vez que figurando este aresto sobre o elemento objectivo que compõe o tipo penal, a decisão de um tem que ser forçosamente transponível para o outro.
13. Este Acórdão fundamento não surge, porém, isolado, sendo fruto de jurisprudência pacífica e consolidada, a qual, a par do Instituto dos Registos e Notariado e da Direcção-Geral dos Registos e do Notariado, sempre consideraram que só após a identificação das respectivas inscrições, pode a Conservatória de Registo Predial, através do respectivo conservador - no caso a Recorrente - proceder ao cumprimento do respectivo despacho judicial.
14. Esta competência é exclusiva do Tribunal, pelo que qualquer interferência neste ponto por parte da Recorrente sempre se traduziria na prática, pela mesma, de um acto ilegal.
15. Paralelamente, impondo o actual Art. 907.° do CPC ao Juiz o dever de ordenar, independentemente de qualquer pedido das partes, o cancelamento dos registos dos direitos reais que caducam, sempre terá de se entender que tal oficiosidade apenas se insere no âmbito do processo civil e já não na actividade registral, onde indubitavelmente vigora o princípio da instância (Cfr. Art. 41° do Código do Registo Predial).
16. Ou seja, não é adequado o entendimento segundo o qual o Juiz no âmbito do processo executivo pode promover a execução do cancelamento de determinado registo junto da Conservatória de Registo Predial, na medida em que esta execução representa uma verdadeira substituição às partes que são quem tem legitimidade para o efeito.
17. Assim, a decisão proferida pelo Tribunal de Execução, porquanto omissa quanto às inscrições que deviam ser objecto de cancelamento por parte da Conservatória do Registo Predial do Barreiro, foi manifestamente insuficiente e, consequentemente, contrária à lei, pelo que a recusa da Recorrente no seu cumprimento é legítima, não merecendo qualquer censura.
18. Com efeito, só o Juiz, em face do processo e da certidão de encargos que dele faz parte, pode verificar se todos os titulares dos direitos de garantia e demais direitos reais que caducam foram chamados aos autos, ou seja, só o Juiz pode proceder ao controlo de legalidade dos actos processuais praticados, estando o Conservador impedido de fazer tal verificação.
19. Pelo exposto, não resta senão concluir pela ilegalidade da ordem em causa nos autos e, logo, pela inverificação dos pressupostos necessários à cominação do tipo penal prescrito pelo douto Acórdão dos autos a fls. de que ora se recorre.
III. SENTIDO EM QUE DEVE FIXAR-SE A JURISPRUDÊNCIA CUJA FIXAÇÃO É PRETENDIDA.
20. Consequentemente, do ponto de vista da Recorrente, deverá ser fixada jurisprudência no sentido de: nos termos e para os efeitos do disposto no Art. 888.° do CPC, na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março, a recusa do Conservador do Registo Comercial em cumprir ordens judiciais genéricas de cancelamento de inscrições registrais não constitui uma ordem legítima, pelo que não se encontra preenchido o tipo objectivo nos termos e para os efeitos do disposto no Art. 348.°, n. 1, al. b) do CP.
21. Importa, contudo, que fique expresso não bastar para a licitude da ordem de cancelamento a menção de que devem ser cancelados "todos os registos", porquanto é considerável o hiato temporal entre o momento em que é proferido o despacho judicial e aqueloutro em que o requerimento de cancelamento é levado ao Senhor Conservador, podendo, entretanto, ter já ocorrido novas inscrições registrais sobre aquele bem sujeito a registo.
22. Pelo exposto, requer-se a V. Exas. a admissão do requerimento de recurso extraordinário, notificando-se as partes para a apresentarem, por escrito, no prazo de 15 dias, as suas alegações, nos termos e para os efeitos do disposto no Art. 442.°, n.º 1 do CPP.
Foi proferido despacho a admitir o recurso, cumprindo-se o disposto nos artigos 438º e 439º do CPP.
Neste Supremo Tribunal, o Dig.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer onde, além do mais, assinala:
a) A arguida AA, em 20 de Junho de 2011, veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão da Relação de Lisboa de 05 de Maio de 2011, proferido pela 9ª Secção, nos Autos de Recurso Penal à margem identificados, alegando que, relativamente a questão «de saber se as ordens jurídicas que determinam a prática de actos registrais devem ou não ser especificas para que, depois, assente que está este ponto, saber se tal ordem é ou não legitima, nos termos e para os efeitos do disposto no Art. 348.° do CP», o acórdão recorrido adoptou solução divergente da acolhida pelo acórdão da Relação de Coimbra de 04.10.2005, no Processo n.º 1595/05, disponível na base da dgsi.
Refere que «as situações de facto em ambos os arestos são em tudo idênticas, reportando-se ao mesmo domínio legislativo, qual seja a interpretação do Art. 888.° do CPC na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Marco».
b) Segundo a certidão de fls. 10, o acórdão recorrido transitou em 31 de Maio de 2011, tendo sido notificado ao Ministério Público a...
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