Acórdão nº 1116/10.0TAGRD.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 26-02-2014

Data de Julgamento26 Fevereiro 2014
Número Acordão1116/10.0TAGRD.C1
Ano2014
Órgão Tribunal da Relação de Coimbra
Acordam, em audiência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO


No 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca da Guarda o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, do arguido A...., com os demais sinais nos autos, a quem imputou a prática, em autoria material, de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo art. 150º, nº 2, do C. Penal, em concurso aparente com um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, p. e p. pelos arts. 148º, nº 3 e 144º, a) e d), todos do C. Penal.

A assistente B.... aderiu à acusação pública e deduziu pedido de indemnização contra o arguido com vista à sua condenação no pagamento de € 62.967,68 por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, e juros legais desde a data da prática dos factos, e no pagamento das despesas suportadas pelas instituições de saúde que lhe prestaram assistência médica em consequência das lesões sofridas.

Por sentença de 22 de Março de 2013 foi o arguido absolvido da prática dos imputados crimes de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos e ofensa à integridade física grave por negligência, e condenado, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nº 1 do C. Penal, na pena de 80 dias de multa á taxa diária de € 13, perfazendo a multa global de € 1.040.
Foi ainda o arguido condenado a pagar à assistente a quantia de € 3.000, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa de 4%, desde 24 de Dezembro de 2012 até integral pagamento, e absolvido do demais peticionado.

*
Inconformada com a decisão, recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
“ (…).
I. O arguido A.... foi absolvido da prática de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, previsto e punido pelo artigo 150º/2, do Código Penal e da prática de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto e punido pelos artigos 148º/s. 1 e 3 e artigo 144º/a) e d), todos do Código Penal.
II. Foi o arguido condenado pela prática, entre os dias 07 e 18 de Março de 2010, de um crime de ofensa à integridade física simples por negligência, previsto e punido pelo art. 148º, do Código Penal.
III. Na opinião do Ministério Público, face à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, conjugada com as regras da experiência comum, impunha-se uma decisão diferente pelo Tribunal "a quo", dando-se como provado que o arguido, enquanto médico, estava em condições de saber que, violava as regras da sua profissão, não cuidando de efectuar prescrição de antibioterapia e de estabelecer uma vigilância mais apertada, cerca de 7 a 10 dias sobre a alta hospitalar, conforme lhe era exigido pelos conhecimentos médicos que possuía, e que tal consulta de vigilância com a prescrição de antibioterapia, teria evitado o perigo de vir a desenvolver-se uma necrose,
IV. Que o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, tendo representado como consequência possível do facto de não prescrever antibioterapia e de não diligenciar por uma consulta de vigilância cerca de 7 a 10 dias sobre a alta hospitalar, a criação de dores e mal estar à assistente, bem como a criação de uma lesão grave facto que representou como possível e com o qual se conformou e porquanto deveria ter sido condenado pelo crime de que vinha acusado – pela prática de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, previsto e punido pelo artigo 150º/2, do Código Penal em concurso aparente com um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelos artigos 148º n.º l e 3 e 144º alíneas a) e d), todos do Código Penal.
V. O Ministério Público considera incorrectamente julgados os factos 17), 18), 19), 47) e 57) dados como provados e incorrectamente julgados como não provados as alíneas b), d), f), h), i), j) e k).
VI. Pela nossa parte, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, conjugada com as regras da experiência comum, impunha que o Tribunal "a quo" desse como provada, nos seguintes termos, a matéria de facto aludida nos factos 17), 18), 19), 47), 57) e nas alíneas b), d), f), h), n, j) e k);
FACTO 17) A consulta de controlo e vigilância referida em 8) e a prescrição de antibioterapia teriam evitado o perigo de vir a desenvolver-se uma necrose.
FACTO 18) O arguido colocou a possibilidade da assistente vir a desenvolver a necrose indicada em 11).
FACTO 19) O arguido, enquanto médico, estava em condições de saber que, violava as regras da sua profissão, não cuidando de efectuar prescrição de antibioterapia e de estabelecer uma vigilância mais apertada, cerca de 7 a 10 dias sobre a alta hospitalar, a fim de evitar o perigo de vir a desenvolver-se uma necrose.
FACTO 47) Foi colocada no membro inferior esquerdo tala gessada, que consiste na aplicação de uma calha de gesso envolvida por ligaduras.
FACTO 57) A prescrição de antibiótico era prudente.
ALÍNEA b) As ligaduras da tala gessada, envolveram e taparam o local da ferida.
ALÍNEA d) O arguido devia ter receitado antibiótico para evitar a infecção da escoriação.
ALÍNEA f) A consulta de vigilância referida em 8) teria evitado, o perigo de vir a desenvolver-se a necrose descrita em 11).
ALÍNEA h) Caso a assistente apenas tivesse comparecido na data designada pelo arguido para a consulta de acompanhamento do seu estado clínico, a infecção da lesão no membro inferior esquerdo teria alastrado de forma irremediável e conduzido à sua amputação ou mesmo à morte da assistente.
ALÍNEA i) O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, tendo representado como consequência possível do facto de não prescrever antibioterapia e de não diligenciar por uma consulta de vigilância cerca de 7 a 10 dias sobre a alta hospitalar, a criação de dores e mal estar à assistente, bem como a criação de uma lesão grave facto que representou como possível e com o qual se conformou.
ALÍNEA j) O arguido representou a criação de perigo para a vida ou de grave ofensa para o corpo e saúde da assistente.
ALÍNEA k) O arguido agiu de forma consciente.
VII. Devia ainda ter sido considerado como provado o seguinte facto: A necrose teve origem na escoriação ao nível anterior do tornozelo observada em 2).
VIII. O parecer apresentado pelo INML é um meio de prova particularmente qualificado, que, nos termos do art. 163º/1 e 2, do CPP, se presume subtraído à livre apreciação do julgador.
IX. O seu relator o Prof. Doutor E...., ouvido na qualidade de perito em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, salientou que a idade da paciente, associada a possíveis complicações vasculares e a circunstância da lesão se ter verificado no terço distal da perna esquerda, zona particularmente vulnerável sobretudo para as mulheres, eram factores acrescidos de risco, que teriam exigido segundo a boa prática médica a consulta de vigilância.
X. De notar ainda que sobre a antibioterapia esclareceu ser um procedimento prudente.
XI. É o próprio relator da perícia que atesta que segundo a sua experiência a necrose terá tido a sua origem na escoriação, sublinhou haver uma relação de causa efeito entre uma coisa e outra, não indicando sequer, quando questionado pelo Mm.o Juiz, outra possibilidade, mesmo que remota, outra causa para a necrose. Reiterou ser tal facto uma evidência.
XII. Conclui-se que para que o resultado em que se materializa o ilícito típico possa fundamentar a responsabilidade não basta a sua existência fáctica, sendo necessário que possa imputar-se objectivamente à conduta e subjectivamente ao agente. É pois, tendo presente, todos os elementos probatórios, os princípios expostos e as normas por que se deve pautar a actividade médica, que entendemos verificado o nexo de causalidade.
XIII. Ora o dolo embora assente em factos, como fenómeno que é da vida psíquica, não é passível de apreensão directa, mas é ilação a tirar das circunstâncias da infracção.
XIV. Ao contrário do homem médio (abstrato), leva-se agora em consideração as qualidades e capacidades pessoais do agente enquanto homem concreto.
XV. O arguido, nas suas declarações finais, referiu que também marca consultas a uma semana, desde que o caso o justifique.
XVI. Simplesmente, em relação à assistente, entendeu e mal, que não se justificava. Face à sua experiência profissional e conhecimentos médicos o arguido tinha que representar como possível tal resultado.
XVII. Tal leva a inferir que, sendo o arguido médico e com bons conhecimentos técnico-científicos, teria, pelo menos, de representar como possível – até como necessário face à sua experiência profissional (14 anos) – que, dando alta à paciente sem diligenciar por uma consulta no espaço de uma semana, nem recorrer a uma terapêutica mais activa, designadamente antibioterapia, criavam perigo de grave ofensa para o seu corpo ou saúde.
Desta forma, ao entender-se como não provado que o arguido tenham tido a consciência que ao actuar como actuou criou perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde incorreu o julgador em erro notório na apreciação da prova – art. 410.º, n.º 2, alínea c), do C.P.P. – violando o disposto o disposto no artigo 14.º, n.º 2 e 3 do C. Penal.
Nestes termos e naqueles mais que V.ªs Ex.ªs, se dignarão suprir, deve o presente recurso ser julgado procedente.
Vossas Excelências, farão, como sempre, JUSTIÇA.
(…)”.
*

Igualmente inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
“ (…).
1. Deve considerar-se provada a matéria da alínea rr) dos factos não provados e, nomeadamente, que foram as descargas que a assistente exerceu sobre a perna engessada, em desobediência às instruções que lhe foram dadas, à sua experiência e às regras da
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